Em defesa da balbúrdia

“Não é momento de recuarmos na crítica e tampouco de permitir que as Ciências Humanas, Filosofia e Artes sejam reduzidas à categoria de balbúrdia, mas sim de avançarmos na defesa de uma Universidade pública, gratuita, de qualidade socialmente referenciada, latinoamericanista e autônoma.”

Assembléia de Docentes da Unicamp adere à Greve Geral da Educação na próxima quinta-feira, 15 de maio, somando-se aos alunos e funcionários da Universidade. 11 mai. 2019.

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Por Gabriel Miranda.

O atual governo nunca apresentou muita hostilidade, ao menos no plano discursivo, com os “cientistas de jaleco branco”, ou seja, aqueles vinculados às Ciências da Natureza e Tecnologias. Sua principal sanha sempre foi com as Ciências Humanas, a Filosofia e as Artes. Foi neste sentido, por exemplo, que o tal ministro da Educação alegou que o corte no orçamento das Universidades Federais se justificaria pela realização de balbúrdia nestas instituições, o que, de tão ridículo, logo despertou forte indignação, sobretudo daqueles que trabalham e estudam em Universidades Públicas.

O antiministro da Educação classificou como exemplos de balbúrdia a participação de membros do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em eventos universitários, manifestações partidárias e “gente pelada dentro do campus” (adoro). Ou seja, ainda que do ponto de vista concreto as ações do desgoverno Bolsonaro tenham atingido todas as áreas que compõem a academia, seu alvo principal sempre esteve muito bem delineado. Posso imaginá-lo bradando com seu domínio precário da língua portuguesa e irritante tom de voz: “Esquerdistas maconhistas!”.

Aquilo que, imagino, deve ser alvo de nossa atenção, é o fato de que o conjunto de manifestações contrárias aos cortes orçamentários na Educação não coloca em questão algo que é essencial: o sentido da própria Universidade. Ora, as reações contrárias – pelo menos as que tenho acompanhado – às medidas do ministro tendem a reforçar a ideia de que a Universidade deve se constituir como espaço privilegiado das assim ditas Ciências da Natureza.

Diante disso, cabe perguntar: e nós, que somos cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, psicólogos, filósofos e artistas? E nós, que ao invés de desenvolvermos mecanismos que permitem aumentar a produtividade de uma empresa ou de uma linha de produção, questionamos a miséria produzida pelo modo de produção capitalista? E nós, que temos como ofício a análise dos processos políticos de onde emergem as políticas públicas, que temos como tarefa analisar “os governos em ação”? E nós, que questionando o moralismo burguês e reivindicando o direito sobre nossos corpos, fazemos performances nus? Nós que, nas trilhas de Karl Marx e Paulo Freire, sabemos que em uma sociedade cindida em classes não há neutralidade, pois se querer neutro implica necessariamente estar do lado dos donos do poder, não deveríamos ocupar a Universidade?

O governo de Bolsonaro reforça um modelo de educação tecnicista e fortemente atrelada aos interesses do capital. Nesse sentido, qualquer saber que não possa ser incorporado diretamente na produção de bens e serviços, não tem valor. Igualmente, ele sabe do poder das Ciências Humanas para o despertar de consciências, para desvelar as relações de opressão e exploração naturalizadas pela ideologia dominante. Sabe também o quão ameaçador é a dúvida, matéria-prima da Filosofia, para governos de traços fascistas como o seu. Sabe, ainda, que os afetos produzidos pelas Artes podem inspirar e promover grandes transformações. Os ideólogos de Bolsonaro sabem de tudo isso. E é por essa razão que nos combatem e tentam nos tirar tudo: com fake news, tentam borrar nossa reputação com a sociedade e com cortes orçamentários tentam retirar nossas condições materiais de existência. Tentam nos tirar tudo, mas como disse Cláudio Thebas: “podem retirar a minha comida, mas não a minha fome”. Nosso desejo e nossa consciência permanecerão em nós, como combustíveis de resistência política.

