Karl Marx romancista e dramaturgo?

O mais recente lançamento da coleção Marx-Engels da Boitempo traz à luz um Karl Marx muito pouco conhecido, e jamais traduzido para a língua portuguesa.

O mais recente lançamento da coleção Marx-Engels da Boitempo traz à luz um Karl Marx muito pouco conhecido, e jamais traduzido para a língua portuguesa. O volume Escritos ficcionais reúne duas obras literárias do jovem Marx: o romance satírico Escorpião e Félix e a peça Oulanem. A publicação chega às livrarias brasileiras em edição caprichada, com ilustrações inéditas feitas por Gilberto Maringoni, tradução feita diretamente dos originais em alemão por Claudio Cardinali, Flavio Aguiar e Tercio Redondo, e notas explicativas que auxiliam o leitor contemporâneo a captar as referências históricas e literárias que tanto enriqueceriam os textos posteriores do autor. Mesmo nesse começo de carreira, já é possível vislumbrar o grande escritor e ensaísta que Marx se tornaria.

Reunimos abaixo os textos dos professores Carlos Eduardo Ornelas Berriel, Tercio Redondo e Flávio Aguiar sobre a obra. Pra quem quiser se aprofundar mais nesse aspecto do jovem Marx, e refletir sobre importância de suas incursões literárias para sua obra madura, recomendamos vivamente o primeiro volume do monumental Karl Marx e o nascimento da sociedade moderna: Biografia e desenvolvimento de sua obra, de Michael Heinrich, que aborda com um rigor histórico e teórico sem igual o período de juventude de Marx, entre 1818 e 1841.

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“Marx escreveu Escorpião e Félix no início de 1837. Contava dezenove anos e projetava uma carreira literária em que já figuravam inúmeros poemas e à qual se acrescentaria Oulanem, o fragmento dramático que também compõe este livro. Tendo em mira o idealismo alemão em particular e a vaidade acadêmica em geral, Marx foi buscar em Tristram Shandy, o romance satírico de Laurence Sterne, um modelo de prosa humorística que, daí em diante, marcaria indelevelmente seu estilo de escrever.” — Tercio Redondo

“Esse é o Marx que, em torno dos dezenove, vinte anos, ensaiava suas primeiras criações literárias. Trata-se de um escritor inexperiente mas que define alguns traços que nunca o abandonarão. É um Marx romântico, por vezes irônico.” — Flávio Wolf Aguiar.

Ilustração de capa feita por Gilberto Maringoni para o livro Escritos ficcionais, de Karl Marx (Boitempo, 2018).

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Por Carlos Eduardo Ornelas Berriel.

É preciso levar a sério a filha de Marx, Eleanor, quando disse que seu pai “era o mais alegre e divertido de todos os homens”. Em outubro de 1837, com apenas dezenove anos, o jovem Karl compôs uma peça de teatro e um breve romance satírico, inacabados, nos quais ridiculariza e condena as convenções burguesas, o moralismo filisteu, a aristocracia e o pedantismo intelectual. São textos redescobertos em 1929, escritos por um Karl antes do Marx que conhecemos – composições raramente publicadas e que não despertaram grande interesse entre os marxistas, talvez mais identificados com o realismo socialista. Bem, eram apenas poucas páginas, uma brincadeira literária dedicada ao sexagésimo aniversário de seu pai, e nem o próprio autor lhes atribuía grande relevância. Entretanto, certamente é significativo que o grande filósofo tenha iniciado a sua vasta obra dessa forma, tão diversa do caminho que afinal trilhou.

Naquele ano, por indicação médica – pois adoecera por excesso de trabalho –, Marx deixou Berlim e estabeleceu-se, para repousar, em Stralow, uma vila de pescadores. Mas, em vez do descanso, optou por trabalhar intensamente. Entre seus principais interesses estavam a literatura e o teatro, e ele projetava até mesmo criar uma revista de crítica literária. Nessa ocasião, aprofundou-se nos estudos da filosofia, lendo “do princípio ao fim Hegel e a maior parte de seus discípulos”. Afastava-se definitivamente do romantismo e das filosofias kantiana e fichtiana. Foi nesse momento que escreveu as duas operetas contidas no livrinho que a Boitempo oferece agora aos leitores brasileiros – Escorpião e Felix e Oulanem.

Essas pequenas obras remetem à atmosfera cultural da Alemanha no período posterior ao Congresso de Viena, com a rejeição romântica do classicismo e a grande difusão da obra de Laurence Sterne, principalmente do seu Tristram Shandy. Esse romance, publicado entre 1759 e 1767, cobre de ridículo os estereótipos literários então dominantes, impondo um processo narrativo desconcertante, que o jovem Marx absorve em sua essência, com espírito irônico e antiacadêmico, numa demolição goliardesca do sentimentalismo burguês. Pois é dessa fonte literária, além de pitadas de E. T. A. Hoffmann, que o jovem Karl bebe em seu romance Escorpião e Félix, virando de ponta cabeça a trama, dando solavancos entre um episódio e outro, impondo e abandonando personagens a esmo e dissolvendo os lugares comuns narrativos, num divertido desprezo pela lisura formal do romance clássico.

Já o poeta romântico alemão preferido de Marx, Heinrich Heine, admirava em Sterne “um humorismo absoluto, no qual se fundem o sublime e o ridículo”. O ridículo, justamente, parecia adequado para a representação da vida burguesa. O procedimento literário da paródia, centrado na digressão, rebaixa as expectativas mediante um começo que não existe, por uma conclusão mais adiante que não acontece, com solavancos e lacunas que desorientam o leitor. Esse procedimento seduziu Marx – a narrativa divagante, o enredo fragmentado, os atalhos de pensamento que se transformam em estilo. Por esse mesmo motivo, Escorpião e Felix teve uma existência editorial muito discreta – discretíssima, aliás.

Para nós é quase impossível, hoje, identificar todas as referências satíricas ali contidas, pois são expressões do desaparecido ambiente político-cultural alemão da primeira metade do século XIX. É um texto de ironia cortante contra os segmentos políticos da Berlim da vida universitária de Marx, com corrosiva paródia dos intelectuais pedantes e dos vazios acadêmicos eruditos. Satiriza os pernósticos docentes da escola histórica de Direito, dissolve os cacoetes românticos, localiza enfim – o que mais importa – os seus futuros adversários. Esse Karl ainda não é o Marx que conhecemos melhor, mas são claros os indícios do futuro filósofo materialista que despontam, principalmente quando os personagens acusam sentimentos que o autor atribui a distúrbios corpóreos – logo, materiais e físicos – em viva irrisão do que a literatura da época descrevia como sintomas espirituais.

Oulanem é um drama fantástico em versos, um suspense gótico igualmente incompleto. Oulanem é o anagrama da forma hebraica do nome Emanuel, nome bíblico de Cristo que significa Deus-conosco. Mas, nesse poema-tragédia, ambientado numa aldeia na Itália, nenhum deus está conosco e, conforme os versos de Mefistófeles no Fausto: “Tudo aquilo que existe merece ser destruído”. O jovem filósofo estava sob a influência dominante de Goethe e, sob essa luz, delineava sua visão da história e sua ideia de que o mundo precisava ser completamente revolucionado.

Karl ainda não era o Marx que escreveu que “a abolição da religião, como ilusória felicidade do homem, é um pressuposto da sua felicidade real”. Ainda não era, mas logo seria.

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