Moishe Postone (1942-2018): um ataque frontal à crítica social tradicional
O ataque de Postone é dirigido primeiro contra o maior dos santos da sociedade burguesa, contra a categoria que é venerada pela direita e pela esquerda: o trabalho no capitalismo.
Por Norbert Trenkle.
Recebemos com profunda tristeza a notícia do falecimento do professor Moishe Postone nesta segunda-feira, dia 19 de março de 2018. Ele foi um teórico pioneiro da chamada vertente marxista da “crítica do valor” e um dos mais originais intérpretes da teoria crítica de Karl Marx na atualidade. Em memória deste pensador singular, publicamos aqui o artigo do integrante do grupo Krisis, Norbert Trenkle, escrito originalmente em junho de 2004, a respeito da obra mais conhecida de Postone, Tempo, trabalho e dominação social: uma releitura da teoria crítica de Marx. A tradução é de Marcos Barreira, autor da casa e colaborador do Blog da Boitempo.
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Um ataque frontal: Moishe Postone abalou a crítica social tradicional
Por Norbert Trenkle.
Há livros que alardeiam ter reinventado o mundo, embora não apresentem muito mais do que versões renovadas de banalidades já conhecidas. O contrário se aplica ao livro de Moishe Postone, Tempo, trabalho e dominação social. Calmo e cuidadoso no tom e no estilo – às vezes até demais –, ele representa, no conteúdo, um verdadeiro ataque frontal às falsas certezas de base do pensamento social crítico até então existente. Com uma enorme meticulosidade, Postone mina as bases teóricas dessa crítica e as questiona radicalmente.
Não surpreende, portanto, que essa reinterpretação da teoria de Marx, embora disponível há dez anos no original em inglês, até agora tenha encontrado pouca entrada no debate social crítico. O velho pensamento é obstinado e tem grande capacidade de resistir e reprimir. É precisamente uma minoria acadêmica, que ainda invoca Marx e nunca ultrapassou o marxismo tradicional, que o demonstra cada vez mais. Quem sabe agora, com uma tradução alemã, ela seja ao menos obrigada a renunciar à sua ignorância desafiadora.
O ataque de Postone é dirigido primeiro contra o maior dos santos da sociedade burguesa, contra a categoria que é venerada pela direita e pela esquerda: o trabalho no capitalismo. Nada parece mais natural ao pensamento burguês do que a ideia de que toda sociedade se baseia no trabalho. Ele vê o trabalho como um princípio trans-histórico, como o que torna o homem humano. É exatamente este princípio autoevidente que é questionado em seus fundamentos por Postone.
Embora o trabalho, no sentido de um processo metabólico com a natureza, desempenhe evidentemente um papel em toda sociedade, o capitalismo é a única de todas as formações sociais até essa altura que é constituída pelo trabalho ou, em outras palavras: a única em que o contexto social é mediado pelo trabalho. Essa é uma característica historicamente muito específica que distingue o capitalismo de todas as sociedades anteriores.
Tal conclusão tem consequências de grande alcance. A mediação do trabalho é essencialmente uma mediação consigo mesma, quase automática. Desafia o controle consciente e a planificação, por exemplo, através do Estado, elevando-se, ao invés disso, a “sujeito automático” da sociedade, constituindo assim uma certa forma de dominação abstrata. Nas formas objetivadas da mercadoria e do valor, confronta o homem como uma força aparentemente externa e o sujeita às suas coerções objetivas, como a compulsão ao crescimento quantitativo permanente; coerções que aparecem como leis naturais intransponíveis, embora elas mesmas, de forma alienada, sejam produzidas por seres humanos.
Raramente isso foi analisado de forma tão precisa e coerente como em Postone, especialmente no quarto capítulo de seu livro. Embora o caráter auto-mediador do trabalho esteja intrinsecamente ligado à produção de mercadorias, isso é, à característica central de uma sociedade “em que a mercadoria é a forma geral do produto e, portanto, o valor é a forma geral de riqueza” (p.229), Postone não pega o desvio através da troca de mercadorias, como disse Marx, mas persiste em seu argumento de forma consequente ao nível do próprio trabalho.
Essa “via direta” é muito mais laboriosa e difícil de entender do que o referido “desvio”, e, no entanto, é necessário segui-la. Pois somente dessa maneira pode ser dissipado esse mal-entendido fundamental que é característico de todas as variantes do marxismo tradicional. Uma vez que o trabalho sempre foi considerado como a categoria central trans-histórica de toda sociedade, sua crítica, em última análise, sempre se opôs à “transformação” dessa categoria em capital. A exploração do trabalho e o suposto “encobrimento” dessa exploração através da troca de mercadorias foram criticados, mas não a forma do trabalho abstrato em si mesma e o papel específico do trabalho no capitalismo.
Nesse sentido, como Postone não se cansa de enfatizar, o marxismo tradicional, ao contrário de sua própria autocompreensão, ocupou positivamente o ponto de vista do trabalho, a partir do qual ele fez a crítica da circulação, da propriedade privada e do mercado; uma crítica da apropriação da mais-valia pela classe capitalista e não do valor como categoria. Sua principal preocupação era libertar o trabalho e não libertar-se do trabalho.
Essa fixação irrefletida da crítica no nível da circulação e da distribuição também é a razão pela qual o marxismo tradicional chegou ao seu limite e se tornou incapaz de analisar e criticar adequadamente os desenvolvimentos atuais do capitalismo. Seu caso limite é marcado pela Teoria Crítica, cujo pessimismo resultava precisamente do fato de ela não superar o ponto de vista do trabalho, embora já não pudesse se relacionar positivamente com ele à luz do desenvolvimento histórico transcorrido.
