Trump e a Venezuela
O desfecho da situação venezuelana terá um importante efeito para a disputa do poder mundial e para o balanço das forças políticas na América Latina.
Por Carlos Eduardo Martins.
A eleição de Donald Trump representa uma inflexão no processo de globalização neoliberal iniciado nos anos 1980 por Ronald Reagan. O processo tem manifestado sinais de esgotamento com a perda de velocidade da expansão do comercio internacional, a retração dos fluxos internacionais de capitais e a queda das taxas de crescimento dos PIBs mundiais, impulsionando a crise do liberalismo global, que atinge a centro-esquerda e a centro-direita. Essa crise se estabelece em particular nos centros tradicionais da economia mundial, como os Estados Unidos e a Europa Ocidental, onde se combinam dois efeitos: Por um lado, a transferência, que vem ocorrendo há décadas, do dinamismo produtivo para a China e o Leste Asiático, ou, de forma setorial, para plataformas de exportação das grandes corporações transnacionais, como no México, o que contribui para nivelar os salários nacionais desses centros para baixo e elevar os seus níveis de desemprego. Por outro, o novo contexto internacional que se impõe nos anos 2010, quando a crise financeira, a recessão e a lenta retomada evidenciam as desigualdades acumuladas e a ineficácia das políticas de combate à pobreza.
Se projeta nesse vazio político uma direita protecionista, populista e politicamente antiliberal que se lança contra as pressões competitivas da globalização. Ela busca restringir a circulação de mercadorias quando esta destrói parcialmente a base industrial nos países centrais, e barrar os fluxos migratórios, quando estes elevam a disputa por empregos e incidem sobre as condições de vida dos trabalhadores nacionais. Trata-se, todavia, de um programa defensivo incapaz de reverter o declínio dos velhos centros imperialistas e, por isso, não rompe com a globalização financeira, apoiando-se na sobrevalorização cambial que proporciona uma riqueza independente de suporte material. Apresenta o excedente econômico como escasso, orienta-se para garantir privilégios e assume a sua expressão mundial mais agressiva e articulada no governo Trump. A política do atual governo estadunidense dirige-se contra o universalismo liberal, colocando-se contra o multilateralismo, os organismos internacionais de solução de controvérsias e a internalização dos custos de proteção ao meio-ambiente. Afasta-se dos encargos da hegemonia e dos custos de proteção mundial ao cobrar maior engajamento financeiro dos países da OTAN, ao reduzir a presença militar dos Estados Unidos no Afeganistão e na Síria, ao tratar aliados, como a União Europeia, como competidores em assuntos comerciais e aos Estados dependentes fronteiriços e subordinados como bombas migratórias permanentes que devem ser desativadas com políticas de Apartheid. Estabelece ainda sanções econômicas e ameaças crescentes contra os principais competidores, como a China e Rússia, e mantém forte hostilidade contra o nacionalismo nos países periféricos e semiperiféricos.
Se o imperialismo unilateral de Trump se afasta do universalismo liberal vinculado à hegemonia, ele o faz para assumir, entretanto, outro formato, mais territorialista e competitivo. A diminuição de sua presença mundial é compensada pelo reforço da violência interestatal em nível regional. Trata-se de um movimento típico de um imperialismo que, afetado pelo liberalismo global, busca relançar-se recorrendo ao controle territorial e à reconquista do seu “espaço vital” ameaçado. O lema “America First” que sintetizou a campanha de Trump deve ser lido à luz da renovação dos objetivos imperialistas presentes nas Doutrina do Destino Manifesto e na política do Big Stick que permearam o expansionismo estadunidense desde a guerra com o México em 1846, passando pela tomada do Império Colonial Espanhol nas guerras de 1898, o Corolário Roosevelt da Doutrina Monroe (1904), as intervenções e ocupações militares no Caribe, América Central e Colômbia/Panamá, até a revogação da Emenda Platt em 1934. Ao invés da política de boa vizinhança, onde o país hegemônico em ascensão assume pretensões mundiais e desloca a sua fronteira de expansão para longe de seu espaço vital, o que se tem agora é o movimento inverso, de retração para defender-se do declínio. O significado da ruptura representada por Trump na política externa estadunidense tem preocupado o establishment liberal e se expressa em publicações recentes da Foreign Affairs, que buscam responder se representa um desvio provisório da ordem liberal, ou uma tendência, que já havia se estabelecido de forma mais embrionária em gestões anteriores, rumo a uma iliberal order.
