Ecos de um discurso: investigando porquês de tanto ódio
O fundo social escravocrata do Brasil e os posteriores caminhos conservadores e autoritários de modernização capitalista fornecem coordenadas gerais de explicação do ódio destrutivo ao Lula.
Por Renata de Oliveira Cardoso e Felipe Brito.
“E se for por esses crimes, de colocar pobre na universidade, negro na universidade, pobre comer carne, pobre comprar carro, pobre viajar de avião, pobre fazer sua pequena agricultura, ser microempreendedor, ter sua casa própria. Se esse é o crime que eu cometi, eu quero dizer que vou continuar sendo criminoso nesse país porque vou fazer muito mais”. Esse foi um trecho do discurso proferido por Lula antes de se entregar à Polícia Federal, no dia 7 de abril de 2018. Provocados pela diversidade de aspectos contida no conteúdo desse discurso, pela forma própria em que foi enunciado e, principalmente, pela representatividade político-cultural de quem o enunciou, pretendemos com esse texto analisar o antipetismo e, mais especificamente, o antilulismo.
Cientes das distintas possibilidades de interpretação que a Linguística oferece às nuances da comunicação humana, não temos a pretensão de realizar uma análise minuciosa e especializada do referido discurso. No entanto, avaliamos que ele e seu ato de enunciação fornecem pistas para investigarmos os porquês de tanto ódio de setores específicos da sociedade brasileira. Para isso, vale iniciarmos com o seguinte inventário.
Os dias 3 de agosto de 2017, 4 de agosto de 2017, 25 de outubro de 2017, 24 de janeiro de 2018, 14 de março de 2018, 12 de abril de 2018 foram dias “normais” para os indignados da classe média diante do “mar de lamas de corrupção” que assola o país. No dia 3 de agosto de 2017, a Câmara dos Deputados votou pelo arquivamento da denúncia contra o Presidente Michel Temer por corrupção passiva. No dia 4 de agosto de 2017, o então Procurador-geral Rodrigo Janot solicitou o arquivamento de cinco inquéritos derivados das delações da Odebrecht, em virtude de prescrição dos casos. Os inquéritos envolviam os deputados federais Jarbas Vasconcelos (PMDB – PE), Roberto Freire (PPS – SP), a senadora Marta Suplicy (PMDB – SP) e o senador José Agripino Maia (DEM – RN). No dia 25 de outubro de 2017, a Câmara de Deputados arquivou outra denúncia contra Michel Temer. No dia 24 de janeiro de 2018, a Procuradora-geral da República pediu ao Supremo Tribunal Federal o arquivamento do inquérito aberto contra o senador, ex-ministro e ex-governador José Serra, do PSDB, pelo chamado “caixa dois”. No dia 14 de março de 2018, um inquérito contra o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso por evasão de divisas, envolvendo a suspeita de pagamento para a jornalista Miriam Dutra por meio de uma empresa de exportação e importação, foi encerrado. No dia 12 de abril de 2018, uma decisão do STJ tirou da Lava-Jato investigação sobre Geraldo Alckmin baseada na delação da Odebrecht e a enviou para o Tribunal Regional Eleitoral.
Dentre aqueles que incorporaram o hábito de extravasar sua indignação contra os políticos corruptos por grupos de WatsApp, nenhum meme específico foi elaborado e compartilhado entre os seus. Nos referidos dias, nenhum oficial de alta-patente das Forças Armadas manifestou indignação pelas redes sociais, clamando por intervenção militar. Não que as pessoas acima aludidas não tenham resmungado ou vociferado contra os corruptos, mas o fizeram de modo difuso e genérico, no mesmo patamar que provavelmente reclamaram da fila do banco, do flanelinha ou da derrota futebolística do time de coração. Também não consta que nesses dias os grupos organizados da direita tenham convocado atos de rua contra a corrupção.
Já o dia 4 de abril de 2018 foi bem diferente. Atos de ruas convocados, ameaças de intervenção militar e aquele emaranhado de ódio e ressentimento com direcionamento específico. Vidrados na televisão ou nas redes sociais, um contingente expressivo de brasileiros e brasileiras consumiram as imagens do julgamento do Habeas Corpus preventivo de Luiz Inácio Lula da Silva, que visava o impedimento da prisão antes do julgamento das Ações Diretas de Constitucionalidade sobre, exatamente, a temática da prisão em segunda instância. O acompanhamento do apertado placar de seis a cinco na votação do HC guardou certa similitude com eventos futebolísticos de grande monta, muito propagandeados pela mídia empresarial.
