Anita Prestes: Existe ameaça fascista no Brasil?
Diante do fenômeno “Bolsonaro” que se explicitou com as eleições deste ano, parte das “esquerdas” se depara com a seguinte questão: podemos afirmar que existe uma ameaça fascista em nosso país? Seria correto identificar esse fenômeno com o fascismo?
Por Anita Leocadia Prestes.
A experiência histórica mundial revela que as classes dominantes têm sempre preocupação com a possibilidade de uma insurgência popular e tratam de adotar medidas preventivas para salvar o regime capitalista, mesmo quando não existe a ameaça iminente da revolução. O fascismo é uma arma à qual os sectores mais reacionários do capital financeiro recorrem para assegurar os seus interesses. O panorama europeu atual é revelador nesse sentido.
Diante do fenômeno “Bolsonaro” que se explicitou com as eleições deste ano, parte das “esquerdas” se depara com a seguinte questão: podemos afirmar que existe uma ameaça fascista em nosso país? Seria correto identificar esse fenômeno com o fascismo?
Enquanto alguns empregam o termo fascismo como sinônimo de autoritarismo, identificando qualquer forma de regime autoritário com essa designação, outros a associam exclusivamente a regimes que se estabeleceram na Europa, durante os anos de 1920/1930, em especial os que contaram com as lideranças de Hitler na Alemanha e Mussolini na Itália.
Entre os últimos é comum recorrer à definição, proposta, em 1935, por Jorge Dimitrov, conhecido dirigente da Internacional Comunista, para afirmar que o avanço atual da direita no Brasil não deve ser associado ao fascismo. Segundo Dimitrov, o fascismo no poder se caracteriza por ser “a ditadura terrorista aberta dos elementos mais reacionários, mais chovinistas e mais imperialistas do capital financeiro”1. Os críticos da adoção dessa definição para a situação que vem se configurando atualmente em nosso país não só questionam sua aplicação à nossa realidade, como, para justificar sua rejeição, recorrem a outros traços do fascismo europeu dos anos que antecederam a Segunda Guerra Mundial – a existência de partidos de massa, o expansionismo militar, o racismo declarado, etc. –, os quais não estariam presentes no Brasil.
Cabe lembrar que Jorge Dimitrov escrevera também que é tarefa do fascismo “assegurar no sentido político o êxito da ofensiva do capital, da exploração e do saque das massas populares pela minoria capitalista e garantir a unidade da dominação dessa minoria sobre a maioria popular”2. Para o dirigente comunista, o recurso ao fascismo se explica pela necessidade do capitalismo assegurar sua sobrevivência e sua continuidade em momentos de crise – algo que, tudo indica, está acontecendo no Brasil de hoje.
Ao buscar explicação para os regimes autoritários que se estabeleceram na América Latina durante os anos 1960/1970, o dirigente comunista de El Salvador, Schafik Handal, deu valiosa contribuição ao lembrar que “o fascismo acima de tudo é uma contrarrevolução”, afirmação que tanto pode ser entendida no sentido de salvar o capitalismo dos efeitos da Revolução Cubana, como afirma esse dirigente referindo-se ao período citado3, quanto no sentido de salvar o capitalismo da grave crise que atravessamos agora no Brasil e em nosso continente e, em particular, do perigo potencial constituído pela possibilidade de revolta das massas frente às sérias consequências dessa crise, e das políticas adotadas pelos governos burgueses, para suas vidas e seu futuro.
Shafik Handal destacava o papel modernizador do fascismo na América Latina, em comparação com a função dos “regimes tradicionais”, “conservadora, visando favorecer as oligarquias latifundiárias e burguesas”, acrescentando:
“a função do fascismo é salvar o capitalismo dependente frente à revolução e modernizá-lo, favorecendo os consórcios transnacionais e os burgueses locais seus associados, salvar e consolidar a hegemonia política e militar do imperialismo ianque, ameaçada de colapso em nossa região.”4
Pode-se argumentar que hoje não existe no Brasil a ameaça de uma revolução. Entretanto, a experiência histórica mundial revela que as classes dominantes têm sempre preocupação com a possibilidade de uma insurgência popular e tratam de adotar medidas preventivas para salvar o regime capitalista. O fascismo é uma arma à qual os setores mais reacionários do capital financeiro recorrem para assegurar seus interesses. O panorama europeu atual é revelador nesse sentido.
