O ABC da organização: recapitulação e redirecionamento de um debate que periga virar um exemplo de si mesmo

Gabriel Tupinambá parte para a sexta rodada de seu debate com Edemilson Paraná no Blog da Boitempo.

Blog da Boitempo apresenta em seu Espaço do leitor textos inéditos escritos por nossos leitores. Quer colaborar também? Saiba como no fim deste post!

Por Gabriel Tupinambá.

Gostaria de começar a sexta rodada do nosso debate – generosamente acolhido aqui pelo Blog da Boitempo – tentando recapitular os pontos-chave da conversa até aqui: sistematizando algumas dessas ideias, criticando algumas das minhas formulações anteriores e, se possível, desfazendo alguns mal-entendidos que fomos acumulando ao longo do caminho.

O be-a-bá do debate

No texto que originou nossa discussão, Três dimensões da tragédia da esquerda no início do século XXI, Edemilson Paraná propôs um modelo, assumidamente esquemático, composto por três “atratores”, três lógicas que precisariam ser distinguidas ainda que apareçam de maneira articulada nas diferentes apresentações daquilo que se auto-intitula a “esquerda” contemporânea. Para evitar alguns mal-entendidos que reforçamos sem querer por causa da nomenclatura tendenciosa que escolhemos – “esquerda parlamentar”, “esquerda saudosista” e “esquerda pós-moderna” – vou chamar cada lógica por uma letra: a lógica “A” é aquela que mapeia o mundo desde as questões da cultura, dos costumes, comunidades e identidades; a lógica “B” é aquela que faz o mesmo desde o estado, dos direitos e das leis; a lógica “C”, por fim, se organiza em torno das questões do capital, do trabalho e da esfera produtiva[1]. O que não significa que uma dada lógica não dê lugar ou nomeie os elementos que têm estatuto autônomo ou privilegiado em uma das outras dimensões – cada lógica é capaz de mapear a totalidade dos processos sociais, o que se altera é antes a divisão interna entre o que é considerado estruturante e o que é considerado estruturado. Por exemplo: é claro que os costumes e as relações de propriedade tem lugar na perspectiva orientada pela lógica do valor e da forma-mercadoria, mas esse lugar é secundário, determinado por operadores que privilegiam outras categorias.

Dividimos as três lógicas a partir da centralidade que outorgam à cultura (A), ao estado (B) ou ao capital (C), mas existem também outras formas de distinguí-las – por exemplo, considerando o tipo de conceituação que o dano recebe em cada uma dessas lógicas: numa primeira tentativa, poderíamos distinguir a opressão e o silenciamento, no caso de A, a expropriação e a ruptura no pacto representativo, no caso de B, e a exploração e a pauperização, no caso de C. A maneira como a história – e em especial o futuro – é pensada em A, B ou C também seria uma forma interessante de distinção, como sugeriu meu amigo Victor Marques. O tipo de paradoxo que interessa a cada uma – o sacrifício (A), a soberania (B) e o trabalho (C) – também poderia ser um outro marcador distintivo. Em seu artigo, Edemilson se concentra inicialmente nas distinções políticas, epistemológicas e ideológicas de cada uma, mas o essencial, em todo caso, é a proposta de distinguirmos três lógicas, cada uma delas operando de tal maneira a dar um lugar subordinado, ou mesmo ilusório, àquilo que é considerado fundamental e dominante pelas demais[2]. Ao utilizarmos descrições políticas para nomear esses três atratores, acho que podemos ter traído um pouco o espírito da investigação e, sem perceber, colorido a apresentação formal a partir dos compromissos epistemológicos dos investigadores.

Reforço aqui que Paraná faz questão de esclarecer que esses três pólos ou lógicas se misturam e articulam no caso dos espaços concretos de organização e prática das diferentes formações da esquerda. Isso nos permite esclarecer uma segunda espécie de mal-entendido que nossa discussão poderia criar: a ideia de que existiriam, em decorrência desses três pólos, apenas três frações da esquerda, cada uma representando apenas uma dessas três tendências. Não é isso que o modelo analítico proposto por Paraná implica: é verdade que podemos distinguir diferentes posições epistemológicas ou organizacionais para cada uma dessas lógicas, mas isso não significa que, numa dada frente de luta – por exemplo, num dado movimento social – não possamos encontrar um mapeamento da realidade baseado no modo C, uma atividade política baseada no modo B e uma concepção ideológica baseada no modo A, ou mesmo tensões entre mais de um princípio operando em uma de suas dimensões. Alguns aspectos do MTST talvez pudessem ser modelados dessa forma: crítica da especulação imobiliária (C), intervenção política sobre a expropriação (B), fomento da solidariedade comunitária (A). Outras composições são possíveis também.

O importante é que, não havendo um “encaixe” necessário entre essas três dimensões, cada organização pode ser entendida como uma solução local, experimental, para esse arranjo instável – o que nos permite investigar as diferentes articulações entre A, B e C que constituem cada organização política: a forma como cada uma propõe o “mapeamento cognitivo” da realidade social, apostando em um dado regime de causas e efeitos, em uma dada forma de avaliação do sucesso ou fracasso de suas ações, numa forma de lidar com a relação entre as estruturas sociais e seu próprio regimento interno, etc.

