Críticas ao artigo “Marx na floresta”, de Jean Tible // Debate Margem Esquerda

“Jean Tible procura promover uma aproximação de Marx com as temáticas antropológicas, mas me parece que Marx está na verdade cada vez mais se distanciando delas. O autor adere a uma espécie de ‘razão etnológica’, enquanto que Marx é crítico dessa perspectiva.”

Por Lucas Parreira Álvares.

O que para dentro da floresta se grita, para fora da floresta ecoa.
(Provérbio citado por Marx em  Crítica à Filosofia do Direito de Hegel – Introdução)

A recém publicada vigésima nona edição da revista Margem Esquerda traz, no interior de seu dossiê – cuja temática é “Lutas indígenas e socialismo” – um artigo intitulado “Marx na floresta”, de autoria de Jean Tible, professor do Departamento de Ciências Políticas da Universidade de São Paulo.

A tese de doutorado de Tible, Marx e América Indígena: diálogo a partir dos conceitos de abolição e recusa do Estado (2012), que posteriormente foi adaptada para uma edição em livro com o título Marx Selvagem (2013) é, até então, a obra-prima do autor. Isso pois Tible, paradoxalmente à sua renomada experiência acadêmica, é um autor ainda relativamente jovem, cujo imponente tecido teórico será ainda muito ampliado. Diversos outros textos publicados por Tible tiveram uma temática complementar à sua tese de doutorado, como os artigos “Marx e os Outros”, “Marx contra o Estado”, “Cosmologias contra o capitalismo: Karl Marx e Davi Kopenawa”, “Marx and Anthropophagy: Notes for a Dialogue Between Marx and Viveiros de Castro”, entre tantos outros – como por exemplo, Marx na floresta, o artigo aqui mencionado. Parece-me, entretanto, que a essência desses textos de Jean Tible já está contida em sua tese de doutorado.

Um estudante no Brasil que eventualmente tenha interesse em pesquisar os aspectos “etnológicos” na obra de Marx, ou então a relação entre Marx e a américa indígena, ou mesmo que tenha interesse em investigar os assim chamados “Cadernos etnológicos” de Marx, pode até não concordar com as formulações de Tible, mas se por acaso esse estudante não mencioná-las no espectro de sua revisão bibliográfica, certamente sua pesquisa estará incompleta.

Por isso, escrever um texto em resposta a Jean Tible me parece uma tarefa que contém um caráter dúplice: por um lado, a necessidade de reconhecer a importância dos trabalhos do autor para a temática que nos é comum – a saber: os apontamentos históricos/etnológicos na obra de Marx; por outro lado, desvelar eventuais fragilidades e perigos da abordagem que o autor escolheu trilhar. Para a tarefa que pretendo executar, tomarei como referência o texto “Marx na floresta”, do qual citarei passagens diretas. Mas, é claro, convido o leitor a apreciar integralmente o artigo de Tible publicado na Margem Esquerda. Afinal, mesmo que eu citasse substancialmente o artigo, não conseguiria reproduzi-lo em sua totalidade.

A Margem esquerda n.29 se debruça sobre a questão indígena, em dossiê organizado pela pesquisadora Silvia Adoue, com artigos de Jean Tible, Laura Zúñiga (Honduras), Gabriel Moraes Ferreira de Oliveira e dela. Em diálogo com o dossiê, a seção de artigos apresenta uma reflexão do historiador Luiz Bernardo Pericás sobre a questão agrária hoje, seguido pelo resumo da pesquisa em campo da antropóloga Marina Ghirotto Santos sobre o bem viver. Confira o sumário completo da edição aqui.

Logo no início do artigo, Tible sugere que sua investigação tem como ensejo “um esboço de outro Marx” (p.34). O autor ecoa Oswald de Andrade em seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil para propor um marxismo “contra a cópia, pela invenção e pela surpresa; uma nova perspectiva” (p.34). Percebam como já desse início é possível extrair uma hipótese: as investigações de Marx sobre as perspectivas indígenas aparecem, na interpretação de Jean Tible, como trabalhos que retratam um “outro Marx”. Mas o que tem de “outro” nesse Marx? Acredito ser esse um bom ponto de partida – a saber: analisar em que medida há um distanciamento ou não entre essas investigações e a totalidade da obra de Marx. Guardemos, pois, essa inquietação – que será retomada no decorrer dessa exposição – para nos atentarmos ao seguimento da exposição de Tible.

