Ideologia e propaganda na educação: de Israel ao Brasil
"O livro de Nurit Peled-Elhanan é bem construído e bem escrito. Trata de uma temática absolutamente relevante para um Brasil que hoje discute temas como os da Escola sem Partido. Alguém poderia dizer que esse conflito entre judeus e palestinos está muito distante de nós. Contudo, creio que vale aqui o antigo dístico: nada do que é humano pode nos ser estranho."
Por Carlota Boto.
Em boa hora as editoras Unifesp e Boitempo publicam o relevante livro de Nurit Peled-Elhanan. Ideologia e propaganda na educação: a Palestina nos livros didáticos israelenses é um trabalho que se inscreve na tradição dos estudos sobre livros didáticos, mas recupera, na análise, uma dimensão política fundamental que, por vezes, tem sido relegada nos estudos sobre a leitura escolar. A presente obra tem como foco a representação da Palestina nos livros escolares que circulam em Israel. A tese da autora é a de que há uma geografia da hostilidade e da exclusão, perpassada por um discurso aparentemente científico, mediante o qual a atuação pública de Israel é identificada com o avanço, a democracia e o progresso do Ocidente, ao passo que o lugar social da Palestina é apresentado como o atraso, o Oriente e tudo que obstaculizaria o avanço dos povos. Nesse sentido, em alguma medida, o livro didático reproduz os termos do conflito Israel-Palestina, legitimando uma versão única sobre a superioridade judaica em relação a tudo o que é considerado seu avesso. Os conteúdos culturais do livro didático são portadores de mensagens explícitas e implícitas que falam muito de perto a mecanismos ideológicos de falsificação da realidade. Por fim, há nos textos escolares aqui analisados pela autora um processo de legitimação da violência dos judeus contra os árabes e, evidentemente, da denúncia de qualquer ato de violência que possa vir dos árabes contra os judeus. Trata-se, nesse sentido, de uma obra extremamente atual, que possui relevância quanto a seus aspectos acadêmicos, mas possui também um vasto significado do ponto de vista social e político.
A escola inscreve-se na sociedade como instituição de fronteira: fronteira entre a vida familiar e a esfera social. É como se a escola fosse o locus da transição entre o aconchego familiar e o cenário mais impessoal da esfera pública. A escola ensina o sujeito a viver e a interagir em sociedade. Por ser assim, pode-se dizer que a escola situa-se, com todas as suas contradições, no seio dessa sociedade, e reproduz os âmbitos de todos os nivelamentos, mas também de todas as desigualdades nela presentes. Estudos ainda relativamente recentes sobre a cultura escolar têm, entretanto, demonstrado que, além de a escola reproduzir a sociedade que a abriga, ela também tem a tarefa histórica de produzir certo tipo de cultura. Tal cultura, impressa nas próprias relações escolares, vigora por meio de atos e palavras, gestos e inscrições que dialogam muito de perto com todo um roteiro de saberes e de saber-fazer, os quais tanto instituem rituais e maneiras de agir quanto organizam um dado repertório, que leva à própria reprodução, em termos intergeracionais, da mesma cultura escolar. Em outras palavras: as coisas que a escola faz são, por um lado, parecidas com as coisas que a sociedade faz e, por outro, uma continuidade das coisas que a própria escola fez em épocas passadas. Daí a face conservadora da escolarização. Ela se estrutura na constelação societária, a partir de determinados modelos externos e também internos. O livro escolar é parte determinante dessa história.
A hipótese que a autora busca confirmar nesse livro é a de que, segundo a narrativa dos livros didáticos que assumem a perspectiva sionista-israelense, “os judeus israelenses – que vieram dos mais remotos cantos do mundo, sem nada em comum a não ser a religião de seus ancestrais, praticada por cada grupo étnico de uma maneira diferente – constituem uma nação natural do alvorecer da história”. Assim, identifica-se o slogan sionista “uma terra sem povo para um povo sem terra”; o que não quer dizer exatamente que a terra estivesse desocupada, mas que seria ocupada por intrusos. A autora divide os livros didáticos em períodos e procura mostrar como a Palestina era vista em cada um. O que se observa de maneira geral é que, como afirma Nurit Peled-Elhanan, “nos livros didáticos israelenses, as fronteiras entre o texto disciplinar e os textos políticos, proféticos ou militares se confundem”. É como se houvesse uma dimensão de cientificidade em narrativas que se constroem especialmente sobre a história e a geografia da região, valorizando apenas um lado do conflito “árabe-israelense”. Note-se que, ao se caracterizar o termo israelense, parte-se do pressuposto de que os israelenses são apenas os judeus, não sendo os árabes-palestinos identificados como integrantes da condição de israelenses. O livro didático procede, portanto, a um apagamento da Palestina na vida escolar, como se, para formar as novas gerações, bastasse o relato sobre o judaísmo e sua história. Haveria preconceitos e estereótipos que pautam a interpretação sobre os palestino-israelenses, no que diz respeito aos modos de vida, às maneiras de agir, aos modos pelos quais eles se vestem e se organizam em sociedade.
O livro didático israelense possui um tom etnocêntrico. A autora analisa imagens de algumas obras e constata que a representação visual dos palestinos é pautada sempre por símbolos que seriam, em tese, degradantes: a condição de terrorista, a condição de refugiado e a condição de agricultor. Seriam, no limite, apresentados como o “problema de Israel”. Além disso, é como se o mundo todo fosse dividido entre judeus e árabes; e nessa generalização os diversos tipos de vilarejos árabes em Israel não são sequer considerados em suas especificidades. Não se leva em conta que, sob o genérico termo “árabe”, encontram-se vários povos – tunisianos, argelinos, marroquinos etc. – e que cada um deles tem sua própria história e sua própria inscrição geográfica. Aqui não. Trata-se, no limite, de generalizar e estabelecer o contraponto entre judeu e não judeu.
É claro que a autora reconhece que há períodos e autores mais progressistas do que outros. Verifica que, entre os anos 1990 e o início da primeira década dos anos 2000, houve uma tentativa nos materiais didáticos de compreender o ponto de vista árabe. Porém, há uma tendência em nossa década – que vem se radicalizando nos últimos anos – que identifica o rótulo de palestino com todos os obstáculos para um mundo de paz, prosperidade e desenvolvimento. Sendo assim, os palestinos são imediatamente vinculados ao “problema palestino”. Essa era a visão que imperava nos anos 1950 e 1960. E essa é a realidade hoje desses livros. De acordo com a autora, trata-se de uma representação manipuladora, que tende a deformar propositadamente os fatos em análise.
O livro de Nurit Peled-Elhanan é bem construído e bem escrito. Trata de uma temática absolutamente relevante para um Brasil que hoje discute temas como os da Escola sem Partido. Na atualidade do debate pedagógico do Brasil, a condição política da escolarização tem sido amplamente discutida. São demarcados os aspectos doutrinários possivelmente inscritos no dia a dia da escolarização. Este livro faz ver o contrário: demonstra claramente que são os setores conservadores, postos à direita da História, que procuram tornar ideológico aquilo que, no limite, é histórico. À escola cabe sim um partido: o partido da justiça. Alguém poderia dizer que esse conflito entre judeus e palestinos está muito distante de nós. Contudo, creio que vale aqui o antigo dístico: nada do que é humano pode nos ser estranho. Convido, finalmente, à leitura.
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Excelente vídeo!
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