Não seria atitude coerente com uma análise marxista encaixar dogmaticamente a situação de hoje em esquemas elaborados para a Europa de oitenta anos atrás. Trata-se de captar a essência do fenômeno fascista para alcançar sucesso em possíveis analogias, que contribuam para o esclarecimento do momento atual.
Uma eventual vitória eleitoral de Jair Bolsonaro significaria a opção pelo fascismo de setores da extrema direita do capital financeiro internacionalizado na busca de uma saída anti-povo para a grave crise que afeta o Brasil nos últimos anos. Certamente, não é por acaso que o economista Paulo Guedes, seu principal assessor e provável ministro da Fazenda do seu governo, é um dos fundadores do Instituto Millenium (Imil), entidade que sabidamente defende e difunde os valores e os interesses do grande capital.5
Se o grande capital optou na Alemanha, em 1933, pela entrega do poder a Hitler, o grande capital internacionalizado pode hoje, no Brasil, sem outra opção, entregar o poder a Bolsonaro, da mesma forma que o fez com Hitler, através de processos eleitorais, reveladores da grande insatisfação de numerosos setores sociais. Num país como o Brasil, onde inexiste tradição partidária, isso pode acontecer sem partido fascista, sem uniformes fascistas e sem a mística fascista dos anos 1930, sem expansionismo militar declarado e sem racismo explicito. As formas são outras, mais elaboradas, com a utilização em larga escala dos meios fornecidos pela informática, mantendo sempre o discurso anticomunista e propagando a violência contra todos que se opõem aos seus objetivos, inclusive por meio da ação de hordas fascistas. Vale lembrar como exemplo desse emprego “moderno” da informática a colaboração com a campanha de Bolsonaro de Steve Bannon, estrategista de Donald Trump e especialista em desinformação.6
Se a eleição de Bolsonaro representa uma ameaça fascista, o que pode ser feito para impedi-la?
É necessário ter presente que a atual campanha eleitoral adquiriu características especiais: não estamos diante de uma campanha “normal”; ela acontece no bojo de grave crise econômica, social e política, marcada pela presença de um altíssimo índice de desemprego, de crescente deterioração das condições de vida de milhões de brasileiros, de acentuada insatisfação popular com a chamada “classe política” tanto pela sua inoperância quanto pelas denúncias de corrupção – expediente utilizado pela direita contra o PT, mas que contribuiu para o desgaste da maior parte dos partidos e dos políticos.
