A universidade não é um “espaço dos esquerdistas”

A concepção de uma universidade “esquerdista” é falsa e forçada. A concepção de uma universidade de privilegiados também.

Estudantes fazem assembleia na UFMG sobre adesão a protesto nacional no dia 15 de maio. Foto: Tainá Dutra

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Por Roberto Moll.

A universidade não é um espaço privilegiado da esquerda. Como diria o historiador estadunidense Howard Zinn: é impossível ficar parado em um trem em movimento. A maior parte dos docentes e discentes das universidades tomam posição em favor da reprodução do capitalismo de forma acrítica. Nos cursos de graduação e pós-graduação nas áreas de engenharia, tecnologia e biomédicas, que formam grande parte dos discentes e docentes nas universidades, tem pouquíssimas aulas ou pesquisas calcadas em projeto de esquerda, anti-capitalista ou reformista. Ao contrário, esses cursos formam profissionais para girar a roda do capitalismo, buscando maior eficiência, materializada no lucro, sem críticas. Mesmo em áreas como direito, economia, comunicação social, ciência política e relações internacionais poucos docentes e discentes apresentam projetos anti-capitalistas. Além da formação voltada para o mercado, essas áreas abrigam uma infinidade de liberais e conservadores honestos, respeitosos e decentes. Aliás, até a primeira metade do século XX, mesmo em áreas como história e antropologia, os docentes e as pesquisas tinham um viés mormente liberal e/ou conservador, que serviam para legitimar a unicidade da nação e as posições definidas nas relações sociais capitalistas.

Na política cotidiana das universidades, a crítica acadêmica à realidade não leva inexoravelmente a vitória de projetos políticos de esquerda, tão pouco revolucionárias. Boa parte dos diretores e reitores não vencem os pleitos e administram as universidades públicas com a promessa e o objetivo de promover o foquismo revolucionário. Para além das questões políticas de gabinete e das questões ideológicas, esses servidores públicos têm problemas mais imediatos, como as contas de água, luz e o orçamento vilipendiado.

Entre os egressos, a maior parte dos engenheiros, médicos, administradores, advogados e profissionais ligados a área de tecnologia que se formam nas universidades públicas não saem por aí com o manual do guerrilheiro em uma mão e um baseado de maconha na outra. Ao contrário, como aluno e como profissionais no mercado de trabalho, eles conduzem suas vidas de forma pragmática e ajustada aos dogmas capitalistas liberais e/ou conservadores. Em outras palavras, querem mesmo é ganhar dinheiro e satisfazer aos desejos de seus familiares. Muitos sequer estão preocupados com a felicidade e se afundam no álcool e nas drogas psicoativas lícitas. É preciso dizer, esse pragmatismo é legítimo e justificado porque as condições matérias do mundo capitalista, principalmente em seu viés neoliberal desregulado e completamente inseguro, empurram as pessoas em uma espiral precária e infinita de trabalho e consumo.

Esse pragmatismo afasta a maioria dos discentes e docentes dos debates e processos políticos dentro das universidades. Portanto, de certa forma, esses estudantes e professores são vítimas das condições matérias do próprio sistema que reproduzem de forma acrítica. São exemplos perfeitos da incompatibilidade entre o capitalismo precário e democracia participativa, direta e local. Em contraposição, docentes e discentes de áreas que são intrinsecamente voltadas para análise da realidade e, consequentemente, da lógica capitalista estão mais afeitos ao debate e mais engajados nos processos. Ainda que estes também estejam preocupados em levar o pão do café da manhã para casa, dificilmente escapam à análise das consequências benignas ou malignas dos processos de reprodução do capital. Ou seja, a reflexão crítica, positiva ou negativa, é, em última instância, seu próprio trabalho.

O despertar político crítico dos discentes e egressos comprometidos com a reprodução do capital nas universidades públicas caminhou pari-passo com a contradição entre a crise econômica que teve início em 2013 e o processo de expansão da educação.

Primeiro porque a formação de mais engenheiros, advogados, médicos, administradores e toda sorte de profissões antes relegadas a uma parcela privilegiada da sociedade prometeu aumentar a competitividade entre trabalhadores especializados em um momento de escassez de vagas. Consequentemente, ameaçou impactar sobre salários e desejos individuais legítimos.

Segundo porque a ampliação de vagas nas universidades em um momento de crise ameaçou drenar recursos de outros setores. Vale lembrar ainda que o processo de ampliação abriu pequenas frestas nas universidades para estudantes de minorias historicamente marginalizados. A universidade deixou de ser apenas um espaço de privilegiados. Todavia, o processo de expansão do ensino universitário com programas como FIES e PROUNI reforçaram politicamente e possibilitaram melhorias nas universidades privadas. Logo, o projeto de expansão do ensino universitário reforçou a dualidade do sistema de educação. Paradoxalmente, profissionais formados nas universidades públicas (antes e depois da expansão) e interessados em satisfazer seus desejos objetivos e subjetivos em momentos de crise sem transformar as estruturas capitalistas passaram a encarar a universidade pública como um dreno de recursos e impostos. Com a dualidade do sistema reforçada, passaram a apostar no sistema privado e nos recursos individuais como modelo para educação.

Terceiro porque as universidades são capazes de apresentar propostas para mitigar a crise e seus efeitos. E, justamente por ser um espaço plural e crítico, essas propostas nem sempre estão alinhadas com o pragmatismo capitalista. Em virtude do processo de expansão, essa pluralidade de propostas não está confinada apenas na dicotomia entre direita e esquerda, mas também nas perspectivas de setores que até então estavam nas margens das universidades como negros, autóctones, gays e mulheres. As perspectivas desses grupos subalternizados que foram integrados as universidades como alunos e servidores contradiz a perspectiva de homens brancos que se formaram durante muitos anos com um ideal capitalista acrítico. A rejeição aos movimentos culturais nas universidades (descritos como balbúrdia) são apenas um sintoma dessa contradição, enraizada na sociedade brasileira como um todo.