Mas além de utilizar esses três “centros gravitacionais” para pensar um modelo analítico das formações de esquerda, Paraná também usou sua conceituação como base para um diagnóstico: sugeriu que a “tragédia” da esquerda – agora se referindo ao nosso predicamento geral, e não a uma dada organização – se deve a uma tendência de que as frentes de luta se orientem apenas um desses três “tipos ideais”. Organizações centradas apenas no modo A, B ou C são ao mesmo tempo muito consistentes – uma vez que seus princípios epistemológicos, ideológicos e políticos decorrem todos da mesma lógica – e incapazes de lidar com as deficiências que são fruto dessa unilateralidade. Partidos revolucionários de linha “ortodoxa”, que entendem as questões da cultura e do estado, da opressão e dos direitos, como questões redutíveis à lógica da exploração e da base econômica, seriam casos exemplares desse diagnóstico: ao mesmo tempo em que produzem análises teóricas que reconhecem os circuitos internacionais do capital e as mutações macroeconômicas, que servem então de base para ambiciosas propostas de mudança anti-sistêmica, essas organizações podem, por conta da própria lógica “C” que organiza sua perspectiva epistemológica e política, padecer de um “elitismo político” e um “nanismo” que não têm ferramentas para superar ou mesmo avaliar adequadamente. Paraná chama atenção para os efeitos trágicos da situação em que a consistência interna de cada uma dessas três lógicas nos impede de rearticulá-las, de “reter as virtudes e descartar os vícios de cada uma”.

Minha contribuição para o modelo construído pelo Edemilson foi sugerir que essa situação – em que as três lógicas dão origem a um jogo de conflitos mútuos, cada uma se opondo as demais ao invés de produzindo misturas virtuosas – não se deve tanto à consistência interna de cada pólo, mas a uma espécie de retro-alimentação que produz a ilusão de que cada uma dessas lógicas poderia subsistir de forma autônoma. Em outras palavras, os fracassos das políticas baseadas exclusivamente em C ou B contribuem para a estabilidade e autonomia da lógica A como o pólo interpretativo fundamental, o mesmo valendo para as demais combinações, numa amarração paradoxal, simultaneamente ligando e separando seus componentes. Com isso, sugeri que existiria “uma ignorância sistemática”, ativa, na autonomização de cada uma dessas três lógicas. Ignorância epistemológica, política e ideológica, em que os fracassos de processos políticos regidos pelos demais princípios passam a atestar a validade e soberania do princípio que tem função dominante em nossa própria organização, justificando assim o esvaziamento das demais lógicas e a manutenção dessa separação estéril entre três pólos que não se misturam.

Além de contribuir para uma análise dinâmica do modelo de Paraná, o que eu tentei fazer foi suplementar o modelo dos tipos ideais proposto por ele com uma espécie de gênese histórica dessas formas puras. Isto é, a proposta de que a abstração desses três pólos se deu através de sua segregação prática. Ou seja, não seria apenas o caso de distinguir os tipos “ideais” apresentados no modelo de Paraná da “realidade” das diferentes misturas locais de A, B e C, mas também de afirmar que essas três lógicas surgem agora, e para nós, como três tipos idealizáveis justamente porque, na prática, por conta de uma forma de interação historicamente determinada, assistimos a uma crescente distinção organizacional – ideológica, política e epistemológica – entre elas.3

Foi em referência a essa dinâmica de “ignorância” ativa e mútua que polemicamente sugeri que invertêssemos o diagnóstico e o prognóstico proposto por Paraná: não temos três esquerdas, idealmente identificáveis, que precisamos unir na prática – na verdade, conseguimos apreender três tipos ideais porque, na realidade, a forma de unidade das frentes de luta já é esse processo de abstração mútua. Já existiria uma dinâmica concreta de unificação dessas três lógicas – justamente a dinâmica centrífuga que “purifica” cada uma das demais – que precisamos reconhecer, elaborar e desativar caso queiramos buscar outros arranjos e composições para as diferentes frentes e lógicas de luta.

Aproveito para esclarecer um outro mal-entendido – no qual é possível que próprio Edemilson tenha incorrido em sua leitura de minha proposta: dizer que a abstração-separação das formações de luta centradas em A, B e C é fruto de sua união realmente existente não é dizer que não deveríamos buscar outras formas de compor a articulação entre diferentes frentes de luta. Dizer que existe uma dinâmica interna de “feedback” entre organizações políticas em conflito que alimenta e justifica sua adesão unilateral a essas diferentes lógicas não é o mesmo de dizer que a tarefa de unificar a esquerda está “resolvida”. Sim, é verdade que esse diagnóstico alternativo sugere que devemos provavelmente abordar essa questão de outra forma, dado que a conjuntura estaria sobredeterminada por um tenso equilíbrio entre as partes em questão. E isso pode até mesmo significar que essa dinâmica acabou por desativar a eficácia da palavra de ordem de “unificação” da esquerda – é algo a se avaliar. Afinal, talvez esteja até mesmo implícito na proposta de Paraná que o ponto nevrálgico, ou mesmo nodal, da nossa tragédia política seria nossa crescente incapacidade de articularmos essas três lógicas em uma dada organização, ou seja, de unificá-las localmente. Em todo caso, vale insistir no fato que, apesar de apresentar a ideia de forma desnecessariamente polêmica, não estava defendendo que já chegamos numa resolução aceitável para a questão da composição das lutas.

Quem vem acompanhando nosso debate desde o primeiro texto, no entanto, deve ter notado que, após a minha réplica – e certamente também por causa dela – a orientação da conversa desviou para outra questão, o problema do poder. Essa descontinuidade ficou um pouco obscurecida, acredito, por conta de dois fatores. Para começo de conversa, o Edemilson “mordeu a isca” do meu enunciado polêmico (e mal apresentado) sobre a atual unidade complexa das esquerdas, e dedicou seu texto ao contra-argumento de que não faria sentido dizer que o problema da unidade estaria resolvido se isso não implicasse numa capacidade de ação e de disputa real do poder. E realmente não faria nenhum sentido – então ainda bem que não era isso que eu estava sugerindo. Mas, ao invés de usar a minha resposta seguinte para esclarecer esse ponto, preferi eu mesmo cair na nova armadilha que o Paraná colocou no texto dele – essa armadilha que esquerdista nenhum escapa, aquelas três palavras que tanto adoramos ouvir… “o que fazer?” – e aí só piorei a situação, querendo então expor minha visão sobre a problemática do acúmulo de força social, da estratégia, etc. Voltarei a essa questão mais à frente, mas vejo agora que, na verdade, nós não incluímos essa questão no nosso debate tanto quanto largamos o que estávamos fazendo para ir discuti-la. Mas teve também um outro fator, além desse encadeamento de armadilhas, que ocultou nosso desvio: a maneira como desdobramos a metáfora teatral da “tragédia” para a “comédia”, depois “tragicomédia”, chegando ao paroxismo – novamente, my bad! – de entrar em análises textuais de Plauto e Molière. Já que o palco era sempre o mesmo, ficou ainda mais fácil para essa ruptura passar desapercebida.