Diante disso, vale lembrar que defender a Universidade Pública não implica apenas uma defesa das “ciências de laboratório”. Ontem, durante uma aula sobre democracia, uma aluna me disse que a corda sempre arrebenta do lado mais fraco. E é exatamente isso que ocorre hoje no debate sobre os rumos da Universidade. É possível que, de tanto se conferir ênfase às Ciências da Natureza e seus resultados, isso possa servir como mais um argumento para legitimar os próximos ataques, estes de forma centralizada nas Ciências Humanas, Filosofia e Artes.

Compreendo que os objetivos dos colegas que estão bravamente levantando a bandeira de defesa da Universidade não são esses, mas sei também – e aprendi com Michel Foucault – que os nossos discursos podem ser lidos e interpretados com significados bem diferentes daqueles que lhes atribuímos originalmente. Sendo assim, é preciso que antes – ou ao mesmo tempo – de defender a academia pelas suas louváveis descobertas no campo das Ciências Médicas ou da Robótica, defendamos como legítimos os demais campos do saber, historicamente relegados à condição de saberes marginais e, em tempos de ameaças à democracia, brutalmente perseguidos.

Por fim, mas não menos importante, resta demarcar que o motivo pelo qual cortam verbas da Educação não figura exclusivamente no plano moral, embora seja verdade que a razão declarada é expressamente moral. Mas este é o modo de proceder do bolsonarismo: com discursos, ora conservadores ora punitivistas, Bolsonaro monta suas armadilhas para seguir com a implementação do receituário ultraliberal de redução do papel do Estado na garantia de direitos. Sabendo que o ideário ultraliberal tratado de maneira isolada não tem vocação para ganhar terreno com o eleitorado brasileiro, aproveita-se da predominância de uma racionalidade tacanha, patriarcal, racista, misógina e heteronormativa para fazer avançar seu projeto de rapinagem do Estado brasileiro. Sendo assim, por mais que essa série de ataques nos choque, não há nada de novo no front. A diferença é que o neoliberalismo à brasileira utiliza como muletas um conservadorismo fétido.

Daí o porquê de, para legitimar o desmonte da Educação, utilizar a esdrúxula narrativa de que a Universidade promove balbúrdia. O que é sabido desde o final de outubro de 2018 é que os ataques viriam de uma forma ou de outra, seja pela via do projeto de enxugamento do Estado social, seja porque as Universidades Públicas, em especial os cursos de Humanidades, foram instituições que se posicionaram de forma crítica em relação aos golpes que marcam a política brasileira desde 2016. Diante desse cenário, não é momento de recuarmos na crítica e tampouco de permitir que as Ciências Humanas, Filosofia e Artes sejam reduzidas à categoria de balbúrdia, mas sim de avançarmos na defesa de uma Universidade pública, gratuita, de qualidade socialmente referenciada, latinoamericanista e autônoma.

Quarta-feira, 15 de maio, é dia nacional de greves e paralizações em defesa da educação. Confira as mobilizações marcadas em sua cidade e participe. Clique aqui para conferir o calendário de atos e manifestações compilado pela UNE .

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Gabriel Miranda é Pesquisador associado ao Observatório da População Infantojuvenil em Contextos de Violência (UFRN). O Espaço do leitor é destinado à publicação de textos inéditos de nossos leitores, que dialoguem com as publicações da Boitempo, seu Blog e obras de seus autores. Interessados devem enviar textos de 1 a 10 laudas, que não tenham sido anteriormente publicados, para o e-mail blog@boitempoeditorial.com.br (sujeito a aprovação pela editoria do Blog).

1 comentário em Em defesa da balbúrdia

  1. Denise Silva Macedo // 14/05/2019 às 11:41 am // Responder

    Tese de doutorado: Mercantilização do Discurso Público: universidades brasileiras
    https://www.repositorio.unb.br/handle/10482/33080

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