Entre bufões, economistas e políticos profissionais: o lugar dos “costumes” nas disputas políticas
Rodrigo Maia e Paulo Guedes podem não se identificar com os ministros bufões e seu conservadorismo tacanho. Mas a agenda econômica e a agenda dos “costumes” não correm em paralelo.
Por Flávia Biroli.
O deputado Rodrigo Maia, eleito presidente da Câmara dos Deputados para o biênio 2019/20, disse que seria possível votar a reforma da Previdência ainda no primeiro semestre deste ano se o debate sobre a “agenda de costumes” for deixado para um segundo momento. Segundo ele, dessa maneira o plenário da Câmara não seria transformado em “um campo de guerra ideológica”.
Essa posição foi noticiada em diferentes veículos e comentada por analistas políticos que viram nela o óbvio: Maia tem compromisso com a agenda das reformas econômicas, mas não com a dos “valores”. E a costura dos apoios nesta última é menos previsível do que na primeira.
Pode ser que Maia seja de fato um liberal afeito às políticas pró-mercado, em alguma medida resistente à ofensiva dos “costumes”. Parece-me que o deputado não tem perfil para aderir aos brados de que meninas vestem rosa, meninos vestem azul. Também não se sentiria muito à vontade para somar-se aos recados dados ao “globalismo” pelo novo chanceler, um dos representantes mais estridentes do ultraconservadorismo no governo de Jair Bolsonaro. Nesse sentido, opera como deveria: vamos ao que é mais importante e deixemos essa conversa de “ideologia de gênero” e “marxismo cultural” para depois.
Mas esse escalonamento estratégico faz pensar, mais uma vez, sobre o lugar dos “costumes” no programa ultraliberal e ultraconservador que venceu as eleições. Na minha compreensão, não se trata de algo secundário ou acessório. Também não estamos diante de um véu de disputa ideológica sob o qual se ocultariam os conflitos reais.
Como em qualquer processo político, os rótulos já são parte da disputa. “Costumes” e “valores” são eufemismos para pautas relacionadas a direitos fundamentais, como o direito à crítica e à livre expressão, o direito das pessoas à dignidade e à integridade física e psíquica, o direito a não ser perseguida, punida ou sofrer violência pelas opiniões que tenha ou por sua identidade sexual. A pauta que, segundo Maia, seria melhor deixar para depois é aquela que quer instituir a censura nas escolas, ampliar a criminalização do aborto e, até mesmo, se levarmos a sério a vontade de alguns dos parlamentares eleitos, restringir o acesso das mulheres a métodos anticonceptivos.
A disputa de “costumes” é também, em larga medida, uma disputa em torno da legitimidade da religião como fonte de autoridade na definição do ordenamento jurídico e, ainda nesse sentido, diz respeito diretamente aos contornos da democracia e do Estado de Direito. Estão em disputa os padrões das relações entre religião e política e, com isso, a garantia de liberdade para que os indivíduos se orientem segundo suas próprias crenças e a garantia para a pluralidade de religiões e estilos de vida.
Em nome das tradições e da família, estão sendo disputados os papeis de mulheres e homens em sociedades em transformação. O projeto ultraconservador é uma proposta renovada de controle sobre os corpos, mais especificamente sobre a sexualidade e sobre a capacidade reprodutiva das mulheres.
Rodrigo Maia e Paulo Guedes podem não se identificar com os ministros bufões e seu conservadorismo tacanho. Mas a agenda econômica e a agenda dos “costumes” não correm em paralelo. Da desregulamentação do trabalho à redução de direitos previdenciários e do sistema de seguridade, a agenda econômica tem impacto direto no cotidiano da sociedade. E quando falamos em cotidiano, é bom lembrar que estamos falando de como organizamos nossas vidas, algo que é diretamente ancorado na variedade dos laços entre as pessoas e em como eles são ativados na prática. Quem faz o que e em que horários? Quem cozinha? Quem busca as crianças na escola? Há tempo para essas funções? Se não há, como isso é resolvido? Que formas de apoio recíproco são possíveis, que formas de violência atravessam esse cotidiano?
No livro Women’s Oppression Today, publicado em 1985, Michèlle Barrett falava da função das ideologias naturalistas no século XIX, entre elas o ideal da maternidade. Naquele momento, o papel das mulheres era redefinido com as transformações nas dinâmicas e nos espaços do trabalho remunerado associadas ao processo de industrialização. Uma questão crucial se colocava, ainda que não tenha sido assim enunciada ou discutida politicamente: quem assumiria a responsabilidade pelas crianças quando o trabalho remunerado se afastava da vida doméstica e de seus ritmos? De acordo com a autora, os homens tiveram, naquele momento, condições para definir a resposta a essa questão de maneira que foi vantajosa para eles.
O cuidado com as crianças, que é parte do cotidiano da sociedade, segue sendo de responsabilidade primordialmente das mulheres. Essa é uma das dimensões mais significativas da divisão sexual do trabalho, que se conecta aos padrões de gênero no acesso a ocupações e cargos, aos níveis maiores de desemprego e aos salários mais baixos das mulheres, mesmo em um contexto em que apresentam nível educacional superior aos dos homens. Com o aumento da expectativa de vida e a redução das taxas de natalidade, isto é, com o envelhecimento da população, o cuidado com os idosos também se coloca como um desafio incontornável.