Então o que eu gostaria de fazer aqui é retomar um pouco o fio da meada, porque, caso contrário, por mais oportuno que possa ser discutir a conjuntura ou reafirmar os imperativos da luta emancipatória, não seremos capazes de entender como a proposta inicial de Edemilson contribui para a atualização e transformação de nossas questões sobre o poder e a estratégia. E corre o risco de não sermos capazes de distinguir nossas opiniões políticas daquilo que a proposta de Paraná tem de útil para a inteligibilidade de qualquer posição política na esquerda.

A sorte é que, sem muita dificuldade, podemos aproveitar os últimos três “rounds” do nosso debate para testar a validade do modelo analítico originalmente proposto por Edemilson. É esse exercício que eu gostaria de fazer agora.

Cientistas… e ratos de laboratório

Em seu último texto, As esquerdas frente ao mundo dos problemas cotidianos, Paraná mobilizou a imagem de um “pêndulo” como uma forma de mapear nossas concordâncias e diferenças. Partindo dessa metáfora, Paraná sugere que as duas posições, aparentemente divergentes, seriam, na verdade dois movimentos interdependentes de um mesmo sistema – “se olhamos a esquerda de forma para dentro, em chave trágica (Paraná), ou se de dentro para fora, chave cômica (Tupinambá)”. Dois movimentos de um mesmo pêndulo ligando a esquerda e seu exterior, ambos tensionando o “fio da transformação social”, e ambos opostos à “aparente inércia estacionária do sistema” em seu estado atual.

Na hora de estruturar este texto de resposta, fiquei tentado a mais uma vez ceder ao prazer compulsivo de seguir as consequências das metáforas – sempre engenhosas – do Edemilson, mas aí me ocorreu: por que usar uma imagem para mapear nossas diferenças quando o próprio Paraná propôs anteriormente um modelo formal que tinha exatamente a função de dar mais inteligibilidade as formas epistemológicas, ideológicas e políticas das diferentes posições no espaço de atuação concreta das esquerdas?

Inclusive, quando o texto original e minha resposta saíram aqui pelo blog da Boitempo, um outro camarada meu logo apontou: faltou vocês se posicionarem a partir do modelo que construíram, não?4 Na hora, não levei a sério a crítica, apelando para um “cientismo espontâneo” de quinta categoria: ora, esse é um modelo formal, não é uma posição política, ele é válido justamente porque não é fruto de uma posição particular! Mas a verdade é que a prova dos nove de uma formalização é sua autonomia sobre quem a formalizou – não tem essa de ficarmos de fora. Então é essencial enfrentarmos essa pergunta: como seríamos nós mesmos analisados pelo modelo analítico que propusemos anteriormente?

Numa primeira aproximação, acho que podemos afirmar que nós dois tomamos a lógica C como dominante. A “gramática” do nosso debate foi, afinal, de cabo a rabo extraída do marxismo – o que inclusive explica o cansaço e a falta de vontade de participar do debate que alguns amigos meus deixaram transparecer, provavelmente deduzindo a partir das primeiras linhas que, se esse era o nosso ponto de partida, eles só iriam encontrar aqui mais “provas” da consistência e autonomia da lógica anti-capitalista em estado puro, com todos seus chavões e limites. Os que ainda tem força de combater o unilateralismo – que nós também diagnosticamos, diga-se de passagem – ao concluírem que nosso debate se trataria de uma defesa da esquerda “saudosista”, vieram me lembrar, acertadamente, é claro, da pluralidade das lutas no país, de sua heterogeneidade e irredutibilidade às categorias clássicas da esquerda.5 Mas isso foi chover no molhado, pois se tem uma coisa que tanto o Paraná quanto eu partilhamos é reconhecer que a lógica C não é internamente consistente, ela é interdependente das demais – daí o desafio que enquadra todo esse debate.

Mas aqui nós dois começamos a divergir: na hora que a questão do poder entrou em cena, eu privilegiei a relação entre a lógica C com a lógica A – numa discussão sobre as culturas das próprias esquerdas, o problema da identificação na militância, os desafios de organização da vida do ponto de vista da contradição entre mundo do trabalho e pertencimento social, etc – enquanto o Edemilson me parece ter focado no ponto de contato entre C e B – que não se cruzam na tensão que constitui a figura do militante, como no cruzamento de C e A, mas na tensão que constitui a própria noção de demanda social. Isso explica, por exemplo, porque em sua resposta Paraná reduziu meu argumento  ao famoso “complexo de Engels” – ricos militando entre pobres, etc – e centrou sua “quintúplica” sobre a questão de como a esquerda se sai quando “comparada às empresas, ao Estado, ao tráfico, às congregações religiosas”. Isto é, privilegiou o problema do poder enquanto capacidade de responder às demandas sociais concretas a partir de uma lógica de transformação anticapitalista (C) e não apenas reformista (B).

