Uma leitura crítica das teorias do risco e o caso da China

"O caso da China traz um forte contraponto às teorias do risco, ao demonstrar que segue existindo uma interação dialética entre estruturas e superestruturas que não seja regida por uma lógica científica autonomizada."

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Por Giovani Damico.

Este artigo traz uma discussão crítica acerca das Teorias do Risco, com enfoque nas perspectivas de Anthony Giddens e Ulrich Beck. Nosso primeiro esforço será no sentido de discutir as possibilidades teóricas, bem como as restrições que estas teorias apresentam a partir de uma crítica materialista-histórica. O esforço consistirá portanto em discutir pontos cruciais de suas teorias, como a crítica à ciência, os fundamentos de uma nova “racionalidade” ou “lógica”, o solapamento da sociedade de classes e sua subsunção por uma “sociedade do risco”, bem como polarizações como alarmismo vs acautelamento, cosmopolitismo vs fundamentalismo.

Buscaremos trabalhar ambos teóricos ora aproximando ora afastando suas teorias, a fim de destrinchar os principais elementos de suas teorias do risco. Para tal será importante além do debate crítico de suas teorias, trazer à luz acontecimentos históricos dos períodos que sucederam suas principais formulações teóricas, em especial trataremos do caso da China. A respeito desta última, serão discutidos movimentos contraditórios no padrão de desenvolvimento da China, que contrastam com alguns dos pressupostos da teoria do risco, ora aparentemente reforçando-os, ora numa guinada histórica pondo-os em xeque.

Introdução

As teorias do risco remontam ao final do século XX, seu contexto histórico é um contexto de agitação política, polarização entre mundo capitalista e socialista, mas acima de tudo um período marcado por forte desenvolvimento industrial, tecnológico, midiático e informacional. A indústria de formato toyotista, da chamada Acumulação Flexível é marca do período, trazendo para dentro da indústria uma infinidade de variedades de produtos, feitos sob demanda e de forma muitas vezes personalizada. Este é portando um contexto de ampla utilização de matérias-primas trazendo uma sobrecarga ambiental, elemento que terá forte centralidade nas teorias do risco.

A questão da industrialização e seu impacto na utilização dos recursos naturais aparece enquanto um dos principais elementos das teorias do risco, mas esta primeira noção precisa ser ainda bastante complexificada, esforço que tanto Giddens quanto Beck fizeram com grande propriedade, e também com enfoques diferentes. A discussão da produção e circulação, do consumo, da propaganda, os rumos do avanço científico, a interconexão entre ciência e política (e em menor medida com a economia), todos estes elementos combinados fermentam o debate acerca do risco, que não é de forma alguma uma compreensão reducionista, riscos ambientais apenas, ou riscos políticos, econômicos, etc. Mas sim uma teoria complexificada, que interliga os diversos riscos e busca compreendê-los numa lógica totalizante, ou ao menos de forte grau de coesão entre as diversas esferas.

Giddens e Beck precisam inicialmente ser entendidos a partir tanto de seus principais referenciais, mas também a partir do contexto histórico e científico que se situam. Do ponto de vista teórico ambos mesclam um referencial teórico que vai desde uma variedade de autores da ecologia, até os teóricos clássicos da sociologia, tendo Max Weber uma pronunciada influência no desenvolvimento do pensamento dos dois, tanto no que tange à compreensão do funcionamento da sociedade, em busca de lógicas por detrás da amalgama social, lógicas que tragam coesão à sociedade, mas também sua influência aparece na compreensão do Estado, suas instâncias, seu corpo burocrático, instituições, valendo inclusive para a ciência. Que seria um corpo com uma lógica construída não de forma totalmente autônoma, mas com forte grau de autonomia, desenvolvendo-se a partir de pilares estabelecidos principalmente por ela própria e pelas pessoas que a compõe. Embora Giddens transite bem no pensamento de Marx, sua leitura o situa, ou extrai de seu pensamento uma perspectiva eminentemente economicista.

A teoria do Risco embora construída num período já sob forte influência do pós-estruturalismo, com as correntes chamadas ou autodenominadas pós-modernas, dificilmente poderiam ser situadas no mesmo bojo. A própria carga de influência weberiana, faz os autores transitarem entre uma matriz mais idealista, mas com embasamento material, no que se poderia chamar de meio termo entre um idealismo e um materialismo propriamente ditos. Na realidade ambos os autores dificilmente poderiam ser enquadrados na pós-modernidade, pois ambos não fazem um movimento de negação da modernidade, mas sim uma recuperação da modernidade, situada no seu estágio tardio. Essas teorias bebem por tanto de uma matriz que a sociologia costuma chamar de moderna, mas situando-se precisamente na modernidade tardia, aquela onde a própria modernidade já passa por transformações significativas, engendradas por seu próprio movimento, mas que não negam as características pretéritas da modernidade, buscam a partir de sua matriz teórica situar quais seriam os movimentos da modernidade que estariam gerando suas transformações endógenas, não para uma sociedade pós-moderna, marcada pelo fim do trabalho, fim das perspectivas totalizantes, pela fluidez, mas sim para uma sociedade moderna tardia, onde elementos da lógica moderna estariam se transformando, fazendo assim emergir o que vão conceber como a sociedade de risco.

Se os autores em questão não negam a modernidade, por outro lado eles pretendem trazer luz à um aspecto da modernidade antes negado, ou pelo menos que não teria sido observado, estes seriam os aspectos sombrios da modernidade. Sendo a modernidade o período onde a razão iluminista se tornou farol de condução da sociedade, conduzindo ou co-conduzindo o desenvolvimento da industrialização, este período é portanto marcado pelo ascenso da racionalidade científica a um patamar nunca antes experimentado na sociedade. O que ambos autores vão situar é que precisamente este aspecto de elevação da ciência, trouxe consigo uma crença no desenvolvimento científico e tecnológico como necessariamente benéfico, o que abriu as portas para um desenvolvimento que acabou por se revelar cada vez mais aberto à imprecisões, à efeitos colaterais, erros de calculo, ou mesmo erros de conduta, orientados por falhas nos “sistemas perítos”, ou falhas nas suas orientações e interesses de fundo. O lado sombrio da modernidade seria exatamente fruto do desenvolvimento da ciência e da tecnologia, ou mais precisamente fruto do caminho tomado pelo desenvolvimento das ciências e tecnologias, que careceriam cada vez mais controle, ou de uma nova lógica, assim teria sido possível a ascensão dos riscos à um patamar nunca antes visto. Não atoa Giddens intitula sua principal obra sobre os problemas da modernidade tardia como “Mundo em Descontrole” e Beck por sua vez de “A Sociedade do Risco: A caminho de uma nova Modernidade”. Os próprios títulos são expressão da compreensão que os autores trazem, sobre este lado sombrio que emerge da Modernidade.