Frente a tal situação, existe o risco de as forças de esquerda voltarem a incorrer nos erros “ultraesquerdistas” condenados por Lenin em seu tempo, apesar de suas intenções, devido ao dogmatismo livresco que, em vez de acelerar o processo revolucionário, contribui para seu retrocesso. Como escreve Atílio Boron, cientista político marxista e comunista,
“[…] a derrota de Bolsonaro é um imperativo categórico para as forças genuína e realisticamente empenhadas na construção de uma alternativa anticapistalista. Uma vez consumada, as forças de esquerda deverão aprofundar seus esforços para, afinal, construir uma maioria política e social – coisa que atualmente está muito atrasada – que impulsione a necessária radicalização de um eventual governo do PT e seus aliados. Sei que toda esta argumentação pode soar como inaceitável, ou o “menos pior”, para alguns setores do trotskismo, do anarquismo pós-moderno e do autonomismo da antipolítica. Mas, como dizia Gramsci, só a verdade é revolucionária, e na hora da eleição essa verdade se imporá com a inexorabilidade da lei da gravidade para impulsionar as forças populares do Brasil a impedir o triunfo de um fascista. Salvo, está claro, se os companheiros do gigante sul-americano me convencerem de que estão em condições de conquistar o poder de Estado e impor o socialismo pela via insurrecional, deixando de lado as manobras e maquinações da democracia burguesa. Seria uma grande notícia, mas falando com a franqueza que deve caracterizar o diálogo entre revolucionários, creio que essa alternativa é, no momento, absolutamente ilusória e fantasiosa. E, além disso, paralisante e suicida.”7
No momento atual, caracterizado pela inexistência no país de um movimento popular organizado – consequência em grande medida das políticas adotadas pelos governos do PT –, diante da ameaça fascista, a única alternativa possível para as esquerdas é o voto em Fernando Haddad, no esforço conjunto com outras forças sociais e políticas para derrotar a candidatura fascista de Jair Bolsonaro. Neste momento, trata-se do embate entre fascismo e democracia burguesa, cuja defesa era assumida por Lênin com a argumentação de que tal democracia, apesar das grandes limitações que impõe aos trabalhadores, apesar de ser uma garantia para os interesses burgueses, sempre é melhor para o avanço da organização popular que os regimes autoritários e, certamente, que o fascismo – último recurso do capital, quando a democracia burguesa deixa de ser uma garantia para seus lucros. Lênin escrevia em 1919:
“[…] A democracia burguesa representa historicamente um avanço enorme em relação ao czarismo, à autocracia, à monarquia e a todas as sobrevivências do feudalismo. Certamente, devemos utilizá-la e então vamos levantar a questão de maneira que, enquanto não se colocar na ordem do dia a luta da classe operária por todo o poder, a utilização de formas de democracia burguesa é obrigatória para nós.” 8
Seria um erro fatal, para as esquerdas e as forças populares, embarcar na concepção do “quanto pior, melhor”, tendo como consequência um gravíssimo retrocesso de todo o movimento popular no Brasil e na América Latina.
Notas
1 Jorge Dimitrov, “La ofensiva del fascismo y las tareas de la Internacional Comunista en la lucha por la unidad de la classe obrera, contra el fascismo”, em Jorge Dimitrov, El frente único y popular (Sofia [Bulgária], Sofia-Press, 1969), p. 117. (Tradução do espanhol desta autora).
2 Jorge Dimitrov, “El frente único y la reaccion burguesa”, em El frente único y popular, cit., p. 11. (Tradução do espanhol desta autora).
3 Shafik Handal, “El fascismo en América Latina”, em América Latina (Moscou, Progreso, 1976), n. 4, p. 121-46; tradução desta autora.
4 Idem; grifos do autor.
5 Ver, por exemplo, “Quem é Paulo Guedes, o ministro da Fazenda se Bolsonaro for presidente“, consulta realizada em 9 out. 2018.
6 Ver, por exemplo, https://www.youtube.com/watch?v=B8u64kzj4FQ, consulta realizada em 9 out. 2018.
7 Atílio A. Boron, “¿Tiene cura el ‘izquierdismo’?”, consultado em 12 out. 2018..; tradução da autora.
8 V. I. Lênin, “Informe no II Congresso dos Sindicatos de toda a Rússia” (1919), em Obras Completas (em russo), t. 37 (Moscou, Ed. de Literatura Politica, 1974), p. 438; tradução da autora.
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Anita Leocadia Prestes, nascida em 27 de novembro de 1936 no Campo de Concentração de Barnimstrasse na Alemanha Nazista, Anita Leocádia Benário Prestes é uma historiadora brasileira, filha dos militantes comunistas Olga Benário Prestes e Luís Carlos Prestes. É doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense, professora do Programa de Pós-graduação em História Comparada de UFRJ e presidente do Instituto Luiz Carlos Prestes. Autora da ambiciosa biografia política Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro (Boitempo, 2015) e do livro Olga Benario Prestes: uma comunista nos arquivos da Gestapo (Boitempo, 2017). Assina o artigo “Luiz Carlos Prestes e a luta pela democratização da vida nacional após a anistia de 1979” publicado no livro Ditadura: o que resta da transição? (Boitempo, 2014), organizado por Milton Pinheiro.
