O que resta da ditadura?
Hoje, a ditadura se mostra mais presente do que nunca. Talvez, junto à pergunta sobre o que resta da ditadura, seria necessário perguntarmos também como tamanha presença autoritária pôde permanecer ou ressurgir.
Por Edson Teles.
Houve momentos, no pós-Ditadura, em que dizíamos que o resto era o “entulho autoritário”: leis, instituições e, inclusive, indivíduos produzidos pelo regime comandado pelos militares. Eram os casos, por exemplo, da Lei de Segurança Nacional, da Polícia Militar e do José Sarney.
Quando as instituições da nova democracia pareciam estar razoavelmente consolidadas – afinal já havia se passado alguns anos do governo de um partido de esquerda –, alguns movimentos sociais apontavam a permanência da Polícia Militar como um resto do passado autoritário.
Junto com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (CNV, 2012-2014) surgiram as primeiras expressões públicas em favor de uma “intervenção militar”. Para muitos, os porta-vozes desse discurso pareciam uma louca minoria oriunda diretamente dos anos 60 e 70. O Relatório Final da CNV coincide com a reeleição de Dilma Roussef e, com isso, o início das articulações para a sua derrubada. Incluindo aí a criação de uma candidatura assumidamente defensora da Ditadura. À época, o capitão-candidato era incapaz de almejar resultados eleitorais significantes.
Com o impeachment da presidenta, em 2016, se elabora o discurso de que vivíamos sob um golpe, suscitando fantasmas de 1964. E com todas as dificuldades de conjuntura e de ação política para sustentar essa afirmação. Afinal, não havia tanques nas ruas, nenhum fuzil foi apontado para políticos contrários à derrubada de Dilma, o próprio Congresso Nacional aprovara a deposição da mandatária eleita nas urnas. Ainda mais, o principal partido de esquerda, praticamente enxotado do governo pelos mesmos que tinham a ele se aliado nos mandatos anteriores, mantinha participação no processo institucional subsequente.
É incrível como os acontecimentos históricos e a política não pedem passagem para existirem. Irrompem, emergem, desaparecem, misturam-se. São imprevisíveis e, ao mesmo tempo, irremediáveis, como bem dizia Hannah Arendt.
No livro que organizei juntamente com o Vladimir Safatle, em 2010, O que resta da ditadura: a exceção brasileira, perguntávamos, na orelha: “[…] a exceção brasileira indica as circunstâncias que permitiram certa continuidade da ditadura brasileira. O fato é que a ditadura não está somente lá onde o imaginário da memória coletiva parece tê-la colocado. Mais ainda: sua permanência não é mais simples presentificação daquilo que já foi, do passado de repressão, mas reaparece nas práticas institucionais”.
Hoje, infelizmente, a ditadura se mostra mais presente do que nunca. No discurso de ódio, na retomada da guerra a um inimigo mais apropriado à Guerra Fria, na presença ostensiva dos militares no governo, na violência contra o pensamento dissonante, na opção pela legitimação explícita da violência de Estado. Além das estruturas, se tem as estratégias tradicionais das formas de dominação no país: o racismo, o feminicídio, o etnocídio, a LGBT+fobia (entre outras formas de ser e existir que sofrem a violência do atual governo).
Talvez, junto à pergunta sobre o que resta da ditadura, seria necessário perguntarmos também como tamanha presença autoritária pôde permanecer ou ressurgir.
Eu não teria a competência para responder a estas questões satisfatoriamente. Mas levanto algumas hipóteses. Um dos modos mais efetivos de se manter uma ditadura no Brasil (não apenas aquela ditadura, mas uma ditadura social e existencial contínua, armada cotidianamente) é o racismo estrutural.