A emergência dos problemas da modernidade

Antes de adentrar propriamente nos problemas da modernidade tardia, é importante fazer um breve resgate de como os autores situam a modernidade. Já apontamos acima como a influência do iluminismo é marcada sobremaneira na modernidade, tanto no plano teórico, mas também nas suas diversas expressões artísticas, culturais, nas produções tecnológico-científicas, mas também nos inflamados debates acerca da religião, e da busca em uma recentralização societária onde a razão passaria a ocupar o epicentro de uma pulsante sociedade. A novidade aqui é que ambos autores buscam desvelar os aspectos da modernidade que não contradizem a razão científica iluminista, mas põem luz em sua faceta negativa, nas incapacidades da ciência, ou nos problemas trazidos com sua ascensão ao pedestal, enquanto forma inconteste e máxima de expressão do conhecimento e racionalidade. Beck mais do que Giddens aposta em uma ciência autonomizada, basicamente um corpo que se desenvolve com elevado grau de independência frente às estruturas, à economia e à política, o autor em certos momentos faz recuos e concessões às influências que essas podem ter na ciência, em especial a política, mas também a economia, porém enquanto padrão de desenvolvimento, este seria dado eminentemente por “forças” endógenas à ciência, para Giddens este grau de autonomia seria menor, e mais mediado com as estruturas de poder e econômicas.

A crítica de Giddens e Beck à Modernidade, ou melhor aos seus desfechos mais atuais, se inicia numa crítica aos próprios fundamentos da Modernidade, em especial à sua forte convicção na ciência e tecnologias enquanto elementos que resolveriam todos os problemas da sociedade uma vez que tivessem avançado o bastante, os autores negam em certa medida esta tese, sendo Beck muito mais enfático, mas ambos observam que este objetivo inicialmente almejado pela modernidade se mostrou falho, e na prática não só não foi alcançado como outros problemas emergiram, os riscos emergiram, e assim também um elevado descontrole. Alexandre (2000) aponta que para Giddens este lado sombrio da modernidade teria sido deixados de lado por Marx, Durkheim e Weber. Nestes três autores, para Giddens os limites do uso da racionalidade científica teriam ficado muito vagos. Marx teria colocado que a o avanço da técnica deixaria com dias contados às necessidades impostas pela natureza, e que o incremento da industrialização deveria libertar mais o trabalhador. Durkheim situaria no industrialismo também o potencial de alcance da felicidade na sociedade moderna, uma vez alcançadas cooperativas e associativismos. Weber teria desprezado a modernidade pela sua crueza racionalizante e burocratizante, porém nunca imaginara que essas duas características trariam em algum momento um descontrole com riscos ambientais eminentes. Para Giddens as preocupações ecológicas não teriam tido muito espaço na tradição da sociologia.

Uma vez situados os problemas de fundo da modernidade para os autores, podemos nos aproximar dos seus dilemas atuais. A Globalização, os Riscos, os rumos da lógica técnico-científica, os embates entre cosmopolitismo e fundamentalismo, acautelamento e alarmismo. Iniciaremos nas questões que aproximam ambos os autores, mais à frente nos ateremos à questões pontuais e divergentes em cada um deles. Não poderíamos iniciar com outro dilema senão o próprio dilema acerca dos Riscos. A compreensão de riscos está presente tanto em Giddens (2007) quanto em Beck (2010), em ambos com uma ênfase explicativa relevante, porém para Beck a ênfase explicadora dos riscos teria uma centralidade ainda maior, uma vez que estes passariam a ser o principal elemento aglutinador da nova forma societária que emerge com a modernidade tardia. Para Beck (2010) o efeito democratizante dos riscos, isto é, sua capacidade de atingir à todos inclusive àqueles por detrás da geração dos riscos, traz uma característica completamente nova à sociedade moderna, rompe com suas clássicas divisões de classes, chegando ao ponto de que sociedades de risco deixariam de ser sociedades de classes. Mais a frente voltaremos no desenvolvimento deste raciocínio, mais o que é importante extrair neste momento é que sim, para Beck, a centralidade dos riscos é tamanha que estes dariam um giro 180º na forma como a sociedade se estrutura, colocando em xeque ou ao menos em total descompasso a sociedade de classes. Os riscos passariam em determinado estágio do desenvolvimento societário à ser a centralidade do conflito social e não mais as classes. Dificilmente poderíamos situar em Giddens esta mesma assertiva, muito embora para ele os riscos também apareçam com cada vez mais força e ênfase, e também com esta característica democratizante, que rompe fronteiras, mas não chega à compreensão de que este se tornaria o elemento central, fio condutor, da sociedade em lugar das classes.

Mas voltemos ao esforço propriamente dito de situar o que são os riscos em Beck e Giddens, adentrando também nas críticas a estas concepções. Riscos não são apenas Riscos ambientais, esta compreensão está clara nos autores. Podemos compreender que: “Ainda em Giddens, um entendimento do que vem a ser risco na alta modernidade, significa uma consciência de existência de um lado sombrio da modernidade (ALEXANDRE, 2000)”. Este lado sombrio, como já discutimos previamente estaria ligado à todo descontrole advindo da lógica da modernidade, o descontrole pode ser lido em certa medida como resultado dos riscos. Mas ainda assim o que são os Riscos em Giddens? Para o autor Risco é uma característica da sociedade orientada para o futuro, “O risco é a dinâmica mobilizadora de uma sociedade propensa à mudança, que deseja determinar seu próprio futuro (GIDDENS, 2007)”. Giddens consegue fazer várias aproximações muito precisas do que seriam os riscos, mas estes seriam basicamente antecipações onde podemos ter algum grau de previsibilidade dos desfechos de determinadas ações, e que alguns desses possíveis desfechos teriam consequências negativas.

Giddens diferencia riscos externos e riscos fabricados, sendo os riscos externos aqueles que independem da ação humana, seja riscos de enchentes, más colheitas por questões ambientais, terremotos, este tipo de risco já nos trouxe grande bagagem histórica, onde aprendemos a lidar com as dificuldades de se construir numa área declivosa, ou com riscos de enchente, muito embora essa bagagem histórica não possibilite mitigar completamente estes riscos, facilitam seu gerenciamento e cálculos probabilísticos. O outro tipo de riscos – mais relevante – é o dos riscos fabricados. Este tipo de riscos por sua vez é caracterizado por termos pouca bagagem histórica, buscamos antecipar os “possíveis efeitos negativos” da introdução de uma nova vacina para determinada doença, mas sem capacidade total de prever um eventual desenvolvimento de uma doença auto-imune em massa. Um outro exemplo, mais palpável – e aterrorizante – utilizado pelo próprio Giddens é o potencial destrutivo que alimentos transgênicos podem ter, as mutações genéticas induzidas pela bioengenharia, poderiam gerar ou estimular mutações em outras espécies, sejam elas pragas, ou outras espécies de plantas que se adaptem para competir, gerando um desequilíbrio total na produção mundial de alimentos? Para a maioria dos riscos fabricados temos poucas respostas e muitas perguntas, sendo a maioria das respostas promovidas pelo meio científico, o que em casos de catástrofes, erros de cálculo, podem estimular (e vem estimulando) um movimento ou sentimento de descrença na ciência – pilar da modernidade. Giddens (2007) situa exatamente aqui um movimento de criação de Novas Filosofias, ou revivescência religiosa, num claro sentido de contestação da ciência.