Na sequência do artigo, o intuito da investigação de Tible envereda para a leitura que Marx fez de Lewis Morgan – autor este compreendido pela antropologia como um dos representantes oitocentistas da corrente assim chamada “evolucionista cultural”. Através da leitura de Ancient Society, obra-prima de Morgan, Jean Tible vai cravar uma nova hipótese: “Pela primeira vez, Marx teve contato com relatos detalhados da existência concreta de uma sociedade sem classes, a dos iroqueses” (p.34-35). Tible sabe muito bem que através da literatura do historiador alemão Georg Maurer, algumas décadas antes de seus Cadernos etnológicos, Marx já havia tido contato com a “existência concreta de uma sociedade sem classes”, afinal, em carta a Engels em março de 1868, Marx – baseado nas investigações sobre Maurer – diz que a era primitiva de cada nação corresponde a uma “tendência socialista, embora aqueles homens eruditos não tivessem ideia de que houvesse qualquer conexão entre elas. Ficam, portanto, surpresos ao descobrir o que é o mais novo no que é o mais velho – mesmo os igualitários, a um ponto que teria feito Proudhon tremer” (MARX, 2006, p.130). Mas Tible tem razão em afirmar que, pela primeira vez, tratou-se de “relatos detalhados” de uma sociedade sem classes, no caso, os Iroqueses. Porém, qual o sentido do tratamento dos Iroqueses na totalidade da obra de Marx?

Ao apresentar os detalhes da edição dos Cadernos etnológicos de Marx organizados por Lawrence Krader, é necessário algumas observações para que as formulações de Krader não se tornem preponderantes. Segundo Jean Tible, “neles [os Cadernos etnológicos], entre 1880 e 1882, Marx transcreveu, anotou e comentou trechos das obras de quatro antropólogos: Morgan, John Budd Phear, Henry Summer Maine e John Lubock” (p.35). Na verdade, Marx não tomou nota nem de apenas quatro autores, e nem esses quatro autores mencionados eram antropólogos. É evidente que esses autores trouxeram contribuições para o que hoje entendemos enquanto “etnologia” (ou antropologia), entretanto conceber tais autores como antropólogos (ou etnólogos) é tão equivocado quanto dizer que Marx também era um etnólogo pelo simples fato de ter contribuições para temáticas que permeiam a etnologia – muito embora Krader atribua esse “título” a Marx em um artigo de 1973 intitulado “Marx as Ethnologist”. O problema aqui não é o fato de que determinado autor seja jurista – por exemplo – e desenvolva trabalhos no âmbito da etnologia, mas sim, esse autor ser apresentado como antropólogo numa época em que sequer a antropologia havia se consolidado enquanto um campo de conhecimento específico.

Dos quatro autores dos Cadernos etnológicos, Phear e Maine eram juristas de formação, inclusive fizeram carreira na área; já Lubbock é um dos percussores da produção de conhecimento arqueológico, sendo um dos responsáveis por conceber a arqueologia como uma disciplina científica; e Morgan, esse sim, mesmo tendo sua formação enquanto jurista, destinou sua carreira para os temas etnológicos. As notas desses quatro autores, na verdade, constituem aproximadamente apenas metade dos cadernos de Marx de 1879 a 1882 que contém informações sobre sociedades não ocidentais e pré-capitalistas. Além dos editados por Krader e mencionados por Tible – e nesse bojo incluo aqui também os Cadernos Kovalevsky (p.35) –, ainda constam anotações dos seguintes autores: o funcionário público colonial Robert Sewell e seus escritos sobre a história indiana; os historiadores e juristas alemães Karl Bücher, Ludwig Friedländer, Ludwig Lange, Rudolf Jhering e Rudolf Sohm sobre a formação do Estado, classe e gênero em Roma e na Europa medieval, o advogado britânico J.W.B. Money e seus estudos sobre a Indonésia; dentre outros trabalhos acerca do que hoje entendemos como antropologia física e paleontologia (ANDERSON, 2010, p.197-198). É notória a intenção de Krader, como antropólogo, em selecionar os textos assim chamados “etnológicos” de Marx para a edição que organizou. Entretanto, me parece que da mesma forma um jurista poderia ter selecionado textos e seu critério e organizado os “Cadernos jurídicos” de Marx, ou que um geólogo pudesse editar os “Cadernos paleontológicos”. A constatação é: apesar dos esforços de Krader, que foram referendados por Tible, os anos finais da vida de Marx não foram destinados apenas aos estudos assim chamados “etnológicos”.