Este levantamento foi aleatório. Muitos outros episódios análogos poderiam ser elencados. Fato é que o cerne do ódio que parte expressiva da classe média devota ao PT e, mais ainda, ao Lula parece não ser a corrupção.
“Eles não querem o Lula de volta porque pobre na cabeça deles não pode ter direito. Não pode comer carne de primeira. Pobre não pode andar de avião. Pobre não pode fazer universidade. Pobre nasceu, segundo a lógica deles, para comer e ter coisas de segunda categoria”, disse o Lula no discurso. De fato, impressiona como as raízes escravocratas da formação social brasileira ecoam na forma de renitente mal-estar do andar de cima diante de qualquer ensaio de mobilidade socioeconômica dos de baixo. Essa mesma formação social afirmou-se por meio de uma modernização de bases conservadoras, com super-exploração de força de trabalho e correlata concentração de renda e riqueza, e sempre contou, em momentos decisivos, com pactos políticos de elite costurados pelo alto (que, não raro, foram implementados por meio de golpes ou, pelo menos, tentativas golpistas).
A chamada redemocratização não se baseou em transformações estruturais da sociedade brasileira no sentido de redistribuição de renda e riqueza e de instauração de canais efetivos de participação popular. Sobre a crise do desenvolvimentismo autoritário da ditadura empresarial-militar, concentrador de renda e riqueza, ergueu-se o neoliberalismo no país que, na prática, esvaziou a implementação de direitos sociais com alcance universal.
Fato é que adentramos no século XXI com milhões de pessoas em espaços urbanos fraturados, expelidas do mercado formal de trabalho, “tocando a vida” diante do acúmulo de problemas socioeconômicos e dos sofrimentos advindos daí. Sem acionar um enfrentamento frontal e direto com a rede secular de privilégios de elite, os governos petistas promoveram, todavia, um fato inédito: mobilizou o orçamento público de modo a oferecer melhoria da qualidade de vida dos mais pobres, via políticas públicas sociais, aqui entendidas como a destinação de parcela do fundo público para o atendimento das necessidades básicas da sociabilidade humana. Ademais, implementou uma política de valorização continuada do salário mínimo, insuficiente, se adotarmos como parâmetro as consistentes pesquisas do Dieese acerca do que deveria ser o salário mínimo, mas significativa diante da renitente super-exploração de força de trabalho do capitalismo no Brasil.
A propósito, esse ódio ao PT e, especificamente, ao Lula, que possui fundamentação histórica e social, carrega o desejo de destruição, eliminação. O sentido nuclear desse tipo de afeto é a destruição do outro, o que o torna socialmente muito perigoso, pois aciona uma fantasia de que é a existência desse outro o fator determinante para os problemas da vida; como se, fantasiosamente, o mundo não pudesse comportar esse outro, e, com isso, reivindicar a eliminação seria não apenas justificável, mas, além disso, uma espécie de “ato cívico”. Essa postulação de destruição, muitas vezes direcionada a sujeitos envolvidos em práticas e arranjos de vida desviantes da normatividade sociocultural, suscita o que o psicanalista Christian Dunker chamou de “novelo de ódios” – uma espécie de deslocamentos contínuos de ódio de um objeto para outro, fomentando o ressentimento – o sentir de novo contínuo. Essa mecânica de afetação altamente deteriorada é muito vulnerável a se esparramar em fenômenos automatizados de grupo, que “absorve”, subsome os sujeitos numa “catarse” regressiva e destrutiva.
Correlativamente a esse estado de ressentimento (contaminado pelo medo da diversidade e da complexidade), encontra-se uma simplificação também regressiva e conservadora de pensamento, muito vulnerável a esquemas maniqueístas e homogeneizadores de conceber a realidade social. Buscando fontes de legitimação, esses esquemas de pensamento manifestam-se, muitas vezes, como “ideologias de proteção ou defesa social”. Parte-se de uma caracterização fantasiosa da sociedade como “organismo simples, harmônico e estável”. Esse “organismo” precisa ser protegido dos “focos externos” de confusão, desestabilização e desarmonização. Com isso, conforme dito acima, a eliminação dos “inimigos da ordem” teria o status de ato cívico – e a carapuça de “inimigo da harmonia social” é volúvel, cabendo para diferentes segmentos, em contextos e intensidades diversas. Do “nordestino manipulável pelo Bolsa Família (que não sabe votar)” ao militante dos Direitos Humanos, a carapuça vai transitando. Aliás, não são raras as descargas de raiva contra as entidades militantes dos Direitos Humanos, responsabilizadas por atrapalhar o embate entre os “cidadãos de bem” contra os “inimigos da ordem”.
