O colete amarelo de E. P. Thompson

Apesar da fragmentação e da pluralidade dos atores mobilizados pelo protesto dos “coletes amarelos”, é verdadeiramente notável sua unidade na ação. Como interpretar esse paradoxo?

Por Ruy Braga.

Os protestos dos “coletes amarelos”, movimento popular reconhecido pelo uso do equipamento de segurança rodoviário obrigatório usado em situações de emergência, entraram em sua quarta semana. Sábado passado, policiais parisienses dispararam novamente bombas de gás lacrimogêneo contra os manifestantes na avenida des Champs-Élysées. Cerca de 125 mil pessoas saíram às ruas em apoio ao movimento. Relatos de saques a lojas de luxo multiplicam-se. Os museus da capital francesa foram fechados. Um clima de insurreição espalhou-se pelo país, acuando o presidente Emmanuel Macron. Apesar do recuo do governo, que decidiu adiar para o fim de 2019 o aumento do imposto sobre combustíveis fósseis (evento detonador do ciclo atual de protestos), a insurgência popular não dá sinais de arrefecimento. Ao contrário, o apoio ao movimento medido por pesquisas de opinião vem crescendo.

A principal dificuldade que Macron tem enfrentado é a natureza “espontânea” dos protestos, cuja marca consiste em interpelar o poder nas ruas e estradas, bloqueando a circulação de mercadorias e paralisando a economia. Para tanto, os “coletes amarelos” não necessitam de representação política ou sindical. Ao contrário do que acontece usualmente em um país vertebrado por uma robusta tradição de negociações coletivas setoriais entre sindicatos e representantes patronais, o movimento atual é formado por cidadãos cuja espantosa unidade é assegurada pelas dificuldades em subsistir numa economia cada vez mais mercantilizada e globalizada. Enquanto a renda das famílias trabalhadoras francesas permanece estagnada desde 2008, o preço dos aluguéis, dos combustíveis e dos alimentos segue aumentando de forma incessante em um país cuja capacidade de recuperação econômica revela-se frágil.

Para os moradores de áreas rurais e cidades outrora industriais, isso implica que a qualidade dos empregos dominados por contratos temporários e precários é muito baixa, além da taxa de desemprego de 10% ser elevada. Recentemente, o governo Macron atacou a proteção trabalhista por meio de uma contrarreforma que limita a capacidade de negociação dos sindicatos, autorizando que trabalhadores e patrões negociem acordos individuais à revelia de seus representantes. Naturalmente, esta iniciativa do governo foi considerada mais um ataque aos direitos trabalhistas pelos trabalhadores.

No mundo todo, o enfraquecimento dos sindicatos é antes a regra do que a exceção. Diante da explosiva combinação entre desemprego, subemprego, aumento das desigualdades sociais e aprofundamento de medidas neoliberais que ameaçam as condições de vida dos subalternos, não surpreende que o protesto social esteja assumindo características de ação direta e auto-organização. E, apesar da fragmentação e da pluralidade dos atores mobilizados pelo protesto dos “coletes amarelos”, é verdadeiramente notável sua unidade na ação. Como interpretar esse paradoxo?

Para além da explicação do uso de redes sociais, a passagem da relativa inatividade à ação coletiva enraíza-se em um campo fértil para experiências que ignoram identidades classistas bem assentadas, gravitando ao redor da defesa de condições dignas de existência ameaçadas pela violência da alienação mercantil inerente à manipulação dos preços de aluguéis, alimentos e combustíveis. A lista de 42 reivindicações apresentada pelos “coletes amarelos” revelou a presença de uma pulsão plebeia igualitarista, distributivista e antissistêmica animando os protestos franceses.

Trata-se de um conjunto bastante coerente de exigências centradas na regulação das condições de vida dos trabalhadores nacionais franceses, em favor de mudanças institucionais que reforcem o controle dos representantes eleitos, inclusive pela redução de seus salários para a média nacional, e contra a livre circulação de trabalhadores imigrantes. Muitos identificaram nessas reivindicações a sombra do populismo ultradireitista que eventualmente catapultaria Marine Le Pen à presidência em um eventual colapso do macronismo. Aliás, ao menos no início dos protestos, sindicatos e organizações políticas de esquerda mostraram muita desconfiança em relação às intenções dos “coletes amarelos”.

