As complicações nazistas do mercado das artes
No passado mais recente, tudo começou com o 'caso Gurlitt'. Despertou-se assim um interesse renovado sobre as relações entre o mundo da arte e os nazistas.
Por Flávio Aguiar.
No passado mais recente tudo começou com o “caso Gurlitt”. O alemão Hildebrand Gurlitt foi um marchand de arte no começo do século XX. Tornou-se especialista, dentre outras áreas, em arte de vanguarda, nas febricitantes décadas que se sucederam ao fim da Primeira Guerra Mundial. Sobreveio o nazismo em sua terra natal. Hildebrand caiu em desgraça. Era um marchand dedicado àquilo que viria a ser considerada como uma “arte degenerada”. Mas a vida põe, dispõe, dispensa, repõe… Invadindo a França, a Holanda e outros países, já na Segunda Guerra, os nazistas depararam com reservas e reservas desta “arte degenerada”. Vendê-las para colecionadores d’além-mar poderia ser um bom negócio. Göring, o super-ministro do regime, tinha pretensões de colecionador de obras de arte. Além disto, Adolf Hitler alimentava a ideia de criar um museu desta “arte degenerada” na Áustria, perto de sua cidade natal. Era preciso alguém que fosse capaz de avaliar o preço e a autenticidade destas obras capturadas. Quem? Hildebrand, que foi assim, pelas artimanhas da História, “reabilitado”. A partir daí ele adquiriu, no mais das vezes por meios, digamos, “legais”, milhares de obras, sendo que algumas – uns dois milhares entre os muitos adquiridos – ele preservou para si. Acumulou muitas delas em sua Dresden natal.
Com o fim da guerra, Hildebrand foi capturado pelos norte-americanos, mas foi solto em seguida. Declarou, entre outras coisas, que a esmagadora maioria das obras que adquirira fora destruída durante o bombardeio da cidade de Dresden, em fevereiro de 1945. Na verdade, ele as guardara em local secreto. Solto, e absolvido de qualquer acusação, ele continuou sua carreira de colecionador e marchand. Mas as obras que guardara secretamente não vieram a lume. Em 1956 ele morreu num desastre de automóvel.
Sua coleção de quadros passou a seu filho, Cornelius Gurlitt, que a manteve secretamente guardada em suas duas casas, uma em Munique, outra em Salzburg, na Áustria. Muitos destes quadros estavam escondidos atrás de estantes de livros, enrolados, sem moldura. Em 2010 Cornelius foi detido quando regressava da Suíça para a Alemanha, de trem, com nove mil euros em seu poder. A quantia era inferior ao limite legal de 10 mil, a partir do qual uma reserva em dinheiro deve ser declarada ao atravessar uma fronteira. Mesmo assim aquilo levantou suspeitas, e uma subsequente investigação por parte da Receita Federal da Alemanha mostrou que Cornelius jamais pagara imposto de renda. A Receita obteve uma permissão para entrar em sua casa em Munique, e assim a coleção de quadros – nesta altura quase 1.500 – veio à luz.
A coleção foi confiscada. Mas Gurlitt, argumentando que toda ela fora adquirida legalmente, a obteve de volta, ainda que concordando que, caso alguma das obras tivesse sido obtida ilegalmente ou forçadamente de judeus, por exemplo, ela devesse ser devolvida a seus legítimos donos. Isto de fato aconteceu, quanto a três ou quatro dentre o milhar e meio de quadros.
Em 2014 Cornelius Guriltt morreu, aos 81 anos de idade, e em testamento deixou sua coleção para um pequeno Museu de Arte Moderna de Berna, na Suíça. O governo alemão contestou o testamento, mas perdeu a causa. Antes de seguir para a Suíça, uma pequena parte da coleção total – pouco mais de uma centena de obras – foi objeto de uma exposição no museu Martin Gropius, em Berlim. Constatou-se que Hildebrand Gurlitt fora um colecionador de extremo bom gosto.
Este caso despertou um interesse renovado sobre as relações entre o mundo da arte e os nazistas. E agora veio à tona um novo caso, o do pintor expressionista Emil Nolde. Este, cujo nome de família era Emil Hansen, nasceu em 1867 na cidade de Nolde, então parte da Prússia e hoje situada na Dinamarca, devido a um acordo de 1920 entre esta e a Alemanha. Tornou-se um expoente da pintura expressionista alemã e europeia. De fato, suas obras evidenciam um talento exponencial. Com o advento do nazismo, Nolde, que manifestava um antissemitismo visceral, aderiu a ele. Obteve o apoio daquele mesmo Göring, que protegera Gurlitt, e que era um apreciador do expressionismo dos pintores nórdicos, ou seja, da Dinamarca para o norte. Mas Hitler não apreciava nem mesmo estes expressionistas. E Nolde foi incluído na famigerada exposição sobre “arte degenerada” que se apresentou em Munique, no ano de 1937. Ele protestou, e ao fim e ao cabo conseguiu que seu nome fosse eliminado da lista dos “degenerados”. Permaneceu fiel ao nazismo e ao seu antissemitismo até o final da guerra.
A partir daí Nolde se dedicou a um meticuloso apagamento de seu passado nazista e antissemita, e a reconstrução de sua história centrando-a na ideia de ter sido uma vítima do nazismo. Quase conseguiu. Porém incorreu na falha trágica do personagem do conto “O demônio da perversidade”, de Edgar Allan Poe, aquele que cometeu um crime perfeito e que não poderia ser descoberto a menos que ele mesmo se auto-denunciasse. Assim aconteceu com Nolde. Por alguma razão ele não destruiu alguns dos documentos – anotações e diários pessoais – que comprovam não só sua adesão ao nazismo, mas sua permanência nela até 1945. Tudo isto faz parte de uma exposição agora no Hamburger Bahnhof, em Berlim, uma antiga estação de trens transformada em museu. Ali se constata, ao mesmo tempo, a excepcional qualidade de Nolde como artista e sua má fé, pretendendo ocultar seu passado repulsivo. Também se constata a complicação do mercado das artes que, no fim das contas, também é um… mercado.
Um detalhe curioso: um quadro de Nolde estava na parede do gabinete da chanceler Angela Merkel. Ela o retirou de lá, e hoje ele faz parte do acervo da presente exposição.
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Gostou? Para mergulhar mais no tema, recomendamos a leitura de Diários de Berlim, 1940-1945: os bastidores da operação que planejou assassinar Hitler, de Marie Vassiltchikov, traduzido por Flávio Aguiar; e o romance Hereges, de Leonardo Padura.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Seu mais novo livro é O legado de Capitu, publicado em versão eletrônica (e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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