Quae sera tamen: Alfeu de Alcântara Monteiro foi o primeiro assassinado pelo golpe de 64

No momento em que o fake-presidente do Brasil determina a comemoração nos quartéis do golpe de 64 e da sanguinária ditadura que se seguiu, mais uma vez o tenente-coronel aviador que ajudou a salvar Porto Alegre de um bombardeio criminoso levanta voo para nos lembrar de sua resistência inquebrantável. 

Por Flávio Aguiar.

Transitou em julgado neste março de 2019, sem recurso por parte da União, a sentença de dezembro de 2017, proferida pelo juiz federal Fabio Hassen Ismael, lotado em Canoas, segundo a qual o tenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro foi assassinado na Base Aérea daquela cidade, pelo oficial da Aeronáutica Roberto Hipólito da Costa, na presença cúmplice do também oficial daquela arma, Nelson Freire Lavanère-Wanderley, nomeado comandante da unidade militar e logo depois ministro. O acontecimento se deu em 4 de abril de 1964, às 21 horas, três dias, portanto, depois do golpe de 1º de abril.

A sentença desmente a versão oficial que prevalecia desde então. Segundo esta, chamado pelo novo comandante da base e instado a se entregar ou se apresentar no Rio de Janeiro, o tenente-coronel se insurgiu, sacou de uma arma e atirou no seu novo superior, ferindo-o levemente. O outro oficial presente, Roberto Hipólito da Costa, teria agido em defesa do futuro ministro, atingindo mortalmente o rebelde, descrito depois como “fanático”.

O fato é que a versão oficial nunca colou. Dizia, por exemplo, segundo os autos do julgamento da época, que o tenente-coronel disparara cinco tiros à queima-roupa contra o novo comandante da base, errando todos, só o atingindo “de raspão”.

Lembro-me de frase proferida por meu pai, na mesa do almoço, no dia seguinte, sobre o episódio: “Não deram chance para o homem”.

Quem era “o homem”? Oficial de carreira impecável, o tenente-coronel aviador se notabilizara durante o episódio da “Legalidade”, em 1961, quando o governador Leonel Brizola se insurgira contra o golpe deflagrado pelos ministros militares que queriam impedir a posse do vice-presidente João Goulart, depois da renúncia de Jânio Quadros, ao final de agosto daquele ano.

Diante da resistência do governador, entrincheirado no Palácio Piratini, em Porto Alegre, e da posição legalista do III Exército, o comando militar de Brasília ordenou o bombardeio aéreo da sede do governo. Este ficava e fica numa área densamente habitada, em frente à praça da Matriz, no centro histórico da cidade. Aconteceria uma chacina, como a de 16 de junho de 1955 em Buenos Aires, quando militares atacaram a Casa Rosada e a Central de Trabalhadores (CGT) por terra e pelo ar, bombardeando e metralhando aqueles edifícios e a Plaza de Mayo, com uma saldo de mais de 300 mortos e 700 feridos.

Os sargentos e oficiais legalistas da Base Aérea de Canoas se insurgiram contra a ordem, e impediram o bombardeio. Salvaram a cidade. Aureliano Passos e outros oficiais golpistas fugiram para o Rio de Janeiro. E o tenente-coronel Alfeu de Alcântara Monteiro assumiu o comando da base. Foi ali que lavrou-se a sua sentença de morte.

Escrevi longo e detalhado ensaio sobre a vida deste oficial nacionalista, patriota e dedicado, “Ai de ti, 64”, publicado pela Boitempo em meu livro Crônicas do mundo ao revés, de 2011. Só lembrarei que em março de 1964, depois de muitas andanças e contradanças, que sempre ressaltaram a retidão de seu caráter, o tenente-coronel estava de volta à base de Canoas, recolhendo pertences e documentos, pois se mudava para o Rio de Janeiro. Sobreveio o golpe. Os sargentos legalistas se insurgiram de novo. E quiseram entregar o comando ao seu oficial de 61.

A resistência nem houve: desmoronou antes de haver. João Goulart fugiu para o Uruguai, depois Argentina. Recordo relato de vizinho participante de uma reunião onde estavam, além de Jango, Brizola, o então prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, o comandante do III Exército, Ladário Pereira Teles, além de outros protagonistas políticos. O vizinho em questão representava os petroleiros da Petrobras, dispostos a resistir desde que tivessem armas, impedindo que tropas golpistas tivessem acesso a combustível. Brizola queria resistir. Ladário também. Mas Jango desistiu. Foi embora.

Pendurado no pincel, o tenente-coronel foi chamado à presença do novo comandante, escudado por Hipólito. Os três se encerraram numa sala. E houve o desfecho trágico.

Por ocasião daquele ensaio, escrevi que provavelmente nunca se saberia ao certo o que acontecera. Mas já havia indícios suficientemente fortes de que o oficial democrata fora abatido pelo golpista dolosamente. Resumirei também aqui os argumentos, que podem ser conferidos no ensaio a que aludi. O tenente-coronel foi atingido por oito tiros, disparados por uma arma automática, em direção ascendente. Seu corpo tinha dezesseis perfurações, o que levanta a hipótese de a arma do crime ser uma metralhadora. Mas nas circunstâncias, à queima-roupa, os disparos atravessam o corpo. Quatro das balas o atingiram pelas costas, quatro pela frente. Isto sugere que o oficial foi ferido pelas costas e se virou, para enfrentar o agressor, talvez então sacando a arma. É até possível que a bala que feriu Lavanère tenha partido da arma de Hipólito, atravessando o corpo de Monteiro ou errando o alvo, por este ter se virado.

Na época, comentei que não houve exames de corpo de delito, de balística, nem do local do crime, dificultando sua reconstituição. Entretanto, li na notícia deste março que houve uma perícia feita pela Polícia Federal, imagino que recentemente, depois do reconhecimento do caso pela Comissão da Verdade, durante o governo Dilma. Esta estabeleceu que houve sim disparos da arma do tenente-coronel, mas feitos de baixo para cima, o que indica que, ao fazê-los, ele já estava caído ou caindo.

Enfim, há uma justiça poética nesta sentença e no trânsito em julgado. No momento em que o fake-presidente do Brasil determina a comemoração nos quartéis do golpe de 64 e da sanguinária ditadura que se seguiu, mais uma vez o tenente-coronel aviador que ajudou a salvar Porto Alegre de um bombardeio criminoso levanta voo para nos lembrar de sua resistência inquebrantável.

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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Seu mais novo livro é O legado de Capitu, publicado em versão eletrônica (e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

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