Conforme registramos, além do antipetismo, trata-se de um antilulismo, na qual a simbologia em torno da ascensão política de um retirante nordestino pauperizado gera um combustível específico nesse circuito de ódio. Por isso, Lula disse em seu discurso: “Eu há muito tempo atrás sonhei que era possível governar esse país envolvendo milhões e milhões de pessoas pobres na economia, envolvendo milhões de pessoas nas universidades, criando milhões e milhões de empregos nesse país, eu sonhei, eu sonhei que era possível um metalúrgico, sem diploma universitário, cuidar mais da educação que os diplomados e concursados que governaram esse país e cuidaram da educação.”
Avaliamos, assim, que o fundo social escravocrata do Brasil e os posteriores caminhos conservadores e autoritários de modernização capitalista fornecem coordenadas gerais de explicação do ódio destrutivo ao Lula.
Outras coordenadas para problematizar a questão podem ser encontradas em um filme da diretora Anna Muylaert: Que horas ela volta?, do ano de 2015. O cenário básico do filme é uma moradia luxuosa de uma família endinheirada de classe média alta paulistana, caracterizada como culturalmente “sofisticada”. A personagem Jéssica é a filha da disciplinada empregada doméstica da família, chamada Val. A adolescente veio do Nordeste para prestar a seleção para a USP. A presença de Jéssica, ou melhor, as movimentações de Jéssica suscitam mal-estar na patroa cordial. Gradativamente, a cordialidade dá lugar à hostilidade explícita. Val, a empregada, não ameaçou ir além do lugar físico que a foi destinada (representado pelo acanhado quartinho de empregada). Tampouco ameaçou ultrapassar a função econômica direcionada a milhões de mulheres nordestinas, com as respectivas identidades culturais a ela relacionada. Por isso, foi merecedora da cordialidade da patroa. Jéssica, ao contrário, ultrapassa certas fronteiras que não deveriam ser transpostas naquele espaço de “convivência,” bem como em outros, quando, por exemplo, a jovem passou no Enem para uma universidade pública. Exatamente quando essas coisas acontecem, a aludida cordialidade dissipa-se.
Esse comportamento é passível de compreensão se considerarmos estudos recentes sobre ascensão social, realizados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com dados de 30 países, o estudo mostra que o Brasil ocupa a segunda pior colocação no ranking da mobilidade social, sendo necessário, aproximadamente, nove gerações para que 10% dos mais pobres atinjam a renda média do brasileiro – o equivalente a mais de 180 anos e o que equipara o Brasil à África do Sul.
Não temos a pretensão, aqui, de elaborar uma teoria geral das insatisfações sociais das elites e classes médias no Brasil contemporâneo. Longe disso. No que tange à chamada “classe média” brasileira, há vários segmentos médios dentro dela (há várias “classes médias” dentro da classe média), e os motivos para insatisfação dessa classe social heterogênea são inúmeros, com graus diversos de complexidade. Entretanto, podemos constatar que, infelizmente, não é incomum entre parte significativa dos setores médios brasileiros um mal-estar perante as expressões da pobreza, bem como não é incomum que esse mal-estar adquira a forma do supracitado ódio destrutivo contra os pobres. Há uma ambivalência no trato da elite e de setores da classe média com os pobres, que se traduz em (perigoso) mal-estar. Se, por um lado, a pobreza confirma a condição de privilégio e distinção sociais, por outro, é fonte de ameaça a essa condição. E, não raro, o mal-estar decorrente dessa ambivalência irrompe como ódio (que visa a eliminação do outro – e, no caso, aqui, a eliminação da ambivalência). Talvez por isso “[…] pegar os estudantes da periferia e colocá-los nas melhores universidades desse país para que a gente não tenha juiz e procuradores só da elite”, conforme proclamado por Lula no discurso, tenha sido elemento motivador de ódio contra ele e o PT.