Observações feitas, voltemos ao artigo em questão. Tible crava que “a leitura de Morgan permitiu um deslocamento em Marx” (p.36). Em conformidade com isso, Tible cita Rosemont ao dizer que “os relatos sobre os iroqueses deram-lhe uma vívida atenção sobre a atualidade dos povos indígenas, e talvez até um vislumbre da possibilidade de tais povos darem suas próprias contribuições à luta global pela emancipação humana” (p.36). Marx estava diante do que se tinha de mais sofisticado da “produção etnológica” – por assim dizer – de sua época, e, consequentemente, os relatos sobre os iroqueses deram-lhe um panorama sobre a atualidade dos povos indígenas. Entretanto, não existe nenhum elemento presente nos Cadernos etnológicos de Marx que sustenta a possibilidade – afinal a interpretação é precedida por um “talvez” – de que os relatos sobre os Iroqueses deram-lhe um “vislumbre da possibilidade de tais povos darem suas contribuições à luta global pela emancipação humana”. Percebam: é bem possível que tais povos deem suas contribuições – e particularmente acredito nessa possibilidade – entretanto isso não está subentendido nos Cadernos etnológicos de Marx. Por uma razão simples: os apontamentos “etnológicos” de Marx, embora sejam um elemento precioso de investigação sobre seu pensamento, nada mais são do que extratos, rascunhos e comentários acerca dos autores investigados – o que já é muito. Não me parece viável compreender que Marx, em seus cadernos de pesquisa histórica, teria feito postulações nessa profundidade. Mas claro, coloco-me na condição de compreender tal afirmativa caso seja me demonstrado em quais passagens essa interpretação se sustenta.

Logo em seguida à última citação, Tible diz que tais estudos de Marx se manifestam enquanto uma “nova ótica, nova abordagem” (p.36). Em certa medida, retomamos um dos pontos centrais que pretendo aqui contrapor: a noção de que os Cadernos etnológicos configuram-se enquanto um momento de inflexão no pensamento de Marx. Para Tible, “Marx manifestou uma hostilidade crescente ao colonialismo e ao capitalismo e passou a fazer uma apreciação distinta das forças potencialmente revolucionárias desses sujeitos outros [itálico do autor]” (p.36). Uma observação inicial: mesmo que a dialética conceitual entre “nós-outros” anteceda Marx (LEOPOLDO E SILVA, 2012), em nenhum momento essa distinção aparece com relevância na obra do autor alemão. Considerando o fato de que essa distinção está presente na antropologia contemporânea1, acredito que Tible, nesse sentido, não conseguiu escapar de uma espécie de “Robinsonada Conceitual” ao transpor a realidade da produção teórica antropológica hoje para os Cadernos etnológicos de Marx – que é expressa também no título de um dos artigos de Tible semelhante a esse, a saber, “Marx e os Outros” (2014).

Retomando a citação, parece-me correta a afirmação de que Marx “manifesta uma hostilidade crescente ao colonialismo e ao capitalismo”, entretanto me parece equivocado sugerir que Marx “passou a fazer uma apreciação distinta das forças potencialmente revolucionárias desses sujeitos outros”. Para sustentar essa nova hipótese, Tible continua: “Em rascunho de carta para Ivanovna Zasulitch, Marx criticou Maine por sua hipocrisia, pois, tendo sido colaborador do governo inglês em sua destruição da comuna indiana, aludiu aos ‘nobres esforços’ desse governo que ‘fracassaram contra a força espontânea das leis econômicas’” (p.36); e enfim questiona: “como explicar essa capacidade de Marx de se transformar se nos lembrarmos de escritos anteriores sobre a colonização na Índia?” (p.36) Antes de apresentar a reposta de Tible para esse questionamento, devemos retomar um dos contrapontos aqui propostos: a ideia de inflexão no pensamento de Marx (“nova ótica, nova abordagem”). Agora sim, a resposta: “Por seu contato com as lutas. A riqueza de Marx e do marxismo reside nisto: na sua contaminação pelas lutas [itálico do autor]” (p.36).

