As “tramas” do testamento: Morgan, Marx e Engels

Lucas Parreira Álvares investiga as origens do hoje clássico "A origem da família, da propriedade privada e do Estado", escrito por Engels como 'execução de um testamento' de Marx: "revisitá-la, apesar de suas deficiências, é tarefa imprescindível para aqueles que acreditam em uma concepção materialista da história."

Por Lucas Parreira Álvares.

Não que seja digno do enredo de um filme de Scorcese, mas do fim da década de 70 até início da década de 80 do século XIX alguns desencontros e desacertos tiveram incidência na compreensão, por vezes nebulosa, da relação existente entre o pensamento de Marx e de Engels com os escritos do antropólogo americano Lewis Henry Morgan1. Com o recém lançamento da Editora Boitempo de uma nova edição com uma nova tradução da obra clássica de Engels, A origem da família, da propriedade privada e do Estado, é fundamental retornarmos à “trama” que motivou a escrita dessa obra. Em outras palavras, investigarmos a origem de “A origem…”.

Nos fins de 1879, o sociólogo russo Maksim Kovalevski mantinha uma amizade próxima com Karl Marx, o que pode ser constatado tanto pelas visitas que o russo fazia ao velho mouro, quanto pelas cartas trocadas entre eles. Em uma dessas visitas, Kovalevski levou consigo um livro de sua própria autoria e, com este, presenteou seu anfitrião. Tratava-se da obra Propriedade Comunal da Terra2 que inclusive ia ao encontro das pesquisas que Marx desenvolvia naqueles anos para a redação do Livro III de O capital. Não era de se surpreender que Marx, baseado em seu hábito de fazer transcrições, comentários e extratos de todos os livros que lia, havia feito esse mesmo procedimento com o livro do sociólogo russo.

Entretanto, o que nos interessa nessa visita é que além do próprio livro, Kovalevski também emprestou a Marx uma obra que havia sido lançada dois anos antes em território estadunidense. Essa obra recém lançada ainda era conscientemente pouco difundida na Europa em função de um suposto boicote por parte de economistas alemães e historiadores ingleses. Trata-se de Ancient Society, de autoria do americano Lewis Morgan, originalmente publicada em 1877. Não diferente, porém de maneira ainda mais significativa, Marx tomou notas, comentários e transcrições, nos anos de 1880 a 1881, dessa obra de Morgan.

Em março de 1883, com o agravamento da situação de sua saúde, Marx veio a falecer. A morte de Marx teria interrompido, segundo Engels, os planos de “expor os resultados das investigações de Morgan para esclarecer todo o seu alcance em relação às conclusões de sua análise materialista da história” – embora não exista nenhuma comprovação dessa intenção de Marx.

Assim, após a morte de Marx, e motivado pela defesa do legado de seu eterno companheiro, Engels sentiu-se na responsabilidade de produzir uma obra que tinha como fundamento os estudos que Marx vinha realizando sobre Morgan. Para Engels, essa tarefa equivaleria à “execução de um testamento”. Assim, no ano seguinte à morte de Marx, já em 1884, o livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado: em conexão com as pesquisas de Lewis H. Morgan, de autoria de Friedrich Engels, tomou forma e foi finalmente publicado.

O interesse de Engels por Ancient Society pode ser verificado em algumas de suas cartas datadas de 1884. Em fevereiro desse ano, Engels (1995a, p. 103) escreve a Kautsky que “sobre a situação da sociedade primitiva, existe um livro decisivo, tanto como tem sido Darwin para a biologia […] Trata-se de Morgan, Ancient Society.” Já em carta enviada a Sorge, em março, Engels diz que Morgan “acaba tirando conclusões comunistas para o dia de hoje” (1995b, 115-116). Mas qual foi o motivo pelo qual a obra de Lewis Morgan teria realmente despertado tanto interesse nos autores de A ideologia alemã? No prefácio de A origem, Engels esboça uma resposta: “Morgan descobriu de novo, e à sua maneira, a concepção materialista da história – formulada por Marx, 40 anos antes – e, baseado nela, chegou, contrapondo barbárie e civilização, nos pontos principais aos mesmos resultados de Marx”.

As indefinições acerca do papel de Marx na produção dessa obra de Engels produziram algumas interpretações inusitadas por parte da tradição marxista. Como exemplo, podemos mencionar a de Hal Draper, que acreditava que A origem foi o resultado de uma estreita colaboração anterior entre Marx e Engels e, por isso, deveria ser considerada uma obra em conjunto (Draper, 1970). Além disso, a crença de que Morgan teria redescoberto a concepção materialista da história teve incidência na receptividade positiva de Morgan na antropologia soviética da primeira metade do século XX (cf. Tolstoy, 2017).