Se em Giddens os Riscos não são apenas Ambientais, mas também familiares, riscos à democracia etc., eles tem ainda ênfase maior no aspecto ambiental, para Beck os riscos são civilizacionais, mais o que os torna civilizacionais é especialmente o elemento ambiental, muito embora outros elementos venham à aparecer, mas muito mais em decorrência do descontrole gerado pelos riscos ambientais, estes riscos ambientais podem ser desde desastres atômicos à mudanças climáticas. Em Beck (2010) a questão das mudanças climáticas aparece menos do que em Giddens, mas provavelmente isso se dá ao periodo em que seu livro foi escrito, que antecede um pouco Giddens e no qual o debate das Mudanças Climáticas estava ainda em ascensão. Arrisco afirmar que este debate tenderia a ganhar centralidade em Beck, uma vez que viesse a tona. Mas se para Beck (2010) os Riscos são civilizacionais, eles o são porquê o potencial destrutivo das catástrofes ambientais causadas pelos efeitos adversos, ou colaterais da modernização, tem uma tendência de alcânce global. Beck afirma que os riscos da industrialização (e da modernização) em seus primórdios eram riscos individuais, ou situados dentro do chão da fábrica e nos seus arredores, o autor vai apontar que no desdobramento da industrialização os efeitos deixam cada vez mais de ser localizados na área imediatamente ocupada pela fábrica, ou nos funcionários ligados ao processo produtivo, e passam a impactar áreas cada vez mais remotas, para o autor o preço da industrialização da Alemanha por exemplo, traria forte impacto nas florestas de países como Noruega, Dinamarca, Finlândia, que possuem baixos graus de industrialização, mas que receberiam influência de fumaça tóxica advinda de solo germânico. Beck aponta que assim não só os riscos alcançariam regiões diferentes do local onde foram gerados, mas atingiriam classes sociais distintas. O autor afirma que inicialmente os riscos poderiam ser mitigados de forma “diferencial” pelas diferentes classes, sendo as classes mais abastadas capazes de migrar, comprar alimentos orgânicos, etc. Mas cedo ou tarde acabariam igualmente afetadas. Para o autor: “Surgem situações sociais de ameaça. Estas acompanham, na verdade em algumas dimensões a desigualdade de posições de estrado e classes sociais… os riscos da modernização cedo ou tarde acabam alcançando aqueles que os produziram ou que lucram com eles (BECK, 2010). Ainda segundo o autor este seria um efeito bumerangue e que implode com o esquema de classes. As ameaças advindas seriam não só à saúde, mas à legitimidade (do processo industrializante), à propriedade e ao lucro (BECK, 2010).

A tendência de “romper com o esquema de classes” aconteceria notadamente não apenas a nível local mas a nível global. Assim para Beck e também para Giddens os riscos teriam uma tendência globalizante. Para chegar a tais assertivas Beck parte de relatórios ambientais, relatórios de riscos da atividade nuclear, mas carrega uma contradição que ele próprio denuncia, são os próprios “sistemas peritos” que produzem as informações, que vão nutriz o debate ambiental, e por consequência o debate de riscos. Se Beck questiona muitas vezes de forma veemente a lógica técnico-científica, ele se nutre também dos produtos da ciência para embasar sua crítica aos processos industriais frutos da modernização, e seu potencial destrutivo cada vez mais em “descontrole”. Ao tratar da “reflexividade” do processo de modernização tardia Beck afirma: “O processo de modernização torna-se “reflexivo”: convertendo-se a si mesmo em tema e problema (BECK, 2010)”. Beck trabalha muito na perspectiva de que na medida em que avançam os riscos, avança também a necessidade de debate sobre eles, mas que esse mesmo debate tem muitas condicionantes, o debate é nutrido com base em dados da comunidade científica, mas muitas vezes questionado não só pela mesma comunidade científica mas também pela sociedade civil, muitas vezes com argumentações que fogem totalmente aos padrões científicos. Assim o debate carrega uma série de peculiaridades, quem dá relevância aos riscos é uma soma de comunidade científica, mídia e atores sociais, às respostas aos riscos vem novamente da comunidade científica somada da comunidade política, dos quais Beck cobra posições, dos primeiros mudanças na lógica científica vigente que secundariza os riscos, sempre como efeitos colaterais, e dos últimos com maior pressão na comunidade científica.

O debate sobre riscos de Beck tem um grande mérito de trazer a tona várias questões problemáticas pouco esclarecidas pela comunidade científica ou pelos políticos, quais são os riscos vigentes? Qual nosso poder de mitiga-los com medidas cosméticas? Os riscos são reversíveis? O Autor diferencia claramente medidas cosméticas e medidas efetivas, sendo as primeiras apenas no campo das aparências e as segundas seriam advindas de reformas mais estruturais no padrão de “produção dos riscos”. Nosso principal objetivo aqui não é questionar o caráter alarmista ou não das teses de Beck, mas sim os atores por detrás da produção de riscos, o caráter “democratizante” dos riscos, e o próprio solapamento da sociedade de classes e sua subsunção pela sociedade de riscos. Esta última tese como apontamos anteriormente não é compartilhada por Giddens, que ficaria no meio do caminho, reconhece os riscos, lhes atribui uma grande importância, um papel decisivo na dinâmica da modernização tardia, mas não necessariamente o papel mais importante e decisivo. Este seria o primeiro ponto claro de ruptura entre os autores. Entretanto Giddens também acredita em um papel “democratizante” dos riscos, compartilhando em certa medida da tese de que os riscos afetam à todos, Giddens (2007) aponta que muitos dos novos riscos e incertezas nos afetam onde quer que vivamos. Todos ligados à globalização. Para o autor a globalização teria papel importante na disseminação destes riscos em escala mundial, Beck não se atem à esta categoria propriamente dita, embora partilhe do sentimento de que os efeitos dos riscos tem tendencias e alcance global.

