O pioneirismo e a atualidade de Engels

"A leitura de 'A origem da família, do Estado e da propriedade privada' é mais que uma visita a um empreendimento teórico pioneiro para a época. É necessária, útil e esclarecedora nestes tempos marcados por superficialidades interpretativas, desapreço pelo conhecimento e por fundamentalismos obscurantistas."

Por Clara Araujo.

Obras clássicas transcendem seu tempo. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, livro escrito por Friedrich Engels em 1884 a partir de pesquisas do antropólogo J. Morgan sobre a família e de anotações feitas por Karl Marx, é um clássico. São diversas as contribuições analíticas para uma teoria sobre a gênese de instituições sociais básicas – família, Estado e economia – e sobre conexões entre estas e os temas da opressão e da exploração.  Mas este livro foi, e é, notadamente, um marco nos estudos sobre família, pois forneceu insumos consistentes para desvendar a natureza material e histórica das interações humanas e dos modos de organização da vida social, em especial via família e nas relações de sexo, tais como denominadas pelo autor. Sua análise retirou as relações de gênero da camisa de força da biologia e situou as razões das desigualdades entre homens e mulheres fora dos destinos inscritos nos corpos. Revelou, também, os elos entre estrutura de classes, opressão de gênero e o papel do casamento e da autoridade masculina na tessitura dessa teia de subordinação, controle da reprodução biológica, dos bens econômicos e da propriedade privada.

Engels não foi o único autor no século XIX a tratar dos vínculos entre economia, família e subordinação das mulheres. Mas sua obra foi pioneira em diversos aspectos, inclusive por formular uma teoria materialistas das bases da desigualdade e tentar explicar, a partir dos conceitos de Produção e de Reprodução, os vínculos entre subordinação das mulheres e família como como unidade de reprodução econômica.

Além de pioneira, a obra de Engels segue útil. Família, casamento, vínculos amorosos e de parentesco, trabalho assalariado, o exercício da autoridade masculina ou a autonomia das mulheres, são problemas atuais, teóricos e empíricos, em diversos campos de conhecimento, na política e na própria vida cotidiana. Algumas destas questões ainda são tratadas no século XXI de forma surpreendente, com tintas moralizadoras, desprovidas de registros e evidências empíricas há muito existentes e calcadas em narrativas religiosas que ‘apagam” a sua compreensão histórica, sociológica ou antropológica. A leitura deste livro, portanto, é mais que uma visita a um empreendimento teórico pioneiro para a época. É necessária, útil e esclarecedora nestes tempos marcados por superficialidades interpretativas, desapreço pelo conhecimento e por fundamentalismos obscurantistas.

Há limitações e imprecisões históricas, revistas ou criticadas por estudos contemporâneos. Há críticas feministas importantes de mencionar. A tese do Matriarcado como sistema hegemônico não encontra muita base empírica atualmente, mas a existência e diversidade de famílias matrilineares, sim. A participação da mulher no trabalho agrícola foi subestimada e estudos posteriores revelaram sua presença de forma ampla, assim como nas atividades econômicas em geral. Engels associou a dominação masculina ao surgimento da propriedade privada, subestimando a cultura e vinculando, de modo excessivamente otimista, a superação da opressão de sexo à superação da opressão de classe. Nada disto, contudo, retira a densidade de sua análise e a atualidade de muitas de suas conclusões para nos ajudar a refletir com novos olhares sobre o passado e compreender o presente.

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