A grandiosidade de Padura
Ricardo Lísias escreve sobre o novo livro do escritor cubano Leonardo Padura, "A transparência do tempo": "não há nenhuma dúvida: este é o livro de um dos maiores escritores do nosso tempo."
Por Ricardo Lísias.
Leonardo Padura trabalha com grandiosidades. Elas vão de convulsões políticas gigantescas, como as consequências ideológicas do assassinato de Trótski em O homem que amava os cachorros, a intervalos consideráveis de tempo, como o arco que vai do século XVII até o ano de 2007, passando pela Segunda Guerra Mundial, em Hereges. Agora, em A transparência do tempo, seu último romance, a grandiosidade não está apenas no trânsito entre a Guerra Civil Espanhola e o cotidiano lírico e ao mesmo tempo caótico da Cuba imediatamente anterior à morte de Fidel Castro, mas também no evidente apuro técnico com que o autor conduz as ferramentas do trabalho literário.
Os diálogos aqui parecem ainda mais bem-acabados que nos livros anteriores. O lusco-fusco de Havana dá o tom da melancolia que toma conta do nosso velho conhecido detetive Mario Conde, um homem agora chegando aos sessenta anos. A perícia descritiva, outra habilidade que Padura vem cultivando, assume aqui um papel central: como as personagens são mais contemplativas, evidentemente seus olhos trabalham mais. Para uma história que lida com as artes plásticas e seus meandros, o recurso é fundamental. Bem-feito como está, ajuda o livro se tornar esteticamente ainda mais valioso.
A força de A transparência do tempo, porém, não vem apenas da manipulação magistral da forma romanesca. Ela se dá ainda por meio da discussão que propõe: a violência com que as estruturas políticas acabam muitas vezes influindo na vida de cada um dos indivíduos que, para o bem ou para o mal, precisam lidar com elas. A sexualidade é composta no romance a partir do movimento que uma escultura desaparecida cria na vida de cada uma das personagens. Às vezes parece mais visível, outras se oculta no medo da rejeição.
Se no plano narrativo há um mistério que percorre desde a intimidade das personagens até o mundo nem sempre claramente saudável das artes plásticas, no que diz respeito ao talento literário de Leonardo Padura não há nenhuma dúvida: este é o livro de um dos maiores escritores do nosso tempo.
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Às vésperas de completar sessenta anos, o ex-policial cubano Mario Conde assiste ao encolhimento da oferta de livros usados cuja revenda vinha sendo seu ganha-pão. É então que um ex-colega de escola lhe oferece trabalho: recuperar a estátua de uma Virgem negra que lhe fora roubada. Com o desenrolar das buscas, Conde vai percebendo que a peça é muito mais valiosa do que imaginava. Em capítulos intercalados, o autor retraça as lendas que envolvem a escultura, tendo como pano de fundo a zona rural da Catalunha, desde a Idade Média até a Guerra Civil Espanhola. Ao buscar a imagem da santa negra pelas ruas de Havana, Conde vaga entre dois polos de um mesmo país: o submundo dos cortiços, do tráfico de drogas e da vida precarizada e o rico ambiente dos colecionadores e galeristas, muitas vezes envolvidos em contrabando e venda ilegal de obras de arte. Permeando esses dois mundos, o catolicismo e a santería, sincretizados, e o passar infindável do tempo.
“Padura é um comediante sombrio, um delicioso radiologista da ambivalência dos vínculos humanos. A transparência do tempo é um dos pontos mais altos de sua obra, um desses livros que recordam que o mundo às vezes é mais largo e profundo do que as vitrines de novidades costumam mostrar.” – José María Brindisi, La Nación
“Autor e personagem resistiram, e esse é justamente um dos temas fundamentais desta nova criação, na que Conde enfrenta a queda do véu de uma Cuba que parece desconhecer, onde vivem lado a lado a miséria e o desperdício.” – Yhonatan Loaiza Grisales, El Tiempo
“No crepuscular A transparência do tempo, estamos em 2014, ano em que Barack Obama e Raúl Castro anunciaram a retomada das relações entre Estados Unidos e Cuba (a qual Donald Trump não levou adiante). Fora as incertezas políticas, o maior estrago é a trilha sonora: em todo lugar ouve-se reggaeton no volume máximo, uma tortura para quem no passado se acostumara a boleros e salsas.” – Alvaro Costa e Silva, Folha de S.Paulo
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Leonardo Padura Fuentes nasceu em Havana em 1955. Pós-graduado em Literatura Hispano-Americana, é romancista, ensaísta, jornalista e autor de roteiros para cinema. Ganhou reconhecimento internacional com a série de romances policiais Estações Havana, estrelada pelo investigador Mario Conde, já traduzida em mais de quinze países, vencedora de diversos prêmios internacionais, adaptada para o cinema e a TV. No Brasil, a série foi publicada pela Boitempo, que também tem em seu catálogo outras obras do autor: O homem que amava os cachorros, considerada sua obra máxima, e Hereges. Pelo conjunto de sua obra, Padura recebeu o Premio Nacional de Literatura de Cuba, em 2012, o Princesa de Asturias, da Espanha, em 2015, e o Premio Internacional de Novela Histórica Barcino, em 2018.
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