Entretanto as diferenciações na acepção de risco de Beck e Giddens, são muito maiores do que apenas sua capacidade de solapar por completo a sociedade de classes, Giddens enxerga nos riscos um papel “duplo”, os riscos seriam tanto positivos quanto negativos, no melhor da tradição weberiana em se localizar precisamente de forma ambivalente com relação à causas de mazelas e seus potenciais destrutivos ou “construtivos”. O autor afirma assim: “O risco está estreitamente associado à inovação. Nem sempre cabe minimiza-lo, a união ativa dos riscos financeiro e empresarial é a força propulsora mesmo da economia globalizada (GIDDENS, 2007). Que os riscos são presentes a todo momento no capitalismo não há dúvida, mas com relação a necessidade de seu estimulo é algo que carece de amplo debate. Quanto a isso iremos adiantar uma questão, se os riscos tem um potencial “duplo”, destrutivo e “criativo”, a quem cabe incentivar ou minimizar este potencial, ou mesmo discernir entre eles? A China contemporânea na sociedade da modernidade tardia tem uma perspectiva particular ao lidar com essa questão. Quando o assunto é investimentos e tecnologias de “alto risco” este papel é centralizado pelo Estado. Isso não significa que a sociedade civil e empresas privadas (hoje permitidas no país) não podem participar de atividades consideradas de risco, mas só tem esta permissão com aval do Estado, que decide a partir de seus mecanismos político-institucionais quais riscos valem a pena ser seguidos e quais não, aqui introduzimos uma polêmica que pretendemos retomar adiante: A China decidiu em seu projeto modernizador que os riscos ambientais eram necessários e que o progresso tecnológico-científico advindo do processo de modernização viria a compensar e mitigar estes riscos. Este debate ascende uma forte polêmica e fez da China “crucificada” por décadas (LOSURDO, 2004). Hoje assistimos à um giro 180º na política ambiental Chinesa, que promete construir uma ecocivilização como afirma Xi Jinping, presidente chinês (JINPING, 2014). Hoje portanto a China apostaria que os riscos que podem ou não ser tomados, devem ser centralizados pelo estado, sendo os riscos ambientais os mais rigorosamente observados, mas mesmo riscos financeiros passam por este crivo, fugindo de uma lógica cara ao capital, onde cabe a indivíduos, calcular (ou não) riscos, e cabe à toda sociedade arcar com seu potencial destrutivo.

Os dilemas da sociedade de risco

Já pontuamos previamente que Giddens não teria um acordo integral com a noção de “sociedade de risco” sendo esta compreensão devida à Beck, entretanto ao assumir os riscos como elemento central estruturante de nossa sociedade (mesmo que mediado com outros elementos) o autor acaba por assumir que a sociedade se tornou parcialmente de riscos. Os dilemas da sociedade de riscos presentes em Beck são por vezes semelhantes, mas por vezes distintos do presentes em Giddens. Se o primeiro foca na ciência e na sua lógica de impacto destrutivo, e que ignora os riscos, ou os calcula sempre na perspectiva de encontrar o valor ideal de riscos a serem incorporados, o segundo mescla a concepção de risco com a sociedade globalizada, a globalização e avanço da sociedade de riscos são indissociáveis para Giddens, sendo as duas categorias discutidas sempre em conjunto. Mas com essa mescla de Globalização e riscos, ascendem também outros dilemas, o dilema entre cosmopolitismo e fundamentalismo, ou entre acautelamento e alarmismo.

Beck entende que a sociedade moderna se fundamenta em um paradigma muito claro o avanço das “Forças Produtivas Humanas” (o que Marx chamaria de Forças Produtivas Sociais) traria consigo o potencial de remediar o maior dos dilemas da sociedade moderna: o problema da distribuição de recursos. Assim o problema de distribuição seria o objetivo maior da modernidade, assim como as principais disputas da modernidade teriam se dado em torno desse objetivo, alcançar uma distribuição mais equânime dos recursos. Estes seriam paradigmas da desigualdade. Para Beck a modernidade soluciona essa promessa parcialmente (a soluciona nos países ricos mas não nos países pobres), mas esta promessa serviu para legitimar o avanço da ciência e a “carta branca” dada para a ciência para lidar com quaisquer que fossem os efeitos adversos. Beck (2010) afirma que há uma passagem da lógica de distribuição da riqueza para a lógica da distribuição de riscos. Os pressupostos da sociedade de riscos envolvem necessariamente um avanço gigantesco das forças produtivas, superação ou mitigação drástica das carências materiais objetivas. Aqui é que podem emergir os riscos e auto-ameaças até então desconhecidos. Para Beck portanto é consequência da modernidade e mais especificamente da lógica técnico-científica a chegada da sociedade de riscos. O autor parte de uma premissa com uma série de falhas conceituais, a primeira delas é a de que a sociedade moderna teria em algum momento superado às sujeições materiais objetivas, mesmo nas sociedades europeias onde os modernos welfare states se constituíram, estes se constituíram precisamente para mitigar as carências materiais ainda latentes. Vale ressaltar que estes não são decorrentes de um desenvolvimento das forças produtivas pura e simplesmente, estes são decorrentes de conflitos nas relações de produção, esfera completamente esvaziada no debate de Beck, as sociedades europeias desenvolvem seus Estados Sociais na esteira de conflitos sociais latentes, num contexto de polarização mundial, onde de um lado se consolidam os Estados Socialistas, que trouxeram ganhos materiais nunca antes vistos para a maior parte de suas populações. Estes Estados são precisamente resposta do capitalismo à crise latente em meio à turbulência social incitada pelo anseio crescente por maiores ganhos materiais, mas também políticos e espirituais (aqui entende-se cultura, educação, lazer etc.). A segunda é a de que o avanço das Forças Produtivas necessariamente seria força Motriz para a geração dos riscos, embora o autor procure propor uma nova lógica científica, onde os riscos não mais sejam acobertados, ou quantificados de forma a contabilizar os riscos aceitáveis, não é na lógica científica que reside o problema (ou solução desse problema) e sim precisamente na lógica produtiva! Os pontos que Beck não consegue ligar em sua teoria são exatamente os pontos que puxam sua teoria para um viés idealista, que pretende apreender o movimento da sociedade a partir de uma de suas pontas (ciência) e não de sua base material. As Forças Produtivas obviamente são alimentadas pela base científica, mas esta segunda serve à primeira e não o contrário. Ademais as Forças Produtivas não pairam no ar, elas existem sob condições sócio-históricas específicas, sob condições políticas específicas, a leitura de Beck pretende em última análise igualar o desenvolvimento de Forças Produtivas em diferentes países sob diferentes modos de produção. Embora o autor tenha o mérito de denunciar os riscos não contabilizados, ou parcamente contabilizados, crítica que é válida inclusive para a ex-URSS e para a China em seu período de vasta industrialização, dos anos 1960, passando por um salto gigantesco a partir das reformas de 1978[1], até próximo ao ano de 2010, sua tese acaba por se enfraquecer drasticamente ao não enfrentar a questão de fundo na lógica da produção científica, a quem serve a ciência nos países capitalistas centrais? A quem serve a ciência nos países capitalistas periféricos? A ciência serve ao desenvolvimento das Forças Produtivas, mas sob que base? Uma base socializante ou de pura acumulação desmedida de capital independente dos ônus e descargas ambientais? Uma base nacionalizante, ou uma base que vende as riquezas e produções nacionais ao capital internacional? Essas são questões que passam completamente ao largo do debate de Beck.

Ainda que se assuma que o debate de Beck não pretendia investigar a fundo à lógica produtiva propriamente dita, mas sim o papel da ciência na reprodução – sem questionamentos – dessa lógica, não é compreensível como o autor consegue autonomizar quase que completamente a ciência, e além disso, a coloca como centralidade na produção de riscos, sendo que a própria ciência é muito mais instrumento de desenvolvimento de tecnologias do que produção de qualquer coisa. Beck incorre aqui ou num desvio idealista causado por ingenuidade, ou num exercício de crítica que propositalmente não se direciona para a origem do problema abordado. Além disso Beck traz um forte tom de crítica à perspectiva “desenvolvimentista” ou modernizante presente ainda no terceiro mundo, sendo que ele próprio reconhece como o suprimento das latentes necessidades materiais objetivas é elemento fundamental para o avanço societário, mesmo que o que ele entende por avanço societário esteja descambando para uma sociedade de risco, à qual critica, ele enxerga um avanço no meio do caminho, só que este teria se perdido com um desvio rumo à sociedade de risco. Assim essa crítica parece muito mais buscar manter as sociedades subdesenvolvidas no plano material no imobilismo, travando seu desenvolvimento das Forças Produtivas.