A título ilustrativo, é possível enxergamos uma espacialização dessa ambivalência numa cidade que historicamente serviu como laboratório de “gestão” da pobreza – o Rio de Janeiro. Nesta cidade, as favelas foram tratadas, ao mesmo tempo, como “solução” e “problema” habitacional. A “proximidade distante” que a favela proporcionava era funcional à cultura da mucanagem, que persistiu no racismo estrutural brasileiro. Ao mesmo tempo, com a ausência de política pública social de habitação para os pobres, recaía nas costas dos próprios trabalhadores pauperizados a incumbência de, por conta própria, encontrar respostas para as demandas de moradia. Isso ensejou uma funcionalidade político-econômica para a modernização conservadora brasileira, contribuindo significativamente para o rebaixamento do preço da força de trabalho e para a captura de parcela considerável do fundo público aos propósitos dessa modernização. Ao mesmo tempo, essa “proximidade distante” despertava medos. Não à toa, os primeiros quartéis da polícia militarizada foram localizados em proximidades de algumas favelas mais próximas de áreas de elite. E quando a lógica capitalista avançava e expandia a fronteira urbana, passando a cobiçar áreas antes não cobiçadas, o Estado era requerido para efetuar a violência da remoção e expulsar pobre para longe.
Recentemente, a chamada “redemocratização” pós-ditadura empresarial-militar de 1964- 1985 incorporou em seu núcleo de funcionamento o extermínio de jovens negros, pauperizados e moradores de favelas, bem como uma gigantesca máquina de encarceramento desse mesmo segmento social. Entre 1980 e 2010, mais de 1.900.000 mortes por homicídios ocorreram no país. Em 2016, aconteceram 62,5 mil mortes violentas no país, índice 30 vezes superior ao da Europa. Nessa quantidade absurda de mortes violentas, a incidência de homicídios entre negros é 2,5 vezes superior ao de não negros.
Ademais, o número de encarcerados beira os 730 mil, com cerca de 45% de presos provisórios, o que coloca o Brasil na terceira posição no ranking mundial de encarceramento (atrás apenas dos EUA e da China). A descarga (seletiva) de violência contra pobres e negros, com participação ativa do Estado, foi historicamente naturalizada. E mais: quando recepcionada no âmbito do ódio destrutivo, foi também exaltada, monumentalizada. Foi e continua sendo. Diante dessa realidade, Lula proferiu no discurso: “Não queremos repetir a barbaridade que se faz com meninos negros neste país.”
Com efeito, é importante lembrar também que setores expressivos da classe média são muito apegados à concepção ilusória de “meritocracia”. Tais setores relutam em chamar pelo nome as correias de transmissão de privilégios e iniquidades que formatam a estrutura de classes do país (pois participam delas, ativa ou passivamente), cuja fonte primordial é a família (elo entre a criança, sua classe social e a sociedade). Essa análise, de maneira difusa, também esteve presente no discurso do Lula quando o ex-presidente disse: “por isso esses meninos que entram muito novo fazem um curso direito e depois faz três anos de concurso porque o pai pode pagar, esses meninos precisavam conhecer um pouco da vida, um pouco de política para fazer o que eles fazem na sociedade brasileira.”. Fato é que parte desses setores refugiam-se, defensivamente, em fantasias meritocráticas para interagir e explicar o “êxito” dos de sempre e o coetâneo “fracasso” dos de sempre. Essas fantasias envolvem o hiperdimensionamento do esforço individual, de modo a desconectá-lo de um conjunto de aspetos econômicos, culturais e afetivos que produzem as vidas em sociedades, como se o esforço individual não fosse uma constante na vida de milhões de brasileiras e brasileiros que precisam “se virar” no dia a dia, nas mais adversas condições, para, por exemplo, comprar um simples botijão de gás de cozinha com preço atingindo os R$ 100,00.
Uma das consequências dessas fantasias meritocráticas, levando-se em consideração a linha de análise que estamos desenvolvendo ao longo do texto, é o repúdio a programas de transferência de renda voltados às pessoas pobres em situação de extrema vulnerabilidade social. Como um corolário do ódio ao pobre, infelizmente não é incomum esse tipo deteriorado de mobilização afetiva.