Não me parece descartado que o atual ciclo de protestos na França possa futuramente fortalecer arranjos politicamente autoritários. No entanto, ao menos até o presente, a ação dos “coletes amarelos” beneficiaram, sobretudo, trabalhadores e estudantes contrários às reformas neoliberais do governo de Macron. Parece-me que a natureza autenticamente popular e nacional do movimento e que tem assegurado sua ampliação para outros setores da sociedade francesa apoia-se naquilo que, em termos gerais, podemos chamar de defesa da “economia moral dos pobres”.

Trata-se de uma noção bastante conhecida nas ciências sociais e que foi desenvolvida por E. P. Thompson a fim de caracterizar a morfologia das mobilizações populares na Inglaterra do século XVIII. Para o historiador marxista:

“A ideia tradicional das normas e obrigações sociais, das funções econômicas próprias dos distintos setores no interior da comunidade que, tomadas em seu conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres. Um ataque contra estes supostos morais, assim como a privação em si, constituía a ocasião habitual para a ação direta”.1

Originalmente, essa noção buscou revelar o comportamento político insurgente da plebe inglesa no século XVIII partindo, em termos gerais, da centralidade dos valores tradicionais ou normas culturais não econômicas presentes em sua ação. Animada pela defesa dos costumes, a plebe semiurbana enfrentava a lei do mercado. Assim, a liberalização do comércio de grãos pelo governo inglês e a mudança na forma tradicional de formação do preço do pão foi acompanhada por grandes insurgências populares que interpelavam os poderosos, atacavam moinhos, escarneciam autoridades e buscavam controlar os preços dos meios de subsistência a fim de resguardar sua economia tradicional contra as ameaças da alienação mercantil. Para tanto, a plebe insurgente recorria à gramática do direito consuetudinário inglês que, à época, subordinava o direito à propriedade ao direito à vida.

É neste sentido que percebemos certo paralelismo entre a práxis política da multidão inglesa do século XVIII buscando defender sua subsistência e o atual ciclo de protesto dos “coletes amarelos”. Assim como no século XVIII, o Estado nacional aparece tanto como instrumento da mercantilização quanto destinatário final das exigências ligadas à reprodução da economia moral. Além disso, vale observar que, como no século XVIII, os protestos atuais na França também acontecem relativamente distantes de uma diferenciação historicamente mais precisa das classes sociais fundamentais da sociedade capitalista.

Observamos atualmente um momento no qual uma plebe formada por diferentes estratos populares herdeiros de relações sociais passadistas resiste às ameaças trazidas pela mercantilização dos preços dos bens de subsistência impulsionada pela globalização econômica. Ao invés de conflitos trabalhistas cujos protagonistas são os sindicatos, percebemos a centralidade de grupos sociais formados por um amálgama de trabalhadores pobres e setores médios da sociedade, em trânsito mais ou menos permanente entre o aumento da exploração econômica e a ameaça da exclusão social. Em suma, não se trata propriamente de uma política de classe operária no sentido tradicional, liderada por sindicatos e partidos socialistas e/ou reformistas.

Ainda assim, o potencial político progressista contido no movimento dos “coletes amarelos” aproxima-o de uma agenda familiar a essas forças sociais, pois advoga a proteção dos grupos susceptíveis à mercantilização, como os sem-teto, por exemplo, exigindo aumento de salários e mais investimentos em serviços públicos, além de justiça tributária e repressão às fraudes fiscais. Trata-se de um leque de reivindicações claramente balizado por um juízo de como a economia deveria funcionar em um sentido “moral”, isto é, em favor da subsistência da maioria e não da reprodução de uma camada cada dia menor de privilegiados representada pelo presidente Emmanuel Macron.2

Na realidade, é possível identificar nos “coletes amarelos” um novo tipo de protesto por justiça social, essencialmente balizado pelas dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores precários que muitas vezes precisam dirigir até 50 quilômetros para trabalhar em áreas distantes da capital. Não é de se espantar que, diante do declínio do poder estrutural dos sindicatos o bloqueio da circulação apareça como uma alternativa viável de mobilização política. Ao impedirem os acessos às cidades, aos postos de gasolina e às estradas, os “coletes amarelos” superam sua invisibilidade e enfrentam a onda de mercantilização das terras urbanas e do trabalho em seus próprios termos, isto é, auto-organizados e sem representantes políticos. O modo de regular a política na França, muito provavelmente, nunca mais será o mesmo após as classes subalternas perceberem que a maneira mais eficiente de enfrentar um governo neoliberal é queimando pneus nas ruas.


