Reivindicações por justiça e deturpações: as audiências públicas no STF e o direito ao aborto

Cientes de seu impacto, os atores conservadores incorporam noções do campo dos direitos humanos e do feminismo – autonomia, integridade e dignidade das mulheres, gênero – para reapresentá-las de maneira deturpada. As manifestações contrárias à descriminalização do aborto nas audiências públicas recentes no STF são registros desse processo.

Débora Diniz defende a descriminalização do aborto na audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal. 03.08.2018. Foto: Carlos Moura/SCO/STF.

Por Flávia Biroli e Maria Lígia Elias.

O direito ao aborto tem estado na pauta política no Brasil e em outros países latino-americanos com mais frequência nos últimos anos. Trata-se de uma disputa na qual os atores coletivos que são protagonistas no debate sustentam posições antagônicas e detêm recursos desiguais para fazer valer suas posições.

Historicamente, setores conservadores da Igreja Católica têm sido capazes de influenciar governos, o que demonstra o peso dessa instituição na América Latina. O compartilhamento de uma cosmovisão religiosa por setores das elites políticas e do judiciário, que têm um perfil de classe e de raça homogêneo e são largamente masculinos, é também um fator a ser considerado na análise dos contextos nacionais. Desde os anos 1980, as alianças com evangélicos conservadores no legislativo trouxeram mais um aporte a essa influência e incidiram no debate público, vocalizando de maneira peculiar a reação a conquistas na agenda progressista, sobretudo quando se trata de direitos reprodutivos e de direitos sexuais.

Do outro lado, estão movimentos sociais que atuam em defesa dos direitos humanos e, de maneira mais específica para o que nos interessa aqui, movimentos feministas que têm como uma de suas agendas transversais os direitos e justiça reprodutiva. Embora sua capacidade de mobilização no ambiente internacional, fortalecida pelas conferências das Nações Unidas nos anos 1990 – nesse caso, sobretudo pela IV Conferência Mundial sobre a Mulher, que aconteceu em Pequim em 1995 – tenha ampliado seus recursos para atuar nacionalmente, ela esbarra em obstáculos significativos. Um deles é a sub-representação política das mulheres, aguda no caso brasileiro, que retira de sua atuação organizada recursos fundamentais para intervenção no debate e na construção de legislação e de políticas públicas. Outro é a presença do catolicismo, em especial, não apenas entre os grupos conservadores, mas também nos partidos e organizações de esquerda. É comum, assim, que seu compromisso com os direitos humanos não incorpore os direitos sexuais e a justiça reprodutiva.

Nesse contexto de forte desequilíbrio é que se definem as disputas pelo direito ao aborto. É nele, também, que os movimentos feministas fizeram diferença apesar dos obstáculos existentes, redefinindo a linguagem política e a gramática dos direitos de cidadania, de modo que passasse a expressar reivindicações e experiências das mulheres. É algo bastante recente e que, entendemos, consiste em um dos aspectos centrais à política contemporânea. As reações correntes não ignoram essas mudanças ou sua relevância política. Ao contrário, cientes de seu impacto, os atores conservadores incorporam noções do campo dos direitos humanos e do feminismo – autonomia, integridade e dignidade das mulheres, gênero – para reapresentá-las de maneira deturpada.

As manifestações contrárias à descriminalização do aborto nas audiências públicas que discutiram o tema no Supremo Tribunal Federal (STF) nos dias 3 e 6 de agosto de 2018 são registros desse investimento na deturpação. Confirmando análises anteriores das posições contrárias a esse direito no Congresso Nacional, os atores conservadores se utilizaram de uma linguagem que não é propriamente religiosa. Confirmaram sua disposição para disputar sentidos nos campos da ciência, do direito e da política. Trata-se, ao que parece, de uma diretriz bem definida das ações, uma vez que não se manifesta apenas no Brasil. Uma de suas expressões, no caso das audiências, foram as faixas que questionavam a legitimidade do STF como instância para debates e tomada de decisão sobre aborto.

As audiências foram convocadas pela ministra Rosa Weber, relatora da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442) apresentada ao STF pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e pela ANIS – Instituto de Bioétic em 6 de março de 2017. Assinada pelas advogadas Luciana Boiteux, Luciana Genro, Sinara Gumieri e Gabriela Rondon, a ADPF solicita que o Supremo se manifeste pela constitucionalidade da despenalização da interrupção da gravidez até 12 semanas de gestação.

Os dois dias de audiências, em que mais de 60 expositores selecionados pela Corte puderam manifestar suas posições, favoráveis e contrárias ao direito ao aborto, retratam em som e imagem uma disputa pública de sentidos, e mais que isso, o embate entre projetos distintos de sociedade e de democracia. A temática do aborto atravessa questões fundamentais ligadas à democracia e à justiça, como as fronteiras entre a autonomia individual, a regulação e a punição por parte do Estado; as concepções de igualdade que configuram os direitos de cidadania; e as fronteiras entre religião e Estado, isto é, o caráter laico e/ou secular do aparato institucional e normativo da República.

A ADPF 442 se apresenta em três frentes: a continuidade em relação a decisões anteriores, a existência de precedentes nos contextos nacional e internacional, a discrepância entre os direitos de cidadania assegurados pela Constituição de 1988 e a aplicação do Código Penal de 1940 para punir a interrupção voluntária da gravidez pelas mulheres brasileiras.