O Programa Bolsa Família, como um dos símbolos da era petista, por exemplo, tornou-se alvo das mais virulentas injúrias: de estímulo à “vagabundagem”, passando por “curral eleitoral”, indo até “farra com o dinheiro público”, etc. Apesar disso, em verdade, sabemos que até mesmo organismos internacionais reconhecem o papel do Programa para o combate da extrema pobreza. Ele foi citado e elogiado, inclusive, pela ONU, em relatório sobre a temática, e serve ainda como parâmetro à elaboração de políticas públicas sociais com o mesmo fim para inúmeros países no mundo. Por isso, em seu discurso, de forma indireta, Lula nos remete ao Programa quando afirma: “não queremos mais a mortalidade por desnutrição neste país”. Esse sucesso não é à toa. Sabemos do papel financeirizador da proposta e do seu baixo impacto no orçamento público (menos de 0,5% do PIB nacional), o que justifica, em parte, o apelo do Fundo Monetário Internacional (FMI) para replicação de programas similares em países “subdesenvolvidos”. Não obstante, os estudos revelam que dentre os beneficiários do Bolsa Família, além da eliminação da fome, houve a redução do índice de natalidade e mortalidade infantil, bem como o aumento da escolarização, pelo fato do programa estar condicionado à frequência médica e escolar dos componentes do núcleo familiar beneficiado.
Os elementos citados, por si só, desmontam alguns argumentos difundidos por aqueles que destilam ódio ao pobre. Porém, para sermos ainda mais enfáticos, lembramos que, segundo o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome, quando o programa completou 10 anos, em 2013, quase 1,7 milhão de famílias abriram mão do benefício em virtude da inserção no mercado de trabalho e do aumento da renda.
Em contrapartida, se verificarmos o sistema tributário brasileiro, um impactante veículo de concentração de renda e riqueza pelo seu caráter regressivo e indireto (que, aliás, não foi enfrentado pelos governos petistas na esfera federal), identificamos uma outra face dessa questão. Aqueles que possuem renda superior a 320 salários mínimos mensais pagam uma alíquota de Imposto de Renda, feitas todas as deduções, isenções e descontos, equivalente àquela de quem ganha 5 salários mínimos. Somente Brasil e Estônia isentam de imposto de renda lucros e dividendos recebidos por acionistas e proprietários de empresa. A concentração de renda e riqueza é tão alarmante no país que os 6 brasileiros mais ricos concentram um montante de riqueza equivalente ao da metade mais pobre.
Contudo, o mesmo injuriador de classe média do Bolsa Família (que paga uma alíquota de imposto de renda equivalente a um milionário), obedeceu, entusiasticamente, à interpelação dos super-ricos, colocou a camisa da CBF e seguiu o pato da FIESP nas manifestações pró-impeachment. Na mesma toada, tende a ver com desconfiança ou, mesmo, com reprovação sumária propostas de reforma tributária progressiva, que privilegiem taxação de renda, riqueza, lucros e dividendos (iniciativa que não foi tomada pelos governos federais petistas).
O rechaço ao PT e ao Lula não ficou restrito na elite e em setores da classe média, nem mesmo o rechaço em forma de ódio destrutivo: atingiram também setores populares. Isso porque ao longo da formação social brasileira o que prevaleceu foi o ostensivo desprezo às pessoas pobres no Brasil. Logo, é compreensível uma mescla de indiferença e ojeriza à política em geral e a seus representantes, dadas as sucessivas interdições à participação das pessoas comuns nas decisões público-estatais, os numerosos pactos de elite pelo alto (acoplados às inclinações golpistas dessa elite), a ausência de políticas públicas sociais baseadas em direitos com alcance universal, o clientelismo eleitoreiro.
Entretanto, não obstante todo o bombardeio midiático antipetista/antilulista e toda a complacência com o PSDB – conforme sinalizou Lula no seu discurso: “eu tenho mais de 70 horas de Jornal Nacional me triturando; eu tenho mais de 70 capas de revista me atacando; eu tenho mais de milhares de páginas de jornais e matérias me atacando” – não é comum entre os setores pauperizados uma abominação específica ao PT, e não ao PSDB. Bem como não é comum a participação desses setores nas fileiras da militância orgânica de direita, restabelecidas recentemente, e responsáveis pela atual disseminação do clima propício ao ódio destrutivo.
Ao mesmo tempo, também não é comum a participação popular nas fileiras da militância orgânica de esquerda como um todo, no Brasil recente. “Se virar” cotidianamente em uma sociedade carregada de desprezo econômico, político e cultural absorve os agenciamentos de vida de milhões de pessoas pauperizadas no Brasil, cada vez mais alijadas do mercado formal de trabalho, concentradas nas periferias urbanas. E essa “viração” cotidiana envolve os desgastes subjetivos provocados pelo funcionamento de cidades que cresceram muito, mas sem reforma urbana democratizante (pautada no enfrentamento da especulação fundiária, imobiliária e do rodoviarismo).