A ascensão das esquerdas no Cone Sul durante os quinze anos que iniciaram o século XXI tornou-se um forte obstáculo às pretensões estadunidenses de relançar o seu imperialismo recorrendo ao controle das fontes de minerais estratégicos, biodiversidade, força de trabalho e mercados de seu espaço geopolítico de influência e de projeção mundial. A vinculação dessa zona de influência a um projeto de integração regional soberano sul-americano, latino-americano e caribenho fortemente articulado às lideranças chinesa e russa na construção de um novo de poder mundial constitui uma ameaça maior ainda. Os golpes de Estado no Paraguai (2012) e no Brasil (2015), reconhecidos imediatamente pelo governo estadunidense e articulados com seus setores de inteligência pelas oligarquias desses países, configuram parte de uma estratégia em curso de desmonte da esquerda sul-americana. Essa estratégia se manifesta ainda no projeto de conversão dos Estados Unidos em potência industrial petroleira, em implementação a partir de 2008, eliminando o seu déficit na conta petróleo, transformando a periferia latino-americana em exportadora de óleo cru a baixo preço e anulando a política de nacionalização e industrialização de recursos naturais dos últimos 20 anos. Para isso torna-se fundamental o desmonte da PEMEX, imposto durante os governos neoliberais, da Petrobrás, em curso após o golpe de Estado no Brasil, e da PDVSA, com o cerco financeiro à Venezuela e a deposição do governo Maduro.
A Venezuela passa a ter importância estratégica para o imperialismo estadunidense, seja por possuir as maiores reservas de petróleo do mundo, seja por ser a experiência de esquerda mais avançada na América do Sul, ou por seu alto nível de internacionalização, estando o país articulado à construção de um novo eixo geopolítico regional e mundial. Na lista de reservas globais de petróleo, a Venezuela desponta na liderança global com 301 mil bilhões de barris com alcance de 362 anos a partir da produção nacional, ao passo que as dos Estados Unidos, 10 vezes menores, se esgotam em apenas uma década.
O país, durante a República Bolivariana, introduziu a democracia participativa e realizou 24 eleições, tornando-se referência regional e mundial de legitimidade até as eleições legislativas de 2016. Destacou-se como líder da cooperação internacional, dedicando-lhe 1,5% do PIB no período dourado do chavismo, e estabeleceu uma agenda de integração regional que desafiou os esquemas neoliberais, impulsionando a ALBA, a Petrocaribe e a Telesur, que confrontou o monopólio midiático do grande capital. Aprofundou relações comerciais e financeiras com a China e a Rússia, destinado parte expressiva da produção de petróleo à primeira e comprando armas, principalmente, da segunda, com quem tem aprofundado a cooperação militar. Tal cenário torna-se alarmante para os Estados Unidos quando se toma em consideração o forte avanço dos gastos militares russos e chineses em relação aos seus no século XXI.
Após a tentativa frustrada de golpe em 2002, os governos dos Estados Unidos estabeleceram sanções econômicas e políticas à República Bolivariana da Venezuela, buscando, a princípio, sobretudo o seu desgaste e cerco diplomático. As sanções iniciaram-se no governo Bush Filho, que em 2006 proibiu o comercio de armas com a Venezuela, mas aprofundaram-se no governo Obama com a ordem executiva n. 13692, de março de 2015, que declarou situação de emergência nacional na Venezuela, e classificou o país como uma ameaça à segurança dos Estados Unidos. Obama impôs sanções diplomáticas contra 65 venezuelanos que estariam afrontando os direitos humanos e a sociedade civil, congelando ativos de 7 deles. No governo Trump, entretanto, o cerco assume dimensão política e financeira e o seu objetivo principal é a desestabilização e derrubada do governo Maduro. Trump restringe, em agosto de 2017, o acesso do governo venezuelano ao mercado financeiro estadunidense e estabelece sanções contra 58 membros do governo venezuelano, incluindo a Maduro e 8 membros da Corte Suprema. Em 2018, proíbe que qualquer cidadão estadunidense ou dentro dos Estados Unidos compre títulos da dívida do governo venezuelano e da PDVSA, ou realize transações com suas moedas digitais. Em 2019, bloqueia os ativos da PDVSA nos Estados Unidos, proibindo transações financeiras com os mesmos. Permite que essas subsidiárias da PDVSA (CITGO e PDVH) e a outras companhias estadunidenses importem petróleo da Venezuela, até 28 de abril deste ano, desde que o pagamento seja depositado numa conta bloqueada sob controle do governo dos Estados Unidos.
Todavia, o ato mais agressivo da diplomacia imperialista de Trump foi o de lançar o inexpressivo Juan Guaidó como Presidente interino da Venezuela, a partir de um telefonema de Mike Pence, conforme informou o The Wall Street Journal, e articular o seu reconhecimento internacional. Decisiva para isso foi a atuação do Grupo de Lima, criado em 2017, do qual os Estados Unidos participam informalmente, orientando as ações dos governos neoconservadores e neoliberais da América Latina e do Canadá. Oriundo dos protestos estudantis de 2007, protegido de Luiz Enrique Berrizbetia, ex-diretor do FMI, Guaidó estudou em Washington após se formar em Caracas e recebeu treinamento de agências internacionais especializadas em desestabilização, como a CANVAS e Otpor, havendo participado ativamente das Guarimbas.