Se em sua crítica à lógica científica Beck aponta em certa medida que esta perde sua objetividade ao se confundir com a racionalidade social, ou ao ser contaminada por demandas econômicas ou pressões políticas. Avançando em alguns momentos na busca pelas engrenagens estruturantes que movimentam a ciência, ou apontando em certo momento que: “o efeito social das definições de risco não depende portanto da definição científica (BECK, 2010)” ensaiando talvez uma aproximação à discussão de ideologia, onde o convencimento e o conjunto de ideias dominantes não necessariamente corresponderia às verdades empiricamente ou teoricamente comprováveis. Na maior parte do tempo, por outro lado, Beck cai novamente em falhas lógicas de cunho idealista. Beck busca confrontar Marx e Engels (sem citá-los diretamente), ou melhor, busca superá-los ao afirmar que o achado de sua tese da sociedade de risco, faria cair por terra os achados destes referentes à sociedade de classes. Assim Beck afirma que se a existência determina a consciência em situações relativas à classe (numa alusão óbvia à Ideologia Alemã de Marx e Engels), nas situações de ameaça seria a consciência que determina a existência. E novamente ao tentar promover uma inversão na dialética materialista, recai novamente em um mero idealismo, ou será que ter consciência dos riscos nos torna efetivamente capazes de escapar deles? Não queremos com isso dizer que a consciência dos riscos não tem papel importante na formação total da consciência e que esta não afete a capacidade de ação, mas a consciência por si só é incapaz de determinar mudanças, fosse diferente, a consciência de Beck acerca da sociedade dos riscos, já nos daria passe livre para nos livrarmos da sociedade de riscos.

Giddens por sua vez traz outros dilemas à tona em certa medida diferentes dos de Beck, em nosso ponto de vista sua perspectiva se vê melhor embasada, muito embora Giddens evidentemente se arrisque menos, o que torna inclusive suas conclusões pouco conclusivas. O autor tem um grande mérito de resgatar às críticas à modernidade, retomando inclusive a fundamentação nos clássicos que fundamentaram às análises deste período histórico, sobre esta questão abordamos no início, apontando como principalmente este autor, mas em menor medida também Beck, trazem importantes debates críticos sobre a modernidade, sem incorrer nos (des)caminhos da pós-modernidade, da negação não só de um período histórico mas de toda uma tradição científica.

Em sua teoria do risco, como vínhamos discutindo, a globalização é condição sine qua non para compreensão da sociedade da modernidade tardia. Embora a discussão de Giddens sobre a globalização busque abarcar tanto visões críticas, céticas ou entusiastas acerca do fenômeno, Giddens tem muitas dificuldades de tomar posição no debate e embora faça constatações interessantes como a perda relativa da soberania nacional e do poder do Estado nação, mas da sua evidente continuidade, tem dificuldades de vislumbrar o movimento de fortalecimento do Estado nação, que surge como resposta à própria globalização. Esse fortalecimento talvez fosse menos perceptível no período de desintegração da URSS e bloco do leste (período observado por Giddens), mas ainda assim a queda do bloco socialista só reforçou a necessidade de diversas nações em se preocupar com sua soberania, num mundo onde não havia mais dois polos para buscar jogar com suas disputas e ganhar alguma posição. A imposição da globalização pela força, só reforçou a reconstrução de diversas fronteiras nacionais, na mesma medida que patrocinou a destruição ou redesenho de algumas, não atoa anos após a desintegração da URSS, assistimos uma ressoberanização da Rússia sob mão de ferro do conservadorismo chauvinista grão-russo de Putin, e ainda mais espetacular é a total ressoberanização, superação da condição de dependência, e transformação em potência realizada pela China, que pouco mais de meio século após a tentativa de colonização (pelo Japão) e fragmentação territorial (pelos EUA) no caso de Taiwan.

Giddens tem dificuldades em transitar em situações polêmicas e normalmente prefere uma saída que busque ambígua, a sua própria Teoria do Risco carrega essa marca, não diferente seria com a da Globalização. Giddens busca traçar polos de oposição oriundos desse par Globalização e Riscos, sendo os principais Cosmopolitismo e Fundamentalismo, e Acautelamento e Risco. Mas o que seria Cosmopolitismo e Fundamentalismo, se não imagens de movimentos políticos, ideológicos, mas que não passam de reflexos desprovidos de suas bases materiais que as motivam? O Fundamentalismo é religioso, mas é antes disso territorial, e dentro deste territorio são as forças de produção e reprodução da vida que vão orientar o conjunto de ideias daquela população. O cosmopolitismo seria apenas uma expressão ideológica da globalização, onde valores presentes no ocidente capitalista buscam adentrar todas as fronteiras quebrando suas barreiras. Giddens busca algum contrapeso falando em uma “Colonização inversa” em que o cosmopolitismo ou a globalização, teria às avessas a periferia influenciando os países centrais, os parcos exemplos trazidos por Giddens não conseguem trazer qualquer impacto na cadeia de produção, seja ela científica, técnica, material, ou mesmo ideológica. Giddens (2007) traz exemplos como as novas tecnologias produzidas na Índia ou as telenovelas do Brasil Se a Índia tem desenvolvido um setor de tecnologias de informática de ponta, que consegue exportar para o Reino Unido, é completamente à revelia dos valores e interesses cosmopolitas globalizantes, que se dão a partir de um projeto nacionalista burguês, hoje vigente no país. Já no caso dos programas brasileiros exibidos em Portugal o exemplo é ainda menos relevante, tanto pelo fato da total perda de expressão político-econômica que Portugal passou, quanto pela própria carência de expressão política, ou econômica, dessa ínfima influência que o Brasil passa a ter em Portugal. Giddens vem a afirmar ainda que a democracia estaria sendo levada ao mundo através da Globalização, aqui é a passagem onde o autor mais se distancia de um debate fundamentado, e incorre não só em um idealismo, mas também em uma deturpação do que realmente é fomentado nos países onde a “democracia foi inserida”, pois se a instauração de Governos fantoches autoritários em antigas repúblicas populares ou ex-repúblicas soviéticas é sinônimo de Democracia, que dizer das práticas ditatoriais nesses países que não só assistiram a ascensão de governos autoritários, mas em grande parte de cunho neonazista?