No entanto, Postone não descarta de forma abstrata essa limitação da crítica como um “erro”, mas a classifica historicamente como expressão de um determinado período da história da constituição e da imposição capitalistas. Em geral, sua grande força reside em compreender de modo consequente o capitalismo como um processo histórico que não apenas sofre uma série de mudanças, mas que possui uma dinâmica direcional específica. Essa direcionalidade, que se estabelece na automediação contraditória da sociedade pelo trabalho e pelo valor, consiste, antes de tudo, em impor coercitivamente o seu próprio absoluto, em subsumir o mundo inteiro na finalidade abstrata da valorização do valor, isto é, em produzir uma totalidade social.
Em segundo lugar, ela se expressa no impulso permanente para aumentar a produtividade e assim tornar supérfluo o trabalho no processo de produção imediato. Dessa forma, segundo Postone, o capitalismo produz as condições e o potencial para sua própria superação.
Para o observador superficial, isso pode aparecer algo como um construto de filosofia da história. Mas seria um grande mal entendido. Postone mostra muito claramente que esta direcionalidade histórica é uma peculiaridade muito específica do capitalismo que o distingue de todas as formações sociais anteriores. A noção de uma lei trans-histórica da “história” é explicitamente recusada por Postone; de forma convincente, ele mostra que essa ideia, em si mesma, reflete a consciência típica da sociedade burguesa, precisamente essa regularidade dinâmica historicamente específica que, como as demais categorias do capitalismo, aparenta ser trans-histórica.
Esta visão possibilita uma crítica de Hegel e Lukács, que pertence ao melhor do que já foi feito a este respeito. Em contraste com o modismo da crítica da filosofia da história que é recitado hoje em dia por qualquer estudante recém-chegado, o método de Postone consiste em explicar essa forma de pensar a partir de certas relações sociais, ao invés de rejeitá-la como uma simples construção idealista. Visto desta maneira, o livro de Postone também pode ser lido como um comentário sobre o pós-modernismo, mesmo que este seja mencionado apenas ocasionalmente nas notas de rodapé.
O problema com a demonstração de Postone dessa dinâmica direcional inerente não é uma suposta direção em termos de filosofia da história, mas uma contradição imanente à sua própria argumentação. Se ele mostra que o capitalismo, em sua lógica intrínseca, pressiona para tornar supérfluo o trabalho imediato no processo de produção e, portanto, minar sua própria base, a valorização do valor, isso é na verdade o diagnóstico de um processo de crise fundamental. Um processo de crise que empurra o capitalismo até os limites de sua capacidade de funcionar e, como resultado, exclui uma parte cada vez maior da humanidade da riqueza social.
Esta consequência é apresentada logicamente na argumentação de Postone, no entanto, ela recua temerosa. Embora se fale de uma tensão crescente resultante do processo contraditório fundamental entre as forças produtivas e as relações de produção, ele as descreve apenas como uma entre as possibilidades e os potenciais que o capitalismo produz, e sua realização, que por sua vez é impedida. Que essa tensão se sustente é algo que em nenhum momento é negado.
Além disso, Postone está certo em rechaçar a ideia de algum tipo de automatismo de libertação. A dissolução emancipatória dessa tensão é apenas uma possibilidade, cuja realização pressupõe o processo consciente de superação da forma do valor e da mercadoria. Mas como é que se expressa a intensificação da contradição entre forças produtivas e relações de produção se ou enquanto não ocorre essa superação emancipatória? O capitalismo se desenrola ad infinitum numa base em constante diminuição? Ou são as suas tendências autodestrutivas que estão muito mais próximas?
Especialmente em vista dos desenvolvimentos globais atuais, essa questão é enormemente explosiva, porque estabelece o pano de fundo para a ação dos movimentos emancipatórios. Postone deixa esta questão em aberto. Mas, ao jogar por terra a crítica social tradicional, ele fornece a base teórica sobre a qual tal questão deve ser discutida.
* O artigo foi publicado originalmente na edição de junho de 2004 da Jungle World Nr. 24/2, sob o título “Ein Frontalangriff: Moishe Postone wirft die traditionelle Gesellschaftskritik über den Haufen. A tradução para o português é de Marcos Barreira.
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Norbert Trenkle é membro do comitê de redação da revista alemã Krisis, publicação de teoria crítica do valor fundada em 1986 por figuras como Robert Kurz, Roswitha Scholz e Ernst Lohoff, entre outros.
Marcos Barreira é Professor de geografia e Doutor em Psicologia Social pela UERJ. É pesquisador e membro do conselho diretor da Agência de Notícias das Favelas (ANF). Pela Boitempo, colaborou no livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.
Moishe Postone (1942-2018) nasceu no Canadá. Foi professor de História na Universidade de Chicago, co-diretor do Chicago Center for Contemporary Theory e co-editor da revista Critical Historical Studies. PhD em história pela Johann Wolfgang Goethe-University, foi um dos maiores teóricos marxistas da atualidade. Seu trabalho mais conhecido, Tempo, trabalho e dominação social: uma reinterpretação da teoria crítica de Marx, foi publicado pela Boitempo em 2014. Colaborador da Revista Margem Esquerda, assina o artigo “O sujeito e a teoria social: Marx e Lukács sobre Hegel”, que integra a edição #24 da revista.
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