Despedida de um guerreiro de coração vermelho

Wagner foi, e sempre será, meu mestre. Perdi um irmão... perdi um amigo. Uma dor do seu tamanho toma conta da minha vida.

Por Mauro Luis Iasi.

(Para Wagner Lino Alves)

Uma noite longa cobria a terra e o silêncio calava os gritos que ainda há pouco eram vivos pronunciamentos de luta e vida e agora seriam levados aos porões para converterem-se em dor, agonia e morte. O ano era de 1964, ano de infâmia e prepotência, de força e de desmemoria.

Um pouco antes um jovem vendia cocadas na praia de Santos, estudava, militava e conhecia o comunismo. Sorvia as luzes do futuro, armava-se da solidariedade de nossa classe, amava tão intensamente, como só possível para quem está vivo e vê o brilho de outros olhos iluminar seu próprio caminho. A noite que o pegou no caminho não o encontrou sozinho. Havia um partido, braços camaradas, corações vermelhos pulsando… havia o PCB.

À noite não se vê os passos pequenos, nem tudo se sabe, mas o menino agora homem aparecerá ainda não visível nas fábricas do ABC. A ordem não vê meninos vendendo cocada na praia, não vê homens de madrugada, no frio das filas que as fábricas engolem. Invisíveis, cinzas, escondem da noite seus corações vermelhos que pulsam.

Na fábrica, esmerava em ser bom profissional; conhecia bem e bastante de matemática (nunca quis dizer como, nem eu contarei segredos que não são meus). Bom profissional, bom companheiro de lida, ficava depois do expediente com uma pequena lousa para ensinar aos colegas a fazer as contas e poder melhorar de posição na fábrica. Não precisava falar de política, de classe, de luta, mas ensinava a quem precisava, era solidário com quem necessitava, era firme no que falava e pensava, alegre desafiava a noite triste. Talvez aí tenha forjado um traço tão marcante de seu caráter. Um gigante sisudo para quem olhasse de primeira, tirava uma bala do bolso do casaco e oferecia gentilezas vindas de seu coração escondido na noite.

Quando o sol, tímido e frio, insinuava os primeiros raios de um novo dia, ele desconfiava. Não havia mais, para ele, o PCB. Mas aprendera a construir casas com braços companheiros, para abrigar corações vivos, uma casa que vivia agora dentro dele. O profissional, os amigos, a generosidade, a firmeza, plantaram companheiros de luta, camaradas de classe que apenas esperavam um raio de sol, uma gota d’água para germinar. Corações vermelhos aceleram suas batidas… a greve.

Um dos maiores erros da ordem, que infelizmente ilude muitos dos nossos, é que ela procura os líderes. Mas eles só existem quando muitos projetam em uma pessoa aquilo que só podem ser em seu conjunto. Não existiria líderes sem o paciente trabalho de muitos. O líder está sempre à vista, já os que constroem e tornam possível o líder, nem sempre se vê. Um operário sai de madrugada para panfletar o primeiro de maio, é preso, torturado e morto. Manuel Fiel Filho abre seu peito para que seu coração vermelho possa viver em sua classe. A filha do maior líder de nossa história volta clandestina ao ABC para fazer cursos de formação e reorganizar o PCB no chão de fábrica. Tem que fugir, operários têm de se esconder para não serem presos. Anita Prestes está escondida, seu coração corajoso guarda nossas batidas. As sementes dormem na escuridão da terra antes que as folhas procurem a luz no céu.

Um menino, agora um operário, se aquece no calor de um dia que explode em lutas, construindo sua casa com os braços que plantou, pintando as novas paredes, porque também foi pintor de parede para sobreviver, luta e constrói seu sindicato, mas não confia no dia. Quando a direção do sindicato é presa, ele é um dos poucos que escapa porque o endereço que constava na ficha não era onde morava. Coisas que aprendeu sobrevivendo na noite.

Um novo dia, uma nova casa. Militante do PT, seu construtor, vereador, deputado. Em nossa pequena corrente local, junto com a DS e depois como militante da Articulação de Esquerda. Seguia sua sina de aglutinar camaradas, construir casas para seus corações vermelhos.

Eu o conheci no dia de seu casamento com Creusa, indo de bicão na festa convidado por meu irmão de luta e de vida, Carlinhos Antunes, que chamava o Wagner de Miudinho. É difícil descrever o que começou ali, possivelmente sem que eu soubesse e certamente ele. Apenas encontrei alguém que já conhecia. Nos conhecemos em 1848, em 1871, em 1917, em 1922… cantamos vitória em 1959 e choramos juntos a derrota de 1964.

Tive o privilégio de ser um dos tijolos que Wagner se serviu em sua construção, na construção da casa em que morei por tanto tempo. É preciso que se diga que não morei em nenhuma casa em São Bernardo em que Wagner, como vereador ou deputado estadual, não me ajudou a pintar (de verdade, não metaforicamente).

Wagner era mais experiente que todos nós, mais sensato, mais preparado e mais ousado que todos nós. Juntava nos espaços de nossa militância, não só em seus mandatos mas nos vários momentos em que ficamos sem uma posição institucional onde aportar, aquilo que materializava seus princípios comunistas: operários, mulheres, jovens, intelectuais, ecologistas, militantes de bairro, cristãos e ateus, mas todos com um coração generoso no lado esquerdo do peito. Wagner foi um militante exemplar, um quadro. Mas todos que tiveram o privilégio de conviver com ele podem testemunhar que, para nós, Wagner foi um mestre, como se todos nós de repente estivéssemos ao seu lado em roda olhando para uma pequena lousa. Wagner foi, e sempre será, meu mestre.

Perdi um irmão… perdi um amigo. Uma dor do seu tamanho toma conta da minha vida.

Quando seu corpo reencontrava a terra, uma chuva fina caia sobre o Cemitério da Vila Euclides. Enquanto nós cantávamos músicas revolucionárias e palavras de ordem, uma senhora gritava “Obrigado seu Wagner”, e cantava “segura na mão de deus”. Achei correto, achei preciso. Quando as lágrimas rolavam descontroladas vi no meio daquele povo a Juracy, mulher negra com seus cabelos brancos, dizendo com seu tom de voz inconfundível (uma das melhores oradoras que já vi falar): “quando chove no enterro de um guerreiro… é para germinar”.

Não chorei mais. Quando ia o corpo de meu amigo, um enorme coração vermelho pulsava… vivo.

***

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

1 comentário em Despedida de um guerreiro de coração vermelho

  1. Valdo Moraes // 03/09/2018 às 6:45 pm // Responder

    Grande homenagem ao nosso Wagner Lino. E o Compa Mauro, como poucos, sabe da importância deste guerreiro! Tive o prazer de, junto do companheiro Mauro,desfrutar da convivência desse grande ser!

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