Agora, a coisa não poderia parar por aí, até porque nós começamos o debate justamente martelando a necessidade de trabalhar com todo o abecedário, e de fato tanto eu quanto o Paraná localizamos a terceira lógica que não participa da “contradição principal” de nossas análises. Por exemplo, eu propus que a gente avaliasse o acúmulo de poder popular a partir da capacidade de uma dada organização militante (C x A) de assumir as tarefas de garantir os meios de reprodução social que normalmente dependem do Estado (B). Trouxe o Estado como um contraponto ao desafio, enfrentado caso a caso por diferentes organizações militantes, de propor um outro modelo de igualdade real.6 Como a lógica B entrou por último no meu argumento, ela apareceu principalmente como objeto a ser dividido, disputado, pelas luta cuja inteligibilidade nos exige recorrer à tensão entre C e A – estratégica que enquadra toda a minha discussão sobre a organização política como um conjunto de “meios” administrativos, infra-estruturais, onde a igualdade que buscamos para o futuro já seria testada in situ. Edemilson também não deixou a lógica da cultura e da identidade de fora de seu argumento – porém, desde que introduziu o tema do poder, sempre a traz como terceiro termo, como o campo onde se avaliaria os resultados de uma disputa melhor formalizada a partir da articulação entre C e B.

À luz dessas diferentes estruturações complexas de ABC fica mais fácil explicar porque alguns termos comuns tinham sentidos tão diferentes para cada um de nós. Quando eu perguntei como nos saímos quando comparados a outras organizações sociais, estava questionando principalmente nossa capacidade de nos fazermos de endereço das demandas de transformação social – como eu parti da tensão entre reprodução e transformação das relações de produção, minha preocupação não é tanto com a capacidade das organizações de esquerda de atender as demandas, mas, antes disso, de participar do circuito de expectativas de transformação. Quando falei do sofrimento como “história das instituições”, meu ponto era que as organizações que acumulam poder são aquelas que sabem absorver a tensão entre o que somos e o que desejamos, espaços que tem um lugar – pode ser até mesmo o lugar do “pecado”, não importa – para a fraqueza e para a incapacidade de estar a altura do que se deseja, lugar sem o qual não é nem possível articular onde se quer chegar. Por outro lado, vindo de outro recorte epistemológico, Paraná entendeu essa pergunta em uma chave distinta: para ele, não se trata de saber se somos capazes de suportar melhor que outras formas institucionais (B) a tensão identificatória (A) que a luta anticapitalista (C) pode produzir, mas de saber se temos capacidade de atender as demandas sociais normalmente dirigidas ao Estado e seus substitutos (B), com isso acumulando força social contra-hegemônica (A) o que nos colocaria em posição de agir com eficácia contra a lógica capitalista (C).7

Sou o primeiro a concordar que a tessitura dos nossos argumentos é um pouco mais complexa que isso, mas acho que o modelo analítico do Paraná já demonstra aqui sua validade – ele de fato captura o essencial da diferença entre duas formas de encenar o confronto principal (C x A ou C x B) e o papel sobredeterminado que sobra para a terceira lógica (B, para mim, A, para Paraná). Resta dizer que, se esse é o caso, então para mim poder popular se mede em relação ao Estado (B), enquanto para o Paraná se mede em relação à cultura (A) – o que é algo que eu não tinha percebido.

Uma outra coisa que fica clara é que Paraná e eu adotamos uma estratégia de pensamento parecida, localizando a tensão fundamental do nosso predicamento na relação entre duas lógicas – a lógica C dá a gramática básica de nossos aparatos críticos, mas pensamos a intervenção política desde lógicas diferentes, A e B, respectivamente – o que faz com que a lógica sobressalente – o problema do Estado, para mim, e o problema da cultura, para ele – apareça como o campo em que se mede os resultados da disputa mais fundamental. Agora, seria essa a única estratégia – ou mesmo a mais adequada – a ser construída a partir do modelo analítico de que partimos?

Uma crítica “frankenstein” – o que não é o mesmo de “auto-crítica”, dado que é uma crítica dirigida pelo modelo criamos contra nós mesmos – seria a de que nós dois acabamos reduzindo a lógica que sobra, a “ponta solta” de cada encadeamento, ao quadro conceitual sobredeterminado pela articulação entre as outras duas perspectivas. Já é um avanço, dado que nenhum dos dois casos é propriamente reducionista, mas é notável que tanto eu quanto o Paraná não escrevemos praticamente nada sobre a maneira como o deslocamento de endereçamento do Estado para as organizações políticas ou como a formação de um consenso contra-hegemônico, respectivamente, produziria efeitos anti-sistêmicos sobre a lógica C. Fica sobrando ali, em ambos os casos, uma pontinha de idealismo que perturba o regime complexo de causas e efeitos que pautava o debate até então – sintoma que um poderia denunciar ad infinitum no texto do outro, sem nunca chegarmos a lugar algum.

Então… o que fazer? Brincadeira! Mas fica mesmo a questão de por onde prosseguir essa nossa investigação. No restante desse texto vou tentar encaminhar algumas sugestões de como poderíamos continuar a desenvolver o modelo analítico que o Paraná propôs – se possível, introduzindo, de maneira compatível com as categorias formais com as quais estamos trabalhando, elementos relativos ao problema do poder e tal.

O nó da coisa

A primeira coisa que eu proporia é reduzir ao máximo as referências nesse modelo a situações concretas e interpretações políticas. A grande vantagem da proposta de Paraná é aumentar a inteligibilidade das formações históricas singulares da esquerda – isto é, nos dar ferramentas para entender o que é que compõe a esquerda, e não tanto o que esse campo deveria ser. É por isso que fiz um esforço de renomear logo de saída as três lógicas que o Edemilson distinguiu, marcando apenas com diferentes letras o funcionamento interno de cada uma.