NOTAS
1 Edward P. Thompson, Tradición, revuelta y consciência de classe (Barcelona, Editorial Critica, 1979), p. 66.
2 Evidentemente, conhecemos a recusa do próprio E. P. Thompson em ampliar historicamente a noção de “economia moral”. No entanto, não advogamos uma ortodoxia interpretativa, mas, uma fonte de inspiração capaz de orientar a análise do atual ciclo de protestos que toma conta da França.

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Para aprofundar a reflexão sobre as novas configurações das revoltas subalternas no mundo, recomendamos acompanhar o WebCurso de Ruy Braga na TV Boitempo. Intitulado “Entendendo o precariado”, trata-se de uma leitura comentada de seu mais recente livro pela Boitempo, A rebeldia do precariado: trabalho e neoliberalismo no Sul global. Ao todo são quatro aulas dedicadas a destrinchar essa densa e explosiva obra. Cada dia fica mais claro o poder de revelação do conceito de “precariado” na nossa conturbada conjuntura política, econômica e social. No Brasil, nenhum intelectual tem se dedicado com tanta maestria a explorar as perspectivas políticas e analíticas abertas por esse conceito no interior do arcabouço teórico marxista quanto Ruy Braga.

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Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da USP e ex-diretor do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic) da USP, é autor, entre outros livros, de Por uma sociologia pública (Alameda, 2009), em coautoria com Michael Burawoy, e A nostalgia do fordismo: modernização e crise na teoria da sociedade salarial (Xama, 2003). Na Boitempo, coorganizou as coletâneas de ensaios Infoproletários – Degradação real do trabalho virtual (com Ricardo Antunes, 2009) e Hegemonia às avessas (com Francisco de Oliveira e Cibele Rizek, 2010), sobre a hegemonia lulista, tema abordado em seu mais novo livro, A política do precariado: do populismo à hegemonia lulista. É também um dos autores dos livros de intervenção Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil (Boitempo, Carta Maior, 2013) e Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise política no Brasil (Boitempo, 2016). A Boitempo prepara para 2017 o lançamento de mais novo livro A rebeldia do precariadoColabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às segundas.

3 comentários em O colete amarelo de E. P. Thompson

  1. VANDERSON LEOCADIO // 10/12/2018 às 1:20 pm // Responder

    Prezados, realizei o pagamento do pedido N°349727 no dia 04/12, no entanto, no site da Boitempo consta o cancelamento do pedido. Poderiam verificar o que verdadeiramente houve com o meu pedido?!

    Grato!

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  2. Hugo Pequeno Monteiro // 27/01/2019 às 4:22 pm // Responder

    Prezado Ruy,

    Excelente artigo. Li seu livro A Rebeldia do Precariado e acho que está passando da hora para aqueles que como você e eu entenderam que a bandeira do anti-sistema tem que ser recuperada pela esquerda. É fundamental romper com as amarras impostas pelos sindicatos e partidos políticos de centro-esquerda tradicionais quando do enfrentamento da classe dominante. A militância genuína sem o objetivo de arrebanhar indivíduos para esta ou aquela organização, tem de ser recuperada. O auto-financiamento dos sindicatos pelos trabalhadores, deve ser implementado para que o odiado imposto sindical não seja mais um instrumento de distanciamento dos trabalhadores em relação às suas organizações representativas. A estrutura dos sindicatos deve estar a serviço mesmo daqueles trabalhadores não-sindicalizados, o precariado como bem definido por você, e os sindicatos devem se colocar como representantes dos trabalhadores sindicalizados ou não. Uma atitude similar deveria ser tomada pelos partidos representativos da classe trabalhadora.
    Acho que estas são algumas propostas de luta que acredito que você também concorda com elas.

    Saudações.

    Hugo P. Monteiro
    Professor Titular
    Departamento de Bioquímica
    Universidade Federal de São Paulo
    Campus São Paulo

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  3. Caro Hugo P. Monteiro. Concordo integralmente com suas observações. Estes são os nossos desafios. Muito obrigado pelo cometário. Abraços.

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