Essa hipótese já esteve presente em outros textos do autor (a saber: TIBLE, 2013, p.59; TIBLE, 2014, p.218). Muito embora essa passagem de “Marx na floresta” não seja muito clara, a hipótese é melhor respaldada em sua obra Marx Selvagem, na qual Tible diz que: “A força e especificidade de Marx e seu pensamento vêm de seu contato constante com as lutas e, mais, de sua capacidade de transformação com estas. Seus momentos de mudança coincidem com certas lutas […] Marx é o pensador das lutas. Não trabalhá-lo nesta perspectiva inviabilizaria o trabalho proposto” (TIBLE, 2013, p.17). No caso aqui proposto, a “luta” a que Tible se refere é a “organização iroquesa tal como trabalhada por Morgan” (p.17), mas esses “momentos de mudança” são constatados, na abordagem do autor, também em eventos como a Primavera dos Povos ou a Comuna de Paris. Parece-me evidente que esses acontecimentos influenciam a produção teórica de Marx na medida em que foram constitutivos da realidade efetiva no momento de suas investigações. Mas em que medida tais “contaminações” – nas palavras de Tible – promoveram transformações (“nova ótica, nova abordagem”) no pensamento de Marx? Reformulemos essa pergunta de acordo com a “luta” que Tible propõe no artigo “Marx na floresta”: em que medida a leitura de Marx da obra de Morgan, e consequentemente da organização dos Iroqueses, promoveu transformações (“nova ótica, nova abordagem”) no pensamento de Marx?

Parece-me evidente que a leitura de um autor como Morgan, cuja temática trabalhada era o que se tinha de mais sofisticado na Europa oitocentista, promoveu descobertas para as investigações que Marx desenvolvia. Por isso, há uma mudança na compreensão de Marx sobre uma sociedade pré-capitalista se considerarmos o modo pelo qual Marx tratou a Índia na década de 50 do século XVIII, quando tinha acesso apenas aos documentos da expedição britânica – ou seja, investigou uma nação com documentos de seus colonizadores – do modo como Marx tratou os Iroqueses a partir da leitura de Morgan, esta que é uma investigação sistemática e detalhada sobre uma comunidade sem classes. Mas essa mudança de compreensão não se configura enquanto uma inflexão, e sim como consequência de uma nova descoberta histórica, o que possibilita novas investigações.

Por exemplo: é notório que a teoria do valor de Marx ainda não estava constituída em sua obra Miséria da filosofia (1847), o que se concretizaria de maneira primorosa em O capital (1867) duas décadas depois. Mas será que é possível falar de uma “inflexão” no pensamento de Marx da publicação de Miséria da filosofia para O capital? Do ponto de vista do aperfeiçoamento das ideias econômicas de Marx, Miséria da filosofia constitui a primeira obra na qual Marx concebe “uma visão de conjunto das origens, do desenvolvimento, das contradições e da queda do regime capitalista” (MANDEL, 1968, p.55). A mudança de Marx para Londres poucos anos depois da publicação da Miséria da filosofia favoreceu demasiadamente suas investigações. Dentre outros motivos – como o próprio autor menciona no prefácio da Contribuição à crítica da economia política –, com a mudança para a capital inglesa, Marx teve acesso à “prodigiosa quantidade de materiais para a história da economia política acumulada no Museu Britânico” (MARX, 2008, p.51). Parece-me, portanto, que não há uma “inflexão” (“nova ótica, nova abordagem”) no pensamento de Marx de uma obra para outra. Mas outro exemplo disso está abaixo de nosso narizes, e Tible conhece como poucos as citações a seguir.

A primeira frase da seção 1 do Manifesto Comunista, por exemplo, afirma que “a história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 2010, p. 40). Entretanto, essa contundente afirmação tinha como fundamento a historiografia escrita até então, como Engels observa em nota de rodapé à edição inglesa de 1888 do Manifesto. Segundo Engels (2010, p.40), “a pré-