Ao mesmo tempo, essa redução formal foi bem mequetrefe, uma vez que simplesmente pressupus que é possível tratar de maneira autônoma esses três domínios. As justificativas para tal, em todo caso, vem de três fontes:

  1. Da proposta inicial do próprio Paraná, que extraiu essas três tendências ou “centros gravitacionais” a partir da situação empírica das esquerdas. É a fonte política da coisa.
  2. Da heterogeneidade epistemológica das teorias críticas contemporâneas, dado que sem muita dificuldade podemos ver também que há uma diferenciação possível no campo teórico dependendo de qual questão é tomada como central pelo discurso crítico: a questão das comunidades, a questão da soberania ou a questão do valor.8 Ao invés de buscar interpretar esse fato, tomei essa distinção como um sinal de que existem três pontos de partida igualmente legítimos e que descortinam três lógicas racionais – mesmo que incompletas – a respeito do mundo social. É a fonte epistemológica.
  3. Há ainda a fonte filosófica, claro, que é a afirmação – que não vem da política e nem do compromisso com uma dessas perspectivas críticas – de que temos recursos formais para suspender nosso julgamento sobre como as três lógicas devem se relacionar. Essa suspensão a priori nos levaria então a investigar as formas singulares de organização localizada desses complexos.

Mas nenhuma dessas três justificativas esclarece ou desenvolve exatamente como deveríamos entender a interioridade de cada lógica. A lógica A, seria ela essencialmente a lógica do dom e do contra-dom? Podemos pensar B como sendo a lógica do pacto, da soberania e do contrato social? Faz sentido tratar a lógica do valor e da forma-mercadoria como uma lógica autônoma? E mais: mesmo que, em termos empíricos, epistemológicos e filosóficos, a resposta seja “sim”, sobra ainda a questão de como falar sobre a lógica das amarrações e articulações instáveis entre elas. O marxismo, por exemplo, produziu uma série de dispositivos para tentar relacioná-las: a famosa metáfora do edifício com uma base em C e uma superestrutura (B e A), a proposta althusseriana de uma “autonomia relativa” das esferas não-econômicas, etc. Todo nosso debate até aqui foi um exercício nesse sentido, mas não temos nomes para esses operadores, o que dificulta a discussão sobre como organizações se arranjam com essas dimensões.

Duas tarefas em aberto, então: (1) justificar teoricamente a autonomia das lógicas A, B e C; (2) explicitar – através de exemplos para começar, talvez – o que significa “amarrar” as três numa dada organização.

Outra questão interessante diria respeito à “organização das organizações” – o que alguns chamam de  “ecologia das organizações”. Por enquanto, nosso debate ficou preso em dois pólos extremos: ou falamos da constituição de uma organização local, ou discutimos a organização da esquerda como um todo. Mas a realidade não é bem assim, e muita gente veio reclamar comigo dessa falha. Na verdade, existem organizações locais, organizações que combinam organizações, etc. E levar isso em conta não contradiz de forma alguma esse nosso formalismo, pelo contrário: me parece perfeitamente possível conciliar, por exemplo, a análise da amarração que define o funcionamento de uma organização que é uma corrente dentro de um partido com a análise da organização do próprio partido, que usa de outra amarração entre A, B e C para conciliar as diferentes correntes que compõem seu espaço. Podemos ter estruturas calcadas na gramática estatal – como é o caso de um partido que participa de eleições e tem gabinetes parlamentares, etc – servindo de princípio organizativo para correntes que se organizam internamente por outra gramática, por que não? O PSOL parece um ótimo exemplo desse tipo de ecossistema ou reserva florestal.

Essas questões que levantei – (1) a justificativa da autonomia interna de A, B e C, (2) a conceitualização dos operadores de imbricamento, (3) a questão da relação entre escalas de organização – todas dizem respeito à necessidade de suplementar o modelo formal com que trabalhamos com operadores adicionais. Mas existem também questões em aberto que decorrem de uma problemática um pouco diferente.

A primeira decorre da crítica que mencionei no final da segunda parte. Aquele impasse tem, na verdade, duas faces. De um lado, temos o problema que apontei: o modelo que elaboramos sugere que é preciso analisar a composição dessas diferentes lógicas na constituição de um dado enquadre epistemológico, político e ideológico – mas, por esse mesmo critério, nem eu nem o Edemilson escapamos de uma espécie de reducionismo de segunda ordem. Não chega a ser realmente um problema em si – são compromissos possíveis, por que não? – mas de alguma maneira não parecem corresponder, pelo menos no meu caso, ao que tínhamos nos proposto. Mas há também uma intuição importante nesse tratamento “idealista”, que é que essa desarticulação entre a lógica sobressalente e a lógica dominante – por exemplo, a relação entre a nova hegemonia (A) e a transformação do capitalismo (C) na proposta de Paraná – cumpre uma função: nos ajuda a distinguir organizações orientadas pela transformação das propriedades uma dada formação social das organizações interessadas na sua preservação.

Essa é uma intuição que mereceria ser desenvolvida. Apontei desde o início que uma das coisas que mais me atraiu na proposta de Três dimensões da tragédia da esquerda foi estendermos o alcance de categorias analíticas que servem normalmente para pensar o resto do mundo para que também se aplicassem às nossas organizações. Mas um problema que isso cria é achar uma forma de distinguir então a estrutura de organizações políticas de esquerda das demais organizações sociais – digo em termos de organização mesmo, e não apenas de falatório. Me parece que nosso debate sobre estratégia e poder estava elaborando, por baixo do nosso próprio falatório, essa questão – e, de certa forma, a deficiência que apontei acima na verdade carrega lá o germe de uma solução: a distinção teria que ser feita no campo das amarrações entre A, B, C – é uma questão de encadeamento. De que maneira combinações entre A e B podem servir para “negar” C? E o que significa “negar” C pra começo de conversa, dado que C não é consistente por si só e depende de A e B?

Talvez haja aí uma forma de repensar o que significa intervir sobre uma formação social, partindo da co-pertença de organizações formadas por composições entre diferentes lógicas e questionando se uma organização, ou complexo de organizações, estruturado de uma dada maneira, pode contribuir para desarmar ou desatar a co-implicação entre esses três registros numa formação mais abrangente – no âmbito municipal ou nacional, por exemplo. A crítica de que ficou uma “ponta solta” em nossas estratégias seria assim uma solução de compromisso entre uma intuição de que a negação de uma lógica depende do desatar do nó entre ela e as demais e a falta de ferramentas para simbolizar esse tipo de processo. Sob essa interpretação, “transformar” significa “desencadear” alguma coisa.

