Streeck: Capitalismo ou democracia
"A alternativa a um capitalismo sem democracia seria uma democracia sem capitalismo."
Em meio à conturbada conjuntura eleitoral de 2018, atravessada por uma crise econômica e uma crise política, chega às prateleiras brasileiras Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático, de Wolfgang Streeck. Primeira obra do aclamado autor alemão a ser publicada no Brasil, a obra, profundamente influente na Europa e nos Estados Unidos, atualiza as teorias da crise da Escola de Frankfurt na tentativa de explicar a crise de legitimidade do capitalismo pós-2008.
Com um texto afiado, recheado de tiradas irônicas e bem espirituadas, Streeck articula uma narrativa fascinante sobre os desdobramentos da tensão entre democracia e capitalismo ao longo de mais de quatro décadas de implementação do neoliberalismo, mapeando suas repercussões nos conflitos entre os Estados, os governos, os eleitores e os interesses do capital. Disponibilizamos, aqui no Blog da Boitempo, um trecho exclusivo da obra, que já está disponível nas principais livrarias do país.
Boa leitura!
Artur Renzo, editor do Blog da Boitempo.
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Por Wolfgang Streeck.
Se o capitalismo do Estado de consolidação já nem sequer consegue criar a ilusão de um crescimento distribuído de acordo com a justiça social, chegou o momento de os caminhos do capitalismo e da democracia se separarem. A saída mais provável, atualmente, seria a operacionalização do modelo social hayekiano da ditadura de uma economia de mercado capitalista acima de qualquer correção democrática. Sua legitimidade dependeria do fato de aqueles que constituíram, outrora, o povo do Estado terem aprendido ou não a confundir justiça de mercado com justiça social e de se considerarem ou não parte de um povo do mercado unido. Além disso, sua estabilidade exigiria instrumentos eficazes que permitissem marginalizar ideologicamente, desorganizar politicamente e controlar fisicamente aqueles que não aceitassem a situação. Com as instituições de formação da vontade política neutralizadas do ponto de vista econômico, a única coisa que restaria àqueles que não quisessem se submeter à justiça de mercado seria aquilo a que nos fins dos anos 1990 se chamava “protesto extraparlamentar”: emocional, irracional, fragmentado, irresponsável – precisamente o que é de esperar quando os caminhos democráticos de articulação de interesses e de esclarecimento das preferências ficam bloqueados, porque conduzem sempre aos mesmos resultados ou porque seus resultados são indiferentes para “os mercados”.
A alternativa a um capitalismo sem democracia seria uma democracia sem capitalismo – pelo menos, sem o capitalismo que conhecemos. Ela seria a outra utopia, concorrente da utopia hayekiana. Ao contrário desta, não estaria na linha da tendência histórica atual, exigindo sua inversão. Por isso e devido ao enorme avanço em termos de organização e concretização da solução neoliberal, assim como ao medo daquilo que é incerto, associado, inevitavelmente, a qualquer mudança, hoje essa alternativa parece irrealista1. Ela também partiria da experiência de que o capitalismo democrático não cumpriu sua promessa – contudo, a culpa não seria atribuída à democracia, e sim ao capitalismo.2 O objetivo dessa alternativa não seria garantir a paz social por meio do crescimento econômico e ainda menos garantir a paz social apesar da desigualdade crescente, mas melhorar a situação dos excluídos do crescimento neoliberal, se necessário, à custa da paz social e do crescimento.
Se democracia significa que a justiça social não pode ser absorvida pela justiça de mercado, então o objetivo primordial, em termos de política democrática, deveria consistir em retroceder em relação às destruições institucionais causadas por quatro décadas de progresso neoliberal, defendendo e restaurando da melhor maneira possível os restos das instituições políticas que permitiriam modificar ou até substituir a justiça de mercado pela justiça social. Só nesse contexto material faria hoje algum sentido falar de democracia, porque só assim se evitaria o perigo de as pessoas se contentarem com a “democratização” de instituições que não podem decidir nada. Hoje, a democratização teria de significar criação de instituições que permitam voltar a submeter os mercados ao controle social: mercados de trabalho que deixam espaço para a vida social, mercados de bens que não destroem a natureza, mercados de crédito que não levam à produção em massa de promessas que não podem ser cumpridas. Seriam necessários anos de mobilização política e perturbações permanentes da ordem social que vem surgindo para que essas coisas fossem colocadas de fato na ordem do dia.
* Este texto foi extraído do livro Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático (Boitempo, 2018), pp. 208-9).
Notas
1 Embora, durante a longa era keynesiana, isso também se tenha aplicado por muito tempo à utopia
hayekiana.
2 Uma perspectiva hoje já muito difundida precisamente nos círculos em que menos se esperava. O jornal Welt publicou uma notícia, no dia 26 de janeiro de 2012, sobre o início do Fórum Econômico Mundial, em Davos, dizendo o seguinte: “O presidente do grupo de telecomunicações Alcatel-Lucent, Ben Verwaayen, falou das ‘promessas não cumpridas’ do capitalismo […]. ‘É preciso aprender com os excessos’, disse Brian Moynihan, presidente do Bank of America. O banqueiro não parecia muito confiante: ‘Será que, da próxima vez, faremos tudo de forma correta?’, perguntou aos outros participantes, mas deu ele mesmo a resposta: ‘Só Deus sabe’. […] Segundo a avaliação dominante em Davos, o capitalismo simplesmente não está à altura […]. Para David Rubenstein, cofundador e chefe do grupo estadunidense de capitais privados (private equity) Carlyle Group, os problemas são mais profundos. ‘Pensou-se que os ciclos econômicos estavam controlados’, disse o investidor financeiro. Na realidade, revelou-se que o capitalismo ‘não tem capacidade para gerir as diversas fases do ciclo econômico’. Mais ainda, ‘o capitalismo não resolveu o problema da desigualdade’. E ‘parece que não há ninguém no mundo que tenha resposta’”.
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Wolfgang Streeck é diretor emérito e professor do Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades (Max-Planck-Institut für Gesellschaftsforschung – MPIfG) em Colônia, na Alemanha. Nascido em 1946, ele estudou sociologia em Frankfurt e Columbia. Entre 1976 e 1988, trabalhou no Centro de Ciência de Berlim (Wissenschaftszentrum Berlin) e, entre 1988 e 1995, foi professor de sociologia e relações industriais na Universidade de Wisconsin-Madison. Em 1995, transferiu-se para o MPIfG. Entre suas principais publicações estão How Will Capitalism End? Essays on a Failing System (Londres/Nova York, Verso, 2014); Politics in the Age of Austerity, que organizou com Armin Schäfer (Cambridge, Polity, 2013); Re-Forming Capitalism: Institutional Change in the German Political Economy (Oxford, Oxford University Press, 2009); e Beyond Continuity: Institutional Change in Advanced Political Economies, que organizou com Kathleen Thelen (Oxford/Nova York, Oxford University Press, 2005). Atualmente, dedica-se a pesquisar crises e transformações institucionais na economia política do capitalismo contemporâneo. No Brasil, publicou Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático (Boitempo, 2018).
Lembro-me de um programa da Globo News que mostrava a China moderna, o jornalista afirmava que o país oriental aos poucos iria tornando-se capitalista, querendo falsamente subentender que democracia é capitalismo. Mas a verdade é que o capitalismo já chegou e está maduro na China que por sua vez está longe de ser uma democracia.
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