Acho que a luta contra Bolsonaro é algo que já foi consolidado por toda a esquerda Brasileira, inclusive alguns setores que simplesmente deixam claro que seus militantes tem a liberdade de votar no próprio Haddad. Porém a única coisa que tem que ser deixada clara é que a derrota de Bolsonaro se Haddad for eleito não é a solução de nada, só não permite que não fique ainda pior, pois quem pensa que quanto pior é melhor não é o que chamaríamos de marxista, mas sim de masoquista.
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MUito bem feita a descrição do problema específico que está acontecendo no Brasil. Mas antes de partir para a solução específica fosse adequado aplicar o método dialético da – Теория Решения Изобретательских Задач – ТРИЗ – e dar dois passos mais: Fazer a abstração do problema real específico, ou seja
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continuação:
2. Construir o ploblema generico.
a) O que há em comum entre a situação atual do capitalismo que está desenvolvendo um tipo de facismo no Brasil, com a época de 1920/1930 que fez o capitalismo optar pelo fascismo vários países da Europa?
b) O que há em comum entre a fase do captalismo atual, que está levando ao crescimento da estrema direita no século XXI, atualmente na europa não chega a meia dúzia de governos de esquerda, com a fase do capitalismo de quase um século atrás, que fez a Alemanha, a França, Holanda, Itália, Espanha e outros países da Europa Ocidental, que experimentarem na pele, o que é o verdadeiro fascismo?
c) O que há em comum entre o capitalismo atual na América Latina que está levando ao crescimento de um tipo de direita específica, com o capitalismo que levou a direita fascista a assumir os governos de países que passaram pela experiência do socialismo Soviético e foram vítimas direta da locura fascista, como, Polônia, Hungria, Ucrânia, e outros?
d) O que há em comum entre os judeus dos campos de concentração que foram vítimas vítimas do nazismo, com o capitalismo no Israel atual, que faz atrocidades com os povos palestinos?
d) O que há em comum nesta crise do capitalismo, que derrubou política e juridicamente o governo do Fernando Ludo no Paraguai, da presidenta Dilma no Brasil, elegeram o Trump e outros presidentes conservadores como os da Argentina, do Chile, etc.?
e) O que há em comum entre o capitalismo atual daqui, com expressiva votação no primeiro turno em Bolsonaro, com os acontecimentos na Venezuela e Nicarágua? etc., etc.
3. Construir a solução genérica.
a) O que impediria o avanço do fascismo e as guerras mundiais naquela época?
b) O que impediria o atual avanço do preconceito, do racismo, da xenofobia, da discriminação social, da construção de muros que nos paises capitalistas não entrem imigrantes de suas “ex-colonías”, vítimas da crise econômicas, violênicas, conflitos, guerras, etc. como quer construir o governo Trump, como está fazendo os países da Europa Oriental, e outras medidas como se vem fazendo na Europa Ocidental.
c) O que impediria que se aplique no Brasil as mesmas receitas que o Banco Mundial e FMI, aplicaram aos países como Grécia, Espanha e Portugal para salvar o capitalismo global?
Finalmene a etapa 4. Construção da solução específica:
Talvez se chegasse a mesma solução que esta proposta no artigo da nossa querida Anita Prestes, mas pelo menos haveria, um esboço, ou roteiro, ou quem sabe um programa, de acordo entre as esquerdas, que impedisse que o novo governo PT cometesse as mesmas centenas de erros que o governo anterior cometeu e serviram de pretexto para o “Impeachment”, para o “governo Temer” e causa da expressiva votação popular em um sujeito como Bolsonaro representante de um retrocesso ideológico inacreditável, isto em pleno ano de 2018.
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