Entre os precedentes e fundamentação estabelecidos para que a prática da criminalização do aborto até o terceiro mês seja declarada inconstitucional está a decisão sobre células tronco. Interpelado pela ADI 3510, o STF firmou, em 2008, a decisão de que as pesquisas com células-tronco embrionárias não violam o direito à vida. Nesse caso, a pergunta sobre o início da vida teria sido superada, orientando-se a discussão constitucional para a conclusão de que não haveria como imputar um estatuto de pessoa ou um caráter absoluto de direito à vida para embriões. Na decisão de 2012 sobre a interrupção da gestação nos casos de anencefalia fetal, referente à ADPF 54, a Corte brasileira se alinhou ao entendimento de cortes internacionais quanto à ausência de direito absoluto nesse caso. Por fim, o voto do ministro Luís Roberto Barroso no caso do Habeas Corpus 123.306, emitido em 29 de novembro de 2016 com o acordo da maioria da 1ª turma do STF, estabeleceu que a criminalização do aborto viola direitos fundamentais das mulheres.

Um fator chave na argumentação é a ideia de que o STF tem seguidamente interpretado que fetos e embriões não possuem o estatuto de pessoa constitucional.1 Não há, assim, conflito entre o direito ao aborto e os direitos fundamentais constitucionalmente assegurados. Por outro lado, a criminalização fere os direitos fundamentais das mulheres, uma vez que viola os princípios de dignidade da pessoa humana, de cidadania e de não-discriminação e produz circunstâncias que as expõem à tortura. Uma argumentação bem sustentada dos direitos fundamentais feridos pela penalização do aborto justifica que o Judiciário seja uma instância legítima para a decisão solicitada pela ADPF 442, que apresenta, ainda, um conjunto de testes (de adequação, de necessidade e de proporcionalidade), entendidos como parâmetros para o controle de constitucionalidade, reforçando, a cada passo, que sob diferentes enfoques a criminalização do aborto é inconstitucional.

Nas audiências, nem sempre os argumentos da ADPF foram de fato considerados pelos seus opositores. Quadros de sentido bastante diversos foram mobilizados, embora fossem apresentados na forma de argumentos científicos, jurídicos e políticos. Assim, as mesmas noções podiam ser mobilizadas com sentidos distintos e a partir de pressupostos antagônicos, nem sempre explicitados.

Na exposição de Dom Ricardo, da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), por exemplo, a autonomia foi definida como “uma arma” que conferiria a mulheres e também a homens a possibilidade de acabar com a vida humana a seu bel prazer. Similarmente, Rosimeire Santiago, do Centro de Reestruturação para a Vida (CERVI), reivindicou as ideias de autonomia e direito à escolha não apenas à mulher grávida, mas também ao feto, e se apresentou como defensora dos interesses de ambos. Tais expositores compartilham uma estratégia argumentativa em que também outras noções caras aos movimentos favoráveis ao direito ao aborto, como a de liberdade e a de empoderamento, são incorporadas a um discurso conservador que se pretende racional e coerente. Reivindicam para sim uma posição de legitimidade que não seria fundamentalmente religiosa. Vale observar que, nos anos recentes, o mesmo tem ocorrido em outras frentes, como a contestação da produção de conhecimento na área de gênero, das agendas políticas da igualdade de gênero e da diversidade sexual.

Essa não é uma estratégia menor. Parece-nos ser fruto de um reconhecimento de que a questão da descriminalização do aborto não seria suficientemente disputada se ficasse exclusivamente no terreno da defesa religiosa da vida desde a concepção. Parece, ainda, partir do diagnóstico de que é preciso disputar os mesmos termos em que uma politização favorável à ampliação de direitos se deu, em especial no campo do judiciário. Ou seja, aqueles que se opõem a que a mulher possa decidir se devem manter uma gestação ou abortar até a 12ª semana sem que seja, por isso, penalizada recorrem a noções mobilizadas historicamente pelos movimentos feministas. Mas elas reaparecem deturpadas, em esforços para justificar retrocessos ou impedir avanços.

Na perspectiva dos movimentos feministas, as audiências de agosto de 2018 correspondem a um momento histórico, como o foi a própria apresentação da ADPF ao STF em março de 2017. Nesta análise, ressaltamos, também, o significado político de embates que vão além do aborto e dizem respeito aos traçados do Estado de direito e da democracia.


NOTAS
* Utilizando referências de organismos internacionais de saúde, observa-se a seguinte distinção contida no texto da ADPF 442 (nota 2): embrião é o desenvolvimento celular de um óvulo fecundado por um espermatozoide até oito semanas após a fertilização, e feto é o termo usado para designar esse desenvolvimento celular a partir de oito semanas de gravidez até o nascimento ou aborto.

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“Há livros que são importantes para a discussão acadêmica e para os movimentos sociais, mas há outros que são mais do que importantes, são absolutamente essenciais, como é o caso deste.” – Céli Pinto

“As cinco dimensões analisadas nesta obra – divisão sexual do trabalho; cuidado e responsabilidades; família e maternidade; aborto, sexualidade e autonomia; feminismo e atuação política – permitem ver como, apesar de alterações significativas neste quadro, o lugar das mulheres permanece subalterno, interpelando os limites da democracia.” – Albertina de Oliveira Costa

Onde encontrar?

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Flávia Biroli é professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde edita a Revista Brasileira de Ciência Política e coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém o Blog do Demodê, onde escreve regularmente. É autora, entre outros, de Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil (Boitempo, 2018), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática (Eduff/Horizonte, 2013), Família: novos conceitos (Editora Perseu Abramo, 2014) e, em co-autoria com Luis Felipe Miguel, Feminismo e política: uma introdução (Boitempo, 2014). Escreve mensalmente para o Blog da Boitempo, às sextas. Maria Ligia G. G. R. Elias é doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo e pós doutranda no Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília. Pesquisadora feminista trabalha com temáticas como Liberdade, Lei Maria da Penha e aborto.

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