Há, no entanto, um detalhe sobre essa trama que merece uma atenção especial por parte dos intérpretes: Engels, para a publicação da primeira edição de A origem da família, da propriedade privada e do Estado não teve acesso ao livro original de Lewis Morgan, afinal, essa obra do antropólogo americano era de difícil acesso na Europa naqueles anos. Um dos poucos exemplares de que se tinha notícia estava sob o domínio de Marx. Porém, o livro de autoria de Morgan não foi encontrado na biblioteca póstuma do velho mouro. Ou seja, é bem provável que Marx tenha devolvido o exemplar de Ancient Society a Kovalevski. Assim sendo, o material com o qual Engels teve contato para a confecção de A origem não foi o livro do antropólogo americano, mas sim os cadernos nos quais Marx havia transcrito e comentado o texto de Morgan.

Quase um século anos depois do início dessa “trama”, os comentários, transcrições e rascunhos de Marx à obra de Morgan foram finalmente publicados, o que possibilitou as seguintes questões: a obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado, publicada por Engels é fiel à leitura que Marx fizera de Lewis Morgan? Será que esse livro de Engels é realmente “a execução de um testamento”?

Depois de mais de duas décadas de edição, Lawrence Krader publicou em 1972 a obra The ethnological notebooks of Karl Marx. Tal obra apresenta excertos de Marx como consequência de leituras realizadas pelo velho mouro de quatro autores: Sir John Lubbock (The origin of civilization, 1870); Sir Henry Sumner Maine (Lectures on the early history of institutions, 1875); Sir John Budd Phear (The Aryan village in India and Ceylon, 1880); e por fim – e segundo Krader (2015, p.238) “de todos, o que mais o impressionou” – Lewis Henry Morgan (Ancient Society, 1877)3.

Dessas pesquisas, incluindo Ancient Society, Marx “absorveu as informações históricas e os dados coligidos, mas não comungou com os rígidos esquemas sobre a sucessão inelutável de estágios determinados da história humana” (Musto, 2018, p.40). Engels, ao contrário, acreditando que havia um interesse de Marx em publicar uma obra que tinha como fundamento expor as descobertas de Morgan – embora não exista nenhuma comprovação disso – apresentou, em A origem, uma exposição que em grande medida tratou Morgan de maneira acrítica, aceitando seus esquemas e suas principais formulações (cf. Álvares, 2019). Em linhas gerais, podemos sugerir que a leitura feita por Marx da obra de Morgan foi bastante cuidadosa, enquanto que a de Engels foi, por vezes, precipitada…

A consequência dessa precipitação de Engels teve uma implicação no modo pelo qual A origem da família, da propriedade privada e do Estado foi recebida por grande parte da literatura do século XX que tratou de questões semelhantes, seja por uma abordagem antropológica, feminista, ou mesmo por intercessões entre ambas. Simone de Beauvoir, por exemplo, afirma que “a exposição de Engels permanece […] superficial e as verdades que descobre parecem-nos contingentes” (Beauvoir, 1970, p.76). A marxista Raya Dunayevskaya a caracteriza como uma obra que pouco tem a oferecer para a libertação feminina (Dunayevskaya, 1982, p.248). Embora a antropóloga Gayle Rubin também afirme que “A origem é um livro decepcionante”, não deixa de reconhecer que trata-se de um texto com “considerável sagacidade, uma qualidade que não deve ser ofuscada por suas limitações” (Rubin, 2017, p.16). Já a antropóloga Eleanor Leacock aponta que o livro de Engels possui sua relevância, sobretudo em função de que “os fundamentos de suas linhas gerais para a história permanecem válidas” (Leacock, 2010, p.227).