Por fim como iniciamos anteriormente na crítica, no que tange ao debate de Risco Giddens traz ainda uma polarização entre acautelamento, que seriam mudanças preventivas, optando por não correr riscos demasiados, ou alarmismo, que leva a um procedimento de denúncias sem cuidados com a efetiva comprovação, ou com uma base confiável de evidências, tomando posições dogmáticas rumo a um ecologismo anticientífico. Giddens não consegue se posicionar neste debate, apelando para uma leitura relativamente crítica dos riscos, mas que termina por reinvindicá-los enquanto força motriz do desenvolvimento da sociedade. Careceria apenas de uma maior racionalidade nos riscos? Giddens não consegue apontar uma saída clara para como lidar com os riscos, os colocando ora como problema, ora como solução. Giddens se aproxima de Beck ao apontar para o caráter democratizante dos riscos, embora se distancie na caracterização catastrofista dos riscos. Mas tanto Giddens quanto Beck, não conseguem explicar como os Riscos que são produzidos na esfera nacional, que trazem desgastes eminentemente nacionais, e na atual lógica de desenvolvimento industrial estão concentrados nos países periféricos subdesenvolvidos, poderiam magicamente se tornar democráticos. Ambos autores esboçam tentativa de “solução” para essa questão: Em algum momento os riscos bateriam na porta de quem os gerou. Mas até então a realidade objetiva demonstra que os riscos tem sido socializados predominantemente nos países subdesenvolvidos, e enquanto ás “grandes catástrofes” calamitosas não ocorrem à nível mundial, enquanto o aquecimento global não consegue explicar de forma convincente como a atividade humana seria responsável por um movimento que diversos indícios apontam para ser um problema de causas eminentemente naturais (embora parcialmente alavancado pela elevação de gases traço na atmosfera). Enquanto uma grande explosão nuclear não abala o mundo, são também estas fontes de “potenciais calamidades” que tem possibilitado a produção de energia elétrica em países com fraca oferta de recursos energéticos (caso das usinas nucleares), ou esses recursos minerais produtores de gases traço, que tem possibilitado desenvolvimento técnico-científico em países subdesenvolvidos (caso do carvão) como o caso da China, ao qual nos debruçaremos a seguir.

As teorias da modernização, do Risco e a China

Se bem discutimos até então, as teorias clássicas da modernização colocavam o desenvolvimento industrial no centro do processo de modernização, com tons mais ou menos críticos, Marx, Weber e Durkheim conceberam a industrialização capitalista, o desenvolvimento das forças produtivas como etapa fundamental na modernização. Que proporcionou dentre outras coisas uma racionalidade científica aflorada, e uma base de recursos materiais que objetivamente colocaram alimentos, vestuários e outros itens de consumo à disposição de bilhões de pessoas. Marx avançou nessa concepção compreendendo que esta etapa do desenvolvimento capitalista, traria como benefício um desenvolvimento avassalador das forças produtivas, e uma elevação sem medida das contradições com as relações de produção, o que em algum momento histórico abriria janelas revolucionárias para superação do próprio capitalismo. Losurdo (2015) discute com muita propriedade os equívocos parciais dessa tese, especialmente no que tange à concepções binárias de como o conflito forças produtivas-relações de produção se dariam, sendo essas presentes inclusive em Marx e Engels. Mas uma vez superadas as compreensões binárias, movimentos de revolucionamento não apenas das forças produtivas mas das relações de produção e de toda a sociedade tomaram lugar na Rússia, e posteriormente na China, sendo esta última alvo de nossa presente arguição. Os preceitos da modernização foram entendidos por Mao Zedong e posteriormente por Deng Xiaoping de modo diferente daquele originalmente interpretado por Marx e Engels, tendo sido Lênin o primeiro a inaugurar a concepção de que o próprio revolucionamento das forças produtivas poderia ocorrer de forma concomitante ao revolucionamento das relações de produção e de toda sociedade – o que naturalmente não veio sem séries de contradições teóricas e práticas – apresentando assim uma perspectiva de emancipação radical dos países capitalistas dependentes, ou melhor, que malmente tinham iniciado o desenvolvimento do capitalismo.

A China passa portando por um movimento de modernização que passa por duas grandes etapas, a primeira empreendida por Mao traz uma perspectiva nacionalizante, que buscava o desenvolvimento da indústria pesada, criação de maquinarias, produção de aço, e insumos para agricultura. Essa primeira etapa se assemelha com a industrialização soviética promovida por Stalin a partir dos anos 30, entretanto embora tenha tido considerável êxito, esse passou longe do êxito soviético, tanto pelas peculiaridades nacionais da China, problemas crônicos com a fome e pauperismo de uma população de 1 bilhão de habitantes, bem como conflitos políticos que se amontaram, inclusive com a própria URSS após a ascensão política de Nikkita Krushiov, após a morte de Stalin. A China de Mao diferente da URSS, não encontrou basicamente nenhuma base industrial que pudesse ser expropriada, mas apenas a terra e pouquíssimas indústrias em Shangai e Pequim, a realidade Soviética embora não muito favorável, trouxe melhores condições iniciais para o desenvolvimento da indústria. Ainda assim a China decide levar adiante seu projeto modernizante, que passa por forte transformação em 1978 com a ascensão de Deng Xiaoping. Neste período se inicia a Reforma e Abertura projeto político-econômico que proporcionou uma mudança radical na estruturação econômica chinesa, trazendo uma abertura ao capital estrangeiro, fato comemorado no ocidente como o fim do “comunismo chinês” (LOSURDO, 2004). Em verdade Deng traz uma compreensão diferente de socialismo, e busca contrariando o preceito de Mao de que as Forças Produtivas deveriam ser desenvolvidas conjuntamente com o avanço nas Relações de Produção, colocar uma perspectiva de socialismo por etapas, onde a primeira precisaria ser o avanço das Forças Produtivas, assim nasce a abertura, que muitos enxergaram como a morte do socialismo chinês, muito embora Deng Xiaoping seguisse agitando as bandeiras do Socialismo, colocando ainda um adjetivo: Socialismo com Características Chinesas, reforçando que só o socialismo poderia salvar a China, bandeira de Mao (XIAOPING, 1987). Assim nasce o projeto de modernização por etapas vigente na China.

Giddens (2007) critica a perspectiva de modernização de Marx e Weber, apontando que estes acreditavam que ela necessariamente caminharia para um maior ordenamento e previsibilidade, (Weber acrescentaria racionalidade), para Giddens o desenvolvimento da Modernidade tardia os provou equivocados, sendo esta época marcada por um grande descontrole nas instituições, que perdem suas funções e viram instituições casca, dentre outras críticas. As teorias do risco vão criticar precisamente essa perda da racionalidade prevista como atributo indissociável da modernidade. O desenvolvimento da modernidade na China (especialmente na China de Deng Xiaoping) parecia corroborar completamente às teses da sociedade de riscos, Beck (2010) afirma que o “Smong é democrático” se referindo ao fenômeno da inversão térmica, na qual as cidades ficam tamponadas com um ar frio e denso carregado de poeira, fuligem e outros aerossóis. São marcantes algumas imagens do por do Sol em Shangai ou Pequim em que não há por do Sol, mas apenas fumaça e neblina (Smong) e que as cidades instalaram telões com imagens do sol se pondo, à fim de acalmar os corações da população. Essas imagens pareciam ser a confirmação definitiva de que as teorias da modernização estavam fadadas à perda da racionalidade, que estava sendo sobreposta por uma soma de riscos incalculáveis, que vinham trazendo não só a degradação ambiental, mas também moral, física, familiar, degradação da democracia, da política etc. Parecia que apenas o Smog era de fato democrático.