Na disputa das narrativas sobre o governo dos militares, a produção do “inimigo” subversivo, vermelho, contrário à família e aos corretos costumes da parte civilizada da sociedade, foi gradativamente perdendo espaço discursivo, sendo inclusive condenado como impróprio a uma democracia. Contudo, permaneceu na forma de estruturas e estratégias autoritárias na transição da doutrina de segurança nacional, dos militares, para a segurança pública da democracia. O preso político foi substituído pelo preso comum, mas sem a qualificação do sujeito ético opositor ao regime autoritário.* No “novo preso” (tão velho quanto o processo de colonização destas terras), o vermelho se transforma em preto. O subversivo em “bandido”, “vagabundo”, “marginal”, malandro. A incivilização e o caráter inapropriado dos “novos sujeitos” fora da ordem se expressam nos indivíduos criados somente pela mãe e/ou avó. Uma verdadeira “fábrica de elementos desajustados”, como já declarou o atual general-vice-presidente.
O que é difícil de se aceitar e concordar, até mesmo de acreditar, é que o estado de direito pós-Ditadura manteve e sofisticou, sob os olhos, as práticas e as leis da democracia, todo um aparato repressivo fundamentado no ódio. As estratégias contra o inimigo racial valem igualmente para as outras vidas descartáveis. A cada duas horas, uma mulher é vítima de feminicídio no país. Vivemos no território nacional que mais mata pessoas trans no mundo. As comunidades indígenas estão sofrendo bombardeio de pesticidas.
Quando, na última campanha eleitoral, o candidato vencedor mobilizou o discurso racista e preconceituoso, não o fez a partir de uma criação inusitada. Para os movimentos negros e feministas, para os coletivos das subjetividades alvo dos ataques, não houve surpresa.
O pior é que não se pode dizer que há simplesmente uma continuidade. No atual contexto, o questionamento sobre o que resta da democracia nos obriga a constatar que a violência já é significativamente maior do que nos anos anteriores, quando estávamos na democracia de baixa intensidade. E tende a se agravar. Na medida em que as subjetividades que são vítimas da institucionalidade pública se encontram em situações precárias e de extrema desigualdade, o agravamento certamente se abaterá com maior vigor sobre esses corpos.
A constatação de que o país racista, patriarcal e classista conformou as estruturas e estratégias de manutenção de uma ditadura no cotidiano da vida da maioria da população nos convida a fazer incursões necessárias em cantões invisibilizados do pensamento brasileiro.
Abdias Nascimento, já no fim dos anos 60 (“O negro revoltado”, 1968) e durante os anos 70 (“O genocídio do negro brasileiro”, 1978) analisava e denunciava a máquina de guerra racial. Beatriz Nascimento, em sua filosofia oral (documentário Ori, 1989) e em alguns textos escritos, discorria sobre a condição da mulher negra, assim como nos legou importantes lições sobre formas de resistência, que ela chamava de quilombismo.
Recentemente, em uma fala pública, a deputada estadual por São Paulo Érica Malunguinho sugeriu ao público, que em sua maioria era branco: “quando você entrar em algum lugar de sua circulação, conte quantos negros ali se encontram. E aí você verá o racismo estrutural”.
Escrevo esse texto que você agora lê no interior da biblioteca de uma universidade pública. Olho para os lados, para trás, no entorno. Não vejo negros.
Habito, em minha branquitude, o privilégio de não visualizar a cada instante o resto de uma ditadura. Mas, se observo com atenção, percebo, ela se encontra aqui.
* Para aprofundar a análise da produção do “novo inimigo” em democracia ler o relatório da Pastoral Carcerária “Tortura em tempos de encarceramento em massa”, com destaque para as análises de Adalton Marques e Suzane Jardim.
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Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pela Boitempo, organizou com Vladimir Safatle a coletânea de ensaios O que resta da ditadura: a exceção brasileira (2010), além de contar com um artigo na coletânea Occupy: movimentos de protesto que tomaram as ruas (2012) e no livro de intervenção O ódio como política: a reinvenção das direitas no Brasil (2018). Também assina um dos artigos do dossiê dedicado à Comissão da Verdade do n. 19 da revista Margem Esquerda. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
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