Eis, então, um grande desafio histórico para as esquerdas: (re)introduzir no conjunto de agenciamentos cotidianos de vida do povo pobre o caminho da política, capilarizando e dotando de sentido o trabalho de base. A propósito, uma das críticas recorrentes aos governos Lula e Dilma, desde um ponto de vista de esquerda, com maior ou menor pertinência, diz respeito ao pouco estímulo à participação popular no tabuleiro político, inibindo processos mais amplos de politização. Mobilizar o povo para inseri-lo, ativamente, no tabuleiro político encontraria razão se estivesse em pauta um repertório de reformas estruturais que dependesse do enfrentamento imediato da concentração de renda, riqueza e poder político: reforma tributária progressiva, reforma política, reforma urbana, reforma agrária, reforma da mídia, reforma do Judiciário etc. Logo, esse déficit de participação política manteve-se compatível com o caráter de “reformismo fraco” (André Singer) da engenharia dos governos federais petistas.
Apesar disso e mesmo depois de ter sido preso, Lula mantém-se na liderança em todos os cenários de pesquisas eleitorais. Contudo, a imensa popularidade do ex-presidente não desenvolveu expressões significativas para além do formato eleitoral, conforme ficou perceptível nas tentativas de resistência ao golpe de 2016, que contou com um empenho interessante de muitos militantes, conseguiu unificar a maioria da esquerda e dos setores médios progressistas, desenvolveu várias atividades de denúncia importante, mas contou com pouca participação popular direta, e não alcançou a intensidade e alcance necessários para reverter as maquinações parlamentares-jurídicas-policiais-midiáticas.
Essas maquinações que resultaram no impeachment da Presidenta Dilma Rousseff sem crime de responsabilidade, em 2016, revelaram que a elite endinheirada brasileira não topa, nem mesmo, engenharias políticas de coalizão de classes. Na verdade, reivindica o imediatismo (violento) da espoliação do fundo e ativos públicos, de recursos naturais e sociais, além da super-exploração da força de trabalho. E essas maquinações golpistas demonstraram também que setores da classe média aderem a esse projeto (imediatamente) espoliador. Nessa mesma perspectiva, a ascensão de um retirante, pobre, nordestino, sem diploma universitário à presidência da República revelou-se como intolerável e objeto de ódio destrutivo para esses segmentos.
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Felipe Brito é professor do curso de Serviço Social da UFF de Rio das Ostras. Atua no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). Organizador (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) e um dos co-autores do livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social. Autor do artigo “Territórios Transversais” (em conjunto com Pedro Rocha de Oliveira) que integra o livro Cidades Rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Renata de Oliveira Cardoso é assistente social formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora do curso de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Campus de Rio das Ostras. Mestre em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutoranda em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Uma leitura profícua e sensível do miserável Brasil profundo que se escancara às pressas desde os últimos cinco anos. A independência dos autores em suas análises também é notável. Gostaria que muitos pudessem ver isso com naturalidade.
“Eis, então, um grande desafio histórico para as esquerdas: (re)introduzir no conjunto de agenciamentos cotidianos de vida do povo pobre o caminho da política, capilarizando e dotando de sentido o trabalho de base.” Pra ontem!
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Colega linguista, excelente analise. Pretendo fazer algo semelhante com base na Analsie de Discurso. Sua leitura me animou a isto, embora me entristeca a constatcao de nossa tragedia. Grande abraco
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Republicou isso em Pilihsacconi's Blog.
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A destruição do outro por não ser capaz de encará-lo de igual para igual está presente no racismo como uma cruel ação bárbara que não reconhece os direitos naturais dos homens; por isso a assertiva “o sol é para todos” consagrada na oralidade fez por ela passar todas as revoluções. Para complementar quero dizer que esse desejo de detruição do outro é tão absurdo que fracassa dialeticamente, pois destruir o outro se faz com abuso de poder, e para o poder existir é necessário o outro que assuma na relação a posição subalterna. A meu ver uma das causas do ódio é forçar o outro a liberar-se: odeio o outro porque este, mesmo sendo dominado por mim na relação de poder, me apela, a nível inconsciente, que eu não o discrimine: o outro me força a liberar-me a daquilo que estabelece desigualdades. Seu texto me pôs a pensar. Um abraço da Mariluz
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