Deng Xiaoping ao assumir o poder tinha em mente um projeto muito claro, que já havia sido derrotado previamente no Partido Comunista Chinês, mas que com a Morte de Mao passou a ter uma ressonância muito maior: o socialismo não deve socializar a miséria, mas sim socializar a riqueza. Se a abertura da China fora subordinada a uma lógica de desenvolvimento radical das Forças Produtivas, para Deng Xiaoping (1987) é muito claro que esta é a única forma de desenvolver o socialismo na China. O autor se indaga: “Pero cual es la connotacion de comunismo? Es la vigencia del principio “de cada uno según su capacidade, a cada uno según sus necessidades”? (XIAOPING, 1987) Para ele a resposta vem clara: “Esto presupone un alto grado de desarrollo de las fuerzas productivas de la sociedad y una abundancia de bienes materiales. (XIAOPING, 1987). Conclui com o raciocínio que portanto a tarefa e a superioridade do socialismo se manifestará na medida em que este traga um desenvolvimento maior e mais rápido das Forças Produtivas, do que aquele alcançado pelo Capitalismo. Assim Deng Xiaoping aponta que dado as circunstâncias de atraso da China a saída para o desenlace das Forças Produtivas estariam na manutenção do socialismo, na instauração do princípio “a cada um segundo seu trabalho” e na ruptura do “auto-isolamento” como forma de alcançar uma sociedade modestamente próspera[2]. Deng fala abertamente em projeto de modernização socialista, e que em sua concepção de etapas se iniciaria no desenvolvimento ou na “libertação” das forças produtivas, sob forte controle do Estado.

Se alguns autores e agentes políticos e econômicos confundiram ou mal-interpretaram a reforma e abertura proposta por Deng, fazendo-os crer que a modernização proposta por Deng seria apenas um abandono do projeto socialista, uma abertura capitalista pura e simplesmente, a realidade concreta chinesa se mostrou muito diversa. Para muitos críticos do Marxismo, e das experiências socialistas, a questão ambiental teria sido abandonada, esquecida ou relegada ao segundo plano. Os próprios Giddens e Beck em suas teorias do risco parecem duvidar que existisse essa dimensão, entretanto Marx (2013) já em O capital escrevera um capítulo inteiro – a lei geral da acumulação capitalista – onde se discutem exaustivamente as mazelas advindas junto ao capitalismo, dentre as principais a criação de um exército industrial de reserva, mas também a miséria física e moral a qual os trabalhadores são submetidos, e são gastas mais de 50 páginas discutindo as condições ambientais nas quais os trabalhadores viviam, tanto na cidade quanto no campo. A crítica à questão ambiental aparece por toda a obra, tratando da insalubridade dos espaços de trabalho, na quantificação precisa dos metros cúbicos de ar disponíveis para os trabalhadores, na situação dos rios, das moradias insalubres, e mesmo da falta de natureza, arborização nos bairros proletários. Engels posteriormente discutirá em obras inteiras à questão ambiental, sendo tratado por autores como Losurdo (2015) como um dos criadores da ecologia. Deng Xiaoping por sua vez, seguindo inclusive os preceitos da tradição maoísta, mas também da experiência soviética com Lênin e posteriormente Stálin, se convenceu de que não haveria possibilidade de dissociar a questão ambiental, da questão social, da questão da produção material da vida. Se por um lado a China e mesmo a URSS fizeram seus processos de modernização industrial sob forte destruição de recursos ambientais, com custos altíssimos aos rios, lagos, florestas, ao solo e ao ar, os ganhos humanos vieram na mesma medida, com alimentação, moradia, transporte público, escola, saúde pública. O projeto de modernização chinesa que parecia ter corroborado as teorias do risco, previra em etapa posterior ao rápido desenlace das Forças Produtivas, uma etapa de desenvolvimento qualitativo das Forças Produtivas, bem como desenvolvimento urbano e urbanístico, e por fim culminando no do Xi Jinping vai chamar de criação de uma ecocivilização. A princípio as suas palavras marcando sua chegada à presidência foram ouvidas como mera retórica eleitoral no ocidente, o meio ambiente na China já estaria fadado à aniquilação, entretanto as palavras de Xi Jinping foram enfáticas no que tange a criação de uma ecocivilização socialista: “Devemos tratar corretamente as relações entre o crescimento econômico e a proteção do meio ambiente e ter sempre em mente a concepção de que a proteção ambiental significa a proteção das forças produtivas e a melhoria do meio ambiente significa o desenvolvimento verde, a economia circular e o desenvolvimento com baixa emissão de carbono. Não devemos, categoricamente, sacrificar o meio ambiente por um crescimento econômico temporário (JINPING, 2014)”, em outra passagem se lê: “É necessário usar os recursos de modo econômico, promover a alteração fundamental do modo de uso dos recursos e reforçar a gestão da eficiência de recursos durante todo o processo, bem como reduzir significativamente o consumo de energias e de água e o uso da terra. É necessário desenvolver com grande esforço a economia circular e promover a redução, reciclagem e reutilização no processo de produção, circulação e consumo”. Poderíamos trazer outras passagens mas em resumo os discursos de viés “ecológico” permearam diversas falas do atual presidente chinês, e estão presentes em suas recentes obras teóricas. Por bonitas que possam parecer as palavras nada seriam sem uma movimentação que fizesse frente a dimensão da questão. Mesmo autores críticos ao atual presidente apontam como a questão ambiental assumiu uma centralidade que muitos no ocidente não acreditavam possível, Boutang (2018), pesquisador francês crítico do atual presidente reafirma essa perspectiva em entrevista ao IELA[3]. Traremos a seguir alguns dados que mostram o drástico redirecionamento ambiental chinês.

Recentemente o portal Bloomberg[4] noticiou que a China estaria nacionalizando os seus setores de tecnologias “hight tech” as movimentações foram vistas com espanto pelo ocidente, na China apareceram como uma mudança calculada, o setor de alta tecnologia não só envolve um dos principais elementos de risco, especialmente no plano de investimentos e financiamentos, mas também é o setor que possivelmente vai possibilitar seu ambicioso projeto: total independência energética livre de emissões de poluentes, ou com emissões drasticamente reduzidas. Não atoa na lista de projetos estão incluídos desenvolvimento de películas de hidrogênio, que buscam criar um combustível renovável estável, totalmente limpo, ou semi-condutores que prometem revolucionar o funcionamento dos aparelhos eletrônicos, o armazenamento de dados, questões altamente relevantes para o consumo energético, mas também para o consumo de recursos naturais. Essas medidas vem juntas com o controle dos setores de risco, controle de startups, onde a inovação, também passa a ser gerida pelo Estado. Ou seja, os próprios riscos passam a ser firmemente gerenciados.