O aumento dos níveis de escolarização e de participação das mulheres no mercado de trabalho, acompanhado por mudanças nas expectativas que têm em relação às suas vidas, vem redefinindo práticas e valores de modo que afeta as relações conjugais, parentais, amorosas. É algo que remete a duas dimensões dos conflitos atuais, o controle sobre os corpos das mulheres e o papel que assumem diante das demandas de cuidado. De fato, uma leitura atenta de registros da campanha contra o gênero, no Brasil e em outras partes da América Latina, mostra que se trata de colocar as pessoas em “seus lugares”, de frear mudanças que são vistas como desordem moral e de fixar de maneira clara identidades e funções.
A partilha de responsabilidades entre mulheres e homens não é algo que se estabelece independentemente do contexto socioeconômico. As demandas e mesmo os significados de cuidar de quem é mais vulnerável, por exemplo, variam segundo o grau de responsabilidade por esse cuidado que é assumido coletivamente, por meio de políticas públicas, de creches, de escolas nas quais as crianças possam aprender e receber cuidado enquanto os responsáveis por elas desempenham outras funções, de espaços e cuidado adequado para pessoas com necessidades especiais. Em sociedades desiguais, a menor responsabilidade coletiva e expressa na forma de políticas públicas de cuidado pressiona sobretudo as mulheres mais pobres, uma vez que aquelas que têm renda mais elevada contam com o trabalho de outras mulheres para gerir as tensões entre trabalho e vida doméstica, inclusive as tensões com companheiros e maridos que eventualmente não compartilhem com elas as responsabilidades da vida cotidiana.
Não é simples estabelecer uma conexão entre o cuidado, o controle sobre os corpos e a sexualidade. Meu objetivo não é defender que exista uma lógica causal única, ainda que eu entenda que esses controles sejam convergentes na defesa de uma ordem social patriarcal. Parece-me importante que tenhamos atenção às conexões entre os esforços para ampliar a regulação dos corpos, a retomada do discurso naturalista numa perspectiva religiosa e a redução das garantias sociais para trabalhadoras e trabalhadores, que vem acompanhada de novos patamares de privatização das dimensões políticas e públicas.
Os novos chamados à ordem e a apologia à família ganham força justamente quando os sistemas de proteção – ainda que precários – que foram construídos numa perspectiva de responsabilidade coletiva pela vulnerabilidade se dissolvem. Medidas de austeridade que reduzem o orçamento para equipamentos públicos; desregulamentação do trabalho que amplia as incertezas e torna mais difícil programar a rotina laboral, ter acesso a tempo e a recursos de forma previsível; redução do acesso a seguridade e a benefícios sociais: a responsabilidade pelo cuidado vai sendo crescentemente privatizada. E quem a assumirá no âmbito privado, doméstico, familiar? Seguindo os padrões atuais da divisão do trabalho, as mulheres. Mas e se essas mulheres têm expectativas que ultrapassam o desempenho dos papeis tradicionais? E se a maternidade, em sua indubitável relevância, não corresponder a tudo que esperam realizar e viver? E se elas tiverem uma compreensão crítica das hierarquias de gênero e da gestão patriarcal de seus corpos?
A ideologia naturalista de base religiosa tem uma resposta e ela está bem instalada no governo brasileiro, ainda que seja propagada em graus distintos pelos 20 ministros e 2 ministras que o compõem. A resposta é, como no século XIX, que as mulheres teriam sido naturalmente talhadas para assumir o cuidado socialmente necessário à reprodução social. Se não o assumem quando é necessário que o façam, há algo de errado com elas.
Para legitimar-se, o naturalismo precisa determinar o que seria artificial. Associado a princípios religiosos, precisa denunciar o que seria desviante. Daí o papel do que vem sendo nomeado como “ideologia de gênero” e que remete a uma campanha iniciada nos anos 1990. A artificialidade e o desvio estariam na diversidade sexual, na liberdade no exercício da sexualidade pelas mulheres, assim como na tensão entre os papeis que exercem na esfera pública, a maternidade e a responsabilidade prioritária pelo cuidado. Ainda que Maia e mesmo Guedes não ecoem os ministros-bufões e não sejam, eles mesmos, afeitos à agenda conservadora de “costumes”, qual será sua resposta para os desarranjos sociais provocados pelas políticas econômicas que defendem?
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Para aprofundar a reflexão sobre as imbricações entre as chamadas pautas “morais” e de “costumes”, e as pautas ditas econômicas, ligadas à reprodução material da vida, no contexto político brasileiro contemporâneo, recomendamos a leitura de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil, último livro da cientista política Flávia Biroli. Na TV Boitempo, a autora conduz uma leitura comentada da obra que destrinhca a obra, capítulo a capítulo, ao longo de seis vídeo-aulas. Vale a pena conferir:
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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Escreve mensalmente para o Blog da Boitempo, às sextas.
Gostaria de entrar em contato com a Flávia Biroli para evento em Fortaleza. Gostaríamos se possível, lançar o seu último livro
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