O reconhecimento de Guaidó como Presidente interino por parte da comunidade internacional abre o espaço para facilitar uma invasão militar estrangeira sobre a Venezuela, tratada retoricamente como a liberação do povo de uma situação de usurpação. Diante da correlação interna desfavorável, Guaidó se pronunciou afirmando não descartar “autorizar” uma intervenção estrangeira. O veto do Senado estadunidense à intervenção na Venezuela constitui um limitador desse possível caminho, ainda que não absoluto, pois nunca houve um Presidente nos Estados Unidos responsabilizado por violar o War Power Act. Desde seu estabelecimento em 1973, ao menos quatro presidentes violaram ele em momentos diferentes: Ronald Reagan, ao invadir Granada sem autorização do Congresso; Bill Clinton, por ter bombardeado o Kosovo por mais dias que os 60 autorizados; Barack Obama por intervir militarmente na Líbia sem autorização; e Trump, por lançar mísseis na Síria em 2017, nas mesmas condições.
Apesar da declaração do grupo de Lima em apoio a uma solução pacífica e descartando uma intervenção estrangeira, as pressões do imperialismo unilateral de Trump, elemento mais dinâmico dessa concertação, trabalham na direção de um maior engajamento de seus aliados regionais na derrubada do governo Maduro. Representantes do trumpismo, como Steve Bannon, têm apoiado os setores mais ideológicos do governo Bolsonaro nessa direção e criticado o pragmatismo e a cautela dos militares brasileiros, expresso nas afirmações do vice-Presidente e General da Reserva, Hamilton Mourão. Todavia, a resistência interna dos militares venezuelanos e de grande parte da população, assim como o apoio da Rússia e da China ao governo Maduro, constituem fortes empecilhos a essa alternativa que pode transformar a América do Sul no epicentro de um conflito regional e mundial de vastas proporções.
Guaidó tem anunciado a implementação de um programa econômico por meio do qual pretende obter US$ 2 bilhões de ajuda humanitária imediata e US$ 20 bilhões doados pelos Estados Unidos e pela União Europeia em troca da privatização de 3.000 empresas, da derrogação da lei de hidrocarbonetos e da subordinação da Venezuela aos pacotes de ajuste estrutural do FMI e do Banco Mundial. A tentativa de utilizar a ajuda internacional como instrumento de penetração militar estrangeira, corrupção e desestabilização interna tem levado ao aumento da escalada de tensões.
O desfecho da situação venezuelana terá um importante efeito para a disputa do poder mundial e para o balanço das forças políticas na América Latina. A eventual derrubada do governo Maduro significará o avanço do imperialismo territorialista e sem hegemonia dos Estados Unidos na região. Será o primeiro passo para derrubar o que o governo Trump chama de “Troika da Tirania”, constituído pelos governos de Cuba, Nicarágua e Venezuela, mas também para conter e desestabilizar os governos nacionais-populares, como os de Bolívia e México, e as democracias, criminalizando os movimentos sociais e as esquerdas, ampliando as bases militares estadunidenses na América do Sul, em particular no espaço amazônico. Tal alternativa afetaria profundamente o projeto do BRICS e do Sul Global, desconectando China e Rússia da região, restringindo-as por um longo tempo, em grande medida, à disputa pelo espaço afro-asiático.
Caso o governo Maduro se sustente, poderá ampliar os seus laços regionais, aproveitando-se do provável desgaste das forças neoconservadoras nos próximos anos – como demonstram a eleição de Manuel Lopez Obrador e a crise do governo Macri – e aprofundar suas relações geopolíticas com os BRICS, buscando retomar o seu dinamismo econômico, político, social e ideológico.
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Carlos Eduardo Martins é Professor Associado do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da UFRJ e Coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ). Membro do conselho editorial da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda, é autor, entre outros, de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011) e um dos coordenadores da Latinoamericana: Enciclopédia contemporânea da América Latina e do Caribe (Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Não Ficção em 2007) e co-organizador de A América Latina e os desafios da globalização (2009), ambos publicados pela Boitempo. É colaborador do Blog da Boitempo quinzenalmente, às segundas.
Excelente!
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Diante deste verdadeiro “samba do criolo doido!” (ooops!) lembrei do que até pode ser uma “chiste”, aquela dos dois amigos conversando, o otimista e o pessimista. O otimista desabafa com o pessimista: “É a situação mundial ´tá mesmo uma merda!”. Aí o pessimista questiona: “Mas será que vai dar p´ra todo mundo?”.
E eu pergunto: o que vamos fazer com o ócio? E eu mesmo respondo: sair a passear com os cachorrinhos de raça! E qual seria o propósito se não o dele latir enquanto a caravana passa!
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