A produção de energia elétrica[5] apresenta uma transformação drástica desde 2013, no período posterior ao XVIII congresso do Partido Comunista da China que introduziu a nova legislação ambiental. Diversas são as regiões cortando suas emissões de carbono, abandonando plantas termoelétricas de carvão, ou transformando as usinas de produção elétrica a base de carvão em usinas de alta eficiência e baixa emissão. O plano quinquenal lançado em 2013 e finalizado em 2018 bateu sua meta tendo 75% das usinas termoelétricas movidas a carvão sido transformadas em usinas de alta eficiência e baixa emissão de carbono. Diversas notícias[6] apontam como a produção de carros de novas energias tem sido incrementadas na China, com ampla participação do setor estatal, diversos veículos que são produzidos mundo afora com combustíveis fosseis são hoje na China produzidos apenas com Novas Energias (tipos de energia renovável eletricidade, álcool, ou mesmo células de hidrogênio). A substituição de aquecimento doméstico de carvão para gás ou elétrico é outra medida drástica adotada, que inicialmente gerou inclusive problemas na conversão, com relatos de um inverno frio, e com famílias tendo dificuldades na conversão imposta pelo Governo. Entretanto avançam os procedimentos de conversão e anualmente cerca de 3 milhões[7] de residências tem tido conversão de sua fonte de calefação. No que tange ao consumo total de energia na China, estimativas apontam que o país utiliza hoje 30% de energia renovável, com indicadores bem maiores que países como os EUA.

Uma das mudanças mais notáveis no padrão de utilização dos recursos naturais chineses é a questão da vegetação. Novamente podemos remontar à imagens veiculadas nas décadas passadas onde facilmente se observava vastas áreas desmatadas na China, seja para produção de carvão, seja para utilização na agricultura, indústria ou avanço de zonas urbanas. Se tornou portanto um consenso de que a China era um dos principais contribuintes para o desmatamento no mundo, o que naturalmente se tornou alvo de acusações e campanhas difamatórias. Essa provavelmente é a mudança que mais chama atenção, a China passou de um dos maiores desmatadores a um dos maiores reflorestadores, tendo instaurado comissões nacionais de reflorestamento. Diversas zonas do país vem sendo reflorestadas, são inauguradas “Cidades verdes” com cobertura florestal em toda a cidade[8]. Em pesquisa de imagens de satélite recente liberada pela NASA discutidas no artigo de opinião de Zheng[9], conclui-se que o mundo hoje está mais verde do que 20 anos atrás, sendo os dois principais contribuidores precisamente a China e a Índia, dois países “em desenvolvimento” que costumavam ser considerados grandes ameaças ambientais. Segundo o relatório da NASA comentado pelo autor 42% da vegetação recuperada na China advém de programas governamentais de reflorestamento. No ano de 2017 por exemplo a China teria reflorestado área equivalente à 7.362 milhões de hectares, de acordo com relatório da comissão de reflorestamento comentado por Zheng. Assim sendo o progresso de reflorestamento chinês atinge níveis cada vez mais notáveis.

A caminho de conclusões

As transformações presentes na China de hoje reforçam à ideia de que o planejamento central das economias planificadas, tem buscado responder às questões da modernidade à sua própria maneira. O Padrão de desenvolvimento das Forças Produtivas na China encampou um modelo de desenvolvimento por etapas, onde em cada período histórico determinadas ênfases foram dadas. No presente momento a China vem passando por mudanças drásticas no que tange à questão ambiental, mas à própria concepção de Forças Produtivas, que vêm cada vez mais incorporando a leitura de que à própria natureza faz parte das Forças Produtivas, bem como a sociedade. Não atoa são sempre situadas como Forças Produtivas Sociais. Este desenvolvimento contrapõe às leituras de que negam a existência de uma racionalidade por trás do desenvolvimento chinês, ou que esta racionalidade caminharia para um total descontrole da questão ambiental, que terminaria por solapar o desenvolvimento econômico. Em nossa leitura o caso da China traz um forte contraponto às teorias do risco, ao demonstrar que não apenas segue existindo uma base econômica, uma orientação política ou seja uma interação dialética entre estruturas e superestruturas, que não são regidas por uma lógica científica autonomizada.

Os desdobramentos futuros do desenvolvimento socioeconômico, bem como do projeto ecocivilizacional chinês, possibilitarão um maior contraste à esta abordagem que propomos aqui, seja para corroborá-la ou talvez para reabilitar as teorias do risco. Reconhecemos em um esforço crítico diversos méritos dessas teorias bem como dos Teóricos trabalhados, entretanto ressaltadas às devidas contribuições, reforçamos a hipótese de que essas teorias embora tenham uma base material que a fundamenta, acabam por incorrer em compreensões idealistas da realidade, que desfiguram a movimentação da produção e reprodução da vida, não acompanhando e interpretando os movimentos das sociedades de maneira satisfatória

Referências

ALEXANDRE, Agripa Faria, “A dinâmica da sociedade de risco segundo Anthony Giddens e Ulrich Beck”, Geosul, Florianópolos, v.15, n.30, p 150-167, jul.dez. 2000.
BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.
GIDDENS, Anthony. O Mundo em Descontrole. Rio de Janeiro: Record, 2007.
JINPING, Xi. A Governança da China. Beijing, China: Ed. Línguas Estrangeiras 2014.
LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica, São Paulo: Boitempo, 2015.
____. Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 2004
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Boitempo, 2013
XIAOPING, Deng. Problemas Fundamentales de la China de hoy. Beijing, China: Ed. Lenguas Extranjeras, 1987.

Notas

[1] Neste ano se iniciaram as Reformas de Abertura de Deng Xiaoping, tema sensível que buscaremos tratar em certa perspectíva que interessa à análise do presente artigo.
[2] Princípio respaldado no Confucionismo, mas reconcebido pelos marxistas chineses, em especial a partir de Deng Xiaoping.
[3] <https://www.ihu.unisinos.br/575056-o-socialismo-chines-e-a-equacao-desafiadora-de-xi-jinping-entrevista-com-yann-moulier-boutang&gt;
[4] Disponível em: https://www.bloomberg.com/opinion/articles/2018-04-12/china-is-nationalizing-its-tech-sector
[5] Informações disponíveis em: <https://www.xinhuanet.com/english/2019-01/29/c_137784276_2.htm e <https://www.xinhuanet.com/english/2019-02/12/c_137816014.htm&gt;
[6] Disponível em <https://www.caixinglobal.com/2019-01-12/china-government-confidence-auto-industry-can-sell-2-million-new-energy-vehicles-by-2020-101369426.html&gt; e <https://www.csis.org/analysis/chinas-expensive-gamble-new-energy-vehicles&gt;
[7] <https://www.cnbc.com/2018/12/13/reuters-america-china-turns-up-gas-heat-in-3-mln-more-homes.html&gt;
[8] Disponível em: <https://www.express.co.uk/life-style/life/918199/Forest-city-China-Liuzhou-architecture-environment-air-pollution-Stefano-Boeri&gt;
[9] ZHENG, Li. “What NASA images say about China’s environmental efforts: 2019“.

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Giovani Damico é Mestrando em Ciências Sociais pelo pela UFBA.

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