Essas constatações não impedem o reconhecimento da importância do texto de Engels. A origem da família, da propriedade privada e do Estado é uma investigação que deve ser analisada conforme seu tempo, mais precisamente a segunda metade do século XIX. O texto de Engels complementou em grande medida as informações trazidas por Morgan, principalmente aquelas que se referem aos estudos históricos e as informações etnográficas de contextos europeus, como por exemplo o surgimento das gens grega, romana, germânica e céltica. Além disso, a erudição de Engels, bem como sua intenção revolucionária, fez com que o relevante levantamento de Morgan fosse acrescido de uma perspectiva que pressupunha a existência de classes sociais – uma “sutil” informação ausente nos estudos do antropólogo estadunidense. Apesar de ter sido escrito em uma época na qual o material disposto era insuficiente para a confirmação de algumas hipóteses levantadas, a obra de Engels, mesmo que com suas deficiências, representa aquilo que se tinha de mais sofisticado em produção teórica de seu tempo acerca do assunto tratado. Revisitá-la é, portanto, uma tarefa imprescindível para aqueles que acreditam em uma concepção materialista da história.

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Onde encontrar?

Livraria da Travessa
Livraria Martins Fontes
Livraria Livros & Livros
Loja virtual da Boitempo
Livraria Cultura

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Notas

1 Este texto é uma adaptação de um dos capítulos de minha dissertação Flechas e Martelos: leituras de Marx e Engels da obra Ancient Society de Lewis Morgan.
2 Do original Obshchinnoe Zemlevladenie.
3 Para uma visão crítica ao processo de edição de Krader dos Cadernos Etnológicos de Marx, conferir Álvares (2017; 2019).

Referências

ÁLVARES, Lucas Parreira. “Críticas ao artigo “Marx na Floresta” de Jean Tible/Debate Margem Esquerda. In: Blog da Boitempo. 04/12/2017.
ÁLVARES, Lucas Parreira. Flechas de Martelos: leituras de Marx e Engels da obra Ancient Society de Lewis Morgan. Belo Horizonte: Dissertação de Mestrado, UFMG, 2019.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos, trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970, 309p.
DRAPER, Hal. Marx and Engels on Women’s Liberation. International Socialism (1st series), No.44, July/August 1970, pp.20-29.
DUNAYEVSKAYA, Raya. Rosa Luxemburgo: La liberación feminina y la filosofia marxista de la Revolución, trad. Juan José Utrilla. Ciudad de Mexico: Acesso livre, 2012, 291p.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado: em conexão com as pesquisas de Lewis H. Morgan, trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019, 192p.
ENGELS, Friedrich. Engels to Karl Kautsky: 16 february 1884. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Volume 47. Londres: Lawrence&Wishart. 1995a, p.101-103.
ENGELS, Friedrich. Engels to Sorge: 7 march 1884. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Collected Works. Volume 47. Londres: Lawrence&Wishart. 1995b, p.113-116.
KRADER, Lawrence. Introdución: los cuadernos de lectura. In: MARX, Karl. Escritos Sobre la Comunidad Ancestral. La Paz: Fondo Editorial y Archivo Histórico de la Asamblea Legislativa Plurinacional, 2015, p.235-244.
LEACOCK, Eleanor Burke. “Introdução à Edição Estadunidense”. In: ENGELS, Friedrich. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. São Paulo: Expressão Popular, 3Ed., 2012, p.227-302.
MUSTO, Marcello. O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1883). São Paulo: Boitempo Editorial, 2018, 158p.
RUBIN, Gayle. O Tráfico de Mulheres. In: RUBIN, G. Políticas do Sexo, trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo: Ubu Editora, 2017, p. 9-61.
TOLSTOY, Paul. “Lewis Morgan e o Pensamento Antropológico Soviético“, trad. Lucas Parreira Álvares, Passa Palavra, 30 nov. 2017.

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Lucas Parreira Álvares, nascido no município de Pompéu (MG), é mestrando em Direito pela UFMG e graduando em Ciências Sociais pela mesma instituição. No Blog da Boitempo, publicou o texto “Críticas ao artigo ‘Marx na Floresta’ de Jean Tible” e “O velho Marx, de Marcello Musto: por que essa biografia merece ser lida”. Atualmente desenvolve pesquisas sobre os Cadernos etnológicos de Karl Marx.

1 comentário em As “tramas” do testamento: Morgan, Marx e Engels

  1. professoredgarsmaniotto // 10/04/2019 às 1:51 pm // Responder

    Gostei muito texto, já li tanto A origem da família, da propriedade privada e do Estado; como Ancient Society de Morgan, seu texto realmente faz uma síntese perfeita destas obras. Como antropólogo desenvolvo pesquisa sobre Morgan, Taylor e Frazer, por isso gostaria de ler sua dissertação de mestrado “Flechas de Martelos: leituras de Marx e Engels da obra Ancient Society de Lewis Morgan”. Onde posso encontrar? Não localizei no repositório da UFMG.

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