Quarto porque a expansão das universidades vendeu o sonho de que todos poderiam aderir a um capitalismo como forma de ascensão social. Todavia, em face da crise econômica, esse sonho ficou muito mais difícil. Muitos jovens, inclusive aqueles que pela primeira vez levaram os nomes de suas famílias para os registros universitários, perderam até mesmo a esperança simbólica de tempos em que jovens pobres que enfrentavam o caos para conquistar um diploma universitário eram festejados em carro de bombeiro e conseguiam comprar a primeira casa própria (como se a precariedade caótica tornasse o acesso ao ensino e a uma profissão mais valiosos). Logo, direcionaram suas frustrações e críticas para o processo de expansão das universidades e para o sistema de ensino. Paradoxalmente, apoiados em rankings recentes, apresentam um passado mítico das universidades públicas, como um espaço com estrutura de ponta e afinado com a construção de pesquisas inovadoras, que, até recentemente, seria capaz de transformar a vida de qualquer um.

O despertar crítico dos discentes e egressos universitários também está relacionado a outras duas contradições de correlação menos direta: o processo de expansão das universidades públicas com o crescimento do fundamentalismo religioso; e a expansão das universidades públicas com o surgimento de novas formas de comunicação em meios digitais.

O crescimento do fundamentalismo religioso, que se alimenta da miséria moral e financeira, disputa a presença, o investimento e as mentes dos jovens. Dessa forma, bem como charlatões digitais, os sacerdotes fundamentalistas realçam a superstição em contraposição a universidade para se inserir no “mercado do conhecimento”.

Além das inúmeras e reconhecidas vantagens, o crescente acesso aos meios de comunicação digitais permitiu a conformação de uma centena de pseudo-professores que buscam dinheiro fácil e notoriedade nas redes sociais, vendendo livros, cursinhos e ideias requentadas nas mesas de bar e/ou importadas de segunda mão. Com isso, buscam competir com as universidades sem se submeter a nenhum processo de avaliação metódica e/ou científica, mas exigem “refutação” (é curioso observar o crescente uso desse verbo) racional de pataquadas completamente ignorantes como: “nazismo é de esquerda”, “vacina causa doença”, “aquecimento global não existe” e o famigerado “a terra é plana e se encontra no centro do sistema solar”. Esses pseudo-professores buscam claramente atacar a universidade com o objetivo de penetrar em um, suposto, mercado do conhecimento. Compreender porque esses pseudo-professores fazem sucesso é um outro tema importante, talvez mais complexo e espinhoso, mas que não pode deixar de olhar para as universidades, inclusive para a gestação do pensamento crítico ao capitalismo.

De todo modo, essa crescente oferta de pseudo-conhecimento reforça duas outras molas propulsoras da oposição a universidade nas redes sociais e novas mídias. Primeiro, o chamado Efeito Dunning-Kruger, que, resumidamente, se estabelece quando um indivíduo julga conhecer muito sobre um determinado tema, mesmo tendo pouquíssimo conhecimento sobre o mesmo. Este fenômeno pode ser acentuado na medida em que o indivíduo submerge em uma rede densa de informações equivocadas ou imprecisas sobre um determinado assunto nas redes sociais, sem nunca entrar de fato nas questões, nos debates e nas análises que conformam um determinado campo de conhecimento. Segundo, essa rede densa de informação conforma uma rede de relacionamentos entre pessoas e confere um sentido de identidade e protagonismo, que é sensivelmente atrativo em uma realidade cada vez mais competitiva, desintegrada e, consequentemente, exclusiva. Em outras palavras, atacar a universidade ajuda a conformar novos espaços de gestão de conhecimento, que devolve um sentido de identidade, pertencimento, protagonismo e propósito às pessoas que se sentem desconectadas, mas especiais e iluminadas.

Portanto, a universidade pública não é um espaço cativo e exclusivo da esquerda. Sempre foi um espaço aberto para todos que querem viver e compreender a realidade e que, de forma crítica ou acrítica, buscam desenvolver suas potencialidades intelectuais diante do mundo capitalista. A concepção de uma universidade “esquerdista” é falsa e forçada. A concepção de uma universidade de privilegiados também (ainda que o processo de expansão do ensino universitário tenha aberto apenas frestas para as minorias marginalizadas). Os ataques às universidades atendem a interesses específicos e mesquinhos de disputa de poder em um momento envolto em tensões sociais complexas, que está a arrastar todo sistema educacional e, com ele, lamentavelmente, muitos jovens.

Quarta-feira, 15 de maio, é dia nacional de greves e paralizações em defesa da educação. Confira as mobilizações marcadas em sua cidade e participe. Clique aqui para conferir o calendário de atos e manifestações compilado pela UNE .

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Roberto Moll é Professor de História da América II (Contemporânea) no Departamento de História da Universidade Federal Fluminense (CHT – UFF) em Campos dos Goytacazes e Professor do Programa de Pós Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança na mesma universidade (PPGEST – UFF). O Espaço do leitor é destinado à publicação de textos inéditos de nossos leitores, que dialoguem com as publicações da Boitempo, seu Blog e obras de seus autores. Interessados devem enviar textos de 1 a 10 laudas, que não tenham sido anteriormente publicados, para o e-mail blog@boitempoeditorial.com.br (sujeito a aprovação pela editoria do Blog).

1 comentário em A universidade não é um “espaço dos esquerdistas”

  1. Ótima análise do Roberto Moll e iniciativa muito boa da editora. Parabéns!

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