Na verdade, teve um leitor do debate que eu acho que teve a mesma intuição. Mencionei lá no começo que um camarada meu cantou a bola logo que leu os primeiros textos desse debate e perguntou como mapearíamos a minha posição e a do Paraná dentro dessa esquematização. Acontece que esse meu amigo – carinhosamente conhecido pela militância carioca como “Fidel Carlos” – também propôs uma outra contribuição bem legal.

No comentário que escreveu sobre a discussão,9 ele apontou a necessidade de considerarmos como parte da estruturação de uma organização a forma como essa se articula aos grupos que não são de esquerda. Já numa primeira tentativa de elaborar essa ideia, Carlos diferenciou duas “imagens” ou formas de articulação entre a esquerda e o seu outro: a do “povo”, quando essa articulação com os outros reforça a estabilidade da amarração complexa da organização, e a das “pessoas normais”, quando essa associação é potencialmente desestabilizadora. Ao primeiro caso, ele associou a fantasia de um “paraíso na terra”, à segunda, uma situação que expõe a esquerda ao horror.

Quando eu pensei sobre a contribuição do Carlos à luz dos limites do que eu e o Paraná propusemos, percebi que a suplementação sugerida pelo Fidel vai mesmo no coração da coisa: se a gente entende que as organizações de esquerda são qualitativamente diferentes das demais organizações sociais porque as primeiras têm um compromisso com o desencadeamento dos três componentes que fazem o “nó” de uma formação social, então qual o pressuposto que está em jogo quando não precisamos explicar como que a tal da “ponta solta” (a profanação da infra-estrutura pública, para mim, a potência de uma contra-hegemonia, para o Edemilson) se relacionaria com a lógica que ambos pretendíamos negar – a lógica do valor? Ora, é a suposição de que ali o “povo” dará suporte ao processo de transformação.

A intervenção do Carlos parece sugerir que o tipo de propriedade atribuível a esse espectro, sempre a rondar as esquerdas, diz respeito a essa teoria ainda não conceitualizada do enodamento de um complexo organizacional. Seja na forma do populus – da uma comunidade pública que constitui um  “comum” irredutível à A, B ou C – ora como vulgus – essa força monstruosa de corrupção da esfera pública, paradoxalmente associal e manipulável, reino da zueira e da obscenidade, mas igualmente irredutível à qualquer das três lógicas – é essa fantasmagoria que vem recobrir o fato de que, quando nada é desencadeado no mundo, as organizações políticas de esquerda são, em sua estrutura, apenas um subgrupo das formas de organização social possíveis. Essa parceria espectral é o que nos distingue do resto do mundo, pelo menos na maior parte do tempo.

Mas nem sempre. Para terminar esse pequeno tratado de sistematização do nosso debate e de suas questões em aberto, eu queria esboçar uma conjectura adicional.

O “ABCD” do comunismo

Tentei reconstruir acima três críticas que apontam para desafios ainda em aberto nessa investigação:

  1. O modelo formal com que trabalhamos nos permite distinguir o que é negar uma das lógicas que compõem um complexo social do que é negar esse complexo como um todo. Permite que pensemos a transformação social como um problema de “desencadamento” de uma dada amarração entre A, B e C. Essa perspectiva é o que possibilitaria a gente distinguir as organizações políticas transformadoras das organizações sociais em geral – ainda que a gente não tenha elaborado mecanismos conceituais para considerar direito esse tipo de operador, o que apareceu em nossos textos anteriores como um certo tratamento idealista daquela lógica que deveria ser “redirecionada”: ao invés de suportar C, deveria negá-la.
  2. “Teorema” do Carlos: uma das maneiras como essa distinção pode ser mantida ao mesmo tempo em que a consistência do “nó” de ABC é preservada numa dada organização é pela referência ao populus. O nome que se daria à desestabilização dessa unidade interna seria a interferência do vulgus: a face desagregadora da relação entre uma organização de esquerda e as demais organizações sociais. O “povo” seria, assim, uma espécie de solução de compromisso conceitual: permite que a gente mantenha a ideia de desarticulação entre ABC no campo social ao mesmo tempo em que confiamos que nossa própria forma organizacional permanece articulada e consistente.
  3. A proposta do Carlos se refere às “imagens” daquilo que não é nem A nem B nem C dentro de uma dada articulação de A, B e C – e faz sentido mesmo falar em imagem ou “espectro” aqui: se A, B e C são espaços lógicos fechados, e se a lógica de sua amarração não é portanto dada por nenhum deles, a ideia de que existe algo que não pertence a nenhuma dessas lógicas já precisa estar operando dentro delas, como efeito colateral de sua consistência – sua “interindependência”, como o Fidel Carlos malandramente nomeou. “Deus” é um nome possível para a existência virtual de uma instância que enlaçaria de forma irredutível os componentes de uma formação social – “povo” poderia ser outro.

A conjectura que eu gostaria de propor é que, tomados em conjunto, esses três pontos indicam a necessidade de incluir uma quarta lógica no nosso modelo – chamemos ela de “D”.10 Essa conjectura visa responder simultaneamente a essas três intervenções.

Primeiro, dando ao problema da amarração entre A, B e C o mesmo estatuto lógico dessas lógicas: afinal, por que não tratar a articulação entre três lógicas que tem cada uma seu próprio princípio organizativo como uma lógica organizacional ela mesma? É um pouco a questão da ecologia das organizações, que mencionei anteriormente: na hora que introduzimos o problema da escala no modelo, e nos permitimos pensar como organizações podem fazer parte de outras organizações maiores, já estamos esvaziando o caráter transcendente dessa lógica de enodamentos e desarticulações. D seria assim definida como a lógica na qual é possível associar regimes lógicos desassociados: uma lógica que se orienta, portanto, por uma certa indiferença ao laço social.  Incluindo essa outra dimensão no modelo formal geral, nós seríamos levados então a investigar também se organizações possuem recursos organizacionais para desatar laços entre comunidade, propriedade e valor, ao invés de tratar esse desencadeamento em termos de qualidades inefáveis de outra ordem. Essa proposta nos permitiria, inclusive, avaliar de forma diferenciada os elementos que compõem aquela série improvável que Paraná e eu discutimos, quando comparamos as organizações de esquerda às empresas, igrejas, milícias, etc – afinal, cada uma tem uma forma diferente de lidar com o trânsito, ou desarticulação, entre A, B e C.

Essa inclusão nos permitiria também tratar a divisão entre populus e vulgus – entre a consistência ou inconsistência de uma dada organização complexa – como efeito da redução de D ao compósito de A, B e C: “povo” é o nome daquilo que transcende ABC quando essa negação do complexo social está impedida, de saída, de apresentar uma lógica social própria, tão fechada e incompleta quanto às demais, e igualmente localizável. O que sobra é uma espécie de “ilusão transcendental” cujas únicas propriedades pensáveis são “estabilizar” ou “desestabilizar” uma dada forma de organização – ou uma luta é popularizada ou vulgarizada. A inclusão de um quarto “anel” nesse modelo nos permitiria sair pela diagonal dessa questão, desinflando o problema pela via da lógica através da qual uma dada organização de ABC consegue suportar se organizar com aquilo que não reforça essa mesma amarração. A inclusão de D aumenta o número de variáveis a serem investigadas caso a caso, bem como oferece outros critérios de avaliação para a dimensão “popular” de uma organização: popular seria, antes, uma organização que prescinde da fantasia do povo, dado que se organiza pela amarração de ABC e D.

Outra vantagem seria de podermos reconhecer uma dívida essencial com o feminismo, que luta desde sempre pela consideração prática e teórica da dimensão da reprodução social como um campo autônomo, com uma lógica própria, cuja problemática é irredutível aos paradoxos das comunidades (A), estados (B) e do trabalho (C).11 Por exemplo, a bruxaria nunca foi um escândalo porque seria “ilógica” – o insuportável sempre foi justamente o contrário: que se trata de uma forma de organização e articulação singular entre retalhos, cuja visibilidade ameaça o estatuto fantasmagórico do povo. Quão mais eficaz é a luta das mulheres, menos sustentável é a referência a uma articulação transcendental do mundo social. Introduzir uma quarta lógica no nosso esquema seria análogo, portanto, a questionar “e o que faziam as mulheres?” quando investigamos a amarração de A, B e C em uma dada organização social concreta – invariavelmente a questão introduz um grau de inteligibilidade irredutível às lógicas da segregação (A), da expropriação (B) e da exploração (C).

Por fim, essa proposta contemplaria ainda uma outra questão, que estava implícita nesse desenvolvimento todo: a questão sobre a lógica social que subsume os recursos formais que utilizamos aqui. Afinal, não seria muito difícil antecipar algumas das críticas que, denunciando nossos compromissos velados e escusos, buscariam deslegitimar todo esse nosso exercício. “Formalizar”: não seria isso um clássico exemplo de racionalismo burocrático, de formalidades e formulários (B)? Ou, melhor, mais um caso da lógica niveladora dos equivalentes gerais que com tanta facilidade colocam tudo no mesmo saco (C)? Ou ainda, a expressão de um desejo de pertencer à comunidade científica, às custas da segregação dos não-iniciados na linguagem acadêmica (A)? Essa suspensão de uma determinação a priori sobre como essas diferentes lógica se relacionam – não seria isso um sinal de que queremos impor um pensamento único sobre a heterogeneidade cultural (A)? Talvez a expressão de uma fé desenfreada na capacidade de representar toda a sociedade (B)? Não seríamos vítimas da velha debilidade universalista da ideologia burguesa (C)? Todas essas críticas eu já ouvi – e me faço de tempos em tempos, por uma questão de higiene conceitual mesmo. Mas se esse esforço pudesse ser reduzido a um desses princípios organizacionais, como explicaríamos então que esse modelo formal (1) vise a análise de uma conjuntura naquilo que ela tem de insubstituível (¬C), (2) que seja um modelo que é capaz de promover críticas até ao posicionamento de quem o criou (¬A) e (3) que não seja prescritivo sobre o caminho que uma dada organização deva tomar (¬B)?

Se a gente define que existe uma lógica da livre associação, uma forma concreta (e portanto passível de análises conjunturais, caso a caso) de navegar lateralmente entre diferentes lógicas sociais, preservando uma certa indiferença a elas – ainda que, como no caso de A, B ou C, seja uma lógica que dependa das demais para ser consistente – então o que a minha conjectura propõe aqui como aporte para o problema do poder e da transformação social não é nada além da consideração explícita de uma lógica sem a qual esse debate todo nunca teria sido possível. A capacidade de formalizar é justamente a capacidade de organizar desde a indiferença12 – capacidade essa que associamos imediatamente à ciência, é verdade, mas que não tem por que ser reduzida a essa esfera, a não ser que façamos uma redução de D à lógica das comunidades, ou seja, a A.

Se esse debate é racional, então D é possível. Se D é possível, então podemos também investigar onde mais na vida social essa possibilidade é inteligível e atuante.


NOTAS

1 Todo esse texto pode ser entendido como uma tentativa descarada de apropriação das categorias elaboradas por Kojin Karatani em seu livro The Structure of World History (Duke Press, 2014), onde o autor propõe que devemos analisar as formações sociais do ponto de vista da imbricação de diferentes modos de intercâmbio: A, a lógica do dom, B, a lógica do contrato social, C, a lógica da troca mercantil – e D, a lógica da associação livre. Desde o primeiro texto do Paraná venho flertando com a ideia de traduzir sua proposta em termos das lógicas “A”, “B”, “C” e “D” apresentadas por Karatani. A presente contribuição é portanto um esforço de transformar a análise macro-histórica de Karatani em ferramentas para a teoria da organização. Aproveito para dedicar esse experimento teórico ao pessoal do grupo de leitura de Karatani que rola lá em casa semanalmente!
2 A análise “ perspectivista” proposta por Rodrigo Nunes no excelente Geração, acontecimento, perspectiva: pensar a mudança a partir do Brasil me parece partir de um modelo analítico parecido, em que a tensão da conjuntura pós-2013 no Brasil é entendida a partir do conflito entre visões de mundo igualmente legítimas e – justamente por isso – incomensuráveis. “ Em termos formais, podem-se distinguir os polos da tensão constitutiva de diversas maneiras. Do ponto de vista da iniciativa política, seria a tensão (para dizê-lo como Maquiavel) entre Povo e Príncipe, ou entre base e liderança; do ponto de vista da continuidade do processo, seria a tensão (para falar como Deleuze e Guattari) entre desterritorialização e reterritorialização, entre mudança desestabilizadora e estabilização ou estabilidade, entre entropia e ordem, acontecimento e estrutura. Ocorre que cada um desses polos representa, ao mesmo tempo, uma perspectiva diferente, outro olhar sobre cada situação. Estas perspectivas devem ser compreendidas num sentido formal e não substancial, ou seja: por um lado, são um aspecto não eliminável da política, a própria hesitação entre potencialidade e atualidade; por outro preexistem a qualquer sujeito determinado que as possa ocupar (o indiví- duo que é «radical» perante uma questão pode ser «moderado» perante outra e vice-versa). Manter aberta a tensão entre os dois polos implica, portanto, o esforço conjunto de ambas as partes para se manterem sob «um mesmo teto», tanto em sentido figurativo quanto, amiúde, literal. Elas devem se ver como complementares e não antagônicas, necessárias uma para a outra, o que supõe se reconhecerem mutuamente como olhares legítimos lançados sobre a situação” Ver: https://nuso.org/media/articles/downloads/2._Nunes_EP_14.pdf
3
 O artigo do Rodrigo Nunes que mencionei anteriormente faz exatamente isso, associando o problema geracional à questão das perspectivas políticas incomensuráveis, refratadas por Junho de 2013. Vale mencionar aqui também o artigo “Uma ou duas melancolias?” onde Nunes trata de maneira mais direta desse sistema de “ feedback”, através do conceito de “ cismogênese simétrica”.

4 Ele escreveu: “Uma crítica que faço aos dois camaradas é que não é possível identificar nos respectivos textos de quais grupos eles falam. Se eles falam desde o campo da esquerda, então falam de algum desses grupos. Ou será que existe alguma zona neutra do qual pudéssemos criticas a esquerda sem se “contaminar” com suas contradições? E mais: se reconhecer em um desses grupos não é justamente o passo fundamental de questionarmos o próprio arranjo deles, na medida que somos apenas mais um que padecemos deste gozo sintomal? Fora disso, me parece apelar para a “bela alma da esquerda” que não se confunde com as suas contradições. Eu sou do grupo 1, embora respeite o 2 e um pouco menos o 3. E vocês? De qual grupo são?” – disponível aqui: https://notas.ideiaeideologia.com/nota-6-25042017-rj-i/
5 Cito como um ótimo exemplo o belo texto do Jean Tible: https://www.buala.org/pt/vou-la-visitar/brasil-brasa-chama-algumas-notas-sobre-a-situacao-politica-brasileira
6 O coletivo do qual faço parte, o Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia, desenvolve essa perspectiva já há um tempo – dá para acessar alguns dos textos que elaboram essa visão estratégica aqui: https://www.ideiaeideologia.com/o-circulo
7 Seria curioso investigar se a minha preferência por partir do confronto entre C e A não se deriva de uma posição teórica zizekiana, enquanto Paraná parte de uma visão essencialmente compatível com a minha, mas centrada entre C e B, o que poderia ser derivado de um compromisso teórico mais althusseriano.
8 Vale reforçar aqui que essa forma de análise social baseada na amarração de diferentes “ modos de intercâmbio”  – dom, contrato e mercadoria, distinguidos inclusive pelas letrinhas A, B, C – foi proposta pelo filósofo marxista japonês Kojin Karatani, primeiro em seu livro Transcritique e depois em The Structure of World History. A transposição das categorias do estudo das formações sociais para a análise das organizações de esquerda é uma proposta que ele não desenvolve, no entanto.
9 “Por uma socialização do tédio e da preguiça ou a nossa tragédia do século XXI em escala chinesa”: https://notas.ideiaeideologia.com/nota-6-25042017-rj-i/
10 Sim, até isso já está no Karatani.
11 Gosto muito dessa apresentação da Alana Moraes sobre o “comunismo-feiticeiro”: https://urucum.milharal.org/2017/03/11/revolucaofeminista-bruxas/
12 Seria preciso explicitar e elaborar, ainda, a “hipótese bogdanoviana” de que a organização de representações num campo teórico e a organização de pessoas no campo social, sendo ambas organizações, podem partilhar de uma mesma lógica.

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Gabriel Tupinambá é psicanalista, pesquisador no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e coordenador do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (www.ideiaeideologia.com). Autor do livro Hegel, Lacan, Žižek (Atropos Press, 2013), de contribuições nos livros editados Slavoj Žižek and Dialectical Materialism (Palgrave, 2016), Repeating Žižek (Duke Press, 2015) e Althusser and Theology (Brill, 2016) – além de autor da orelha da edição brasileira, publicada pela Boitempo, do livro O sujeito incomodo: o centro ausente da ontologia política, de Slavoj Žižek.

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2 comentários em O ABC da organização: recapitulação e redirecionamento de um debate que periga virar um exemplo de si mesmo

  1. Antonio Tadeu Meneses // 21/12/2017 às 12:23 am // Responder

    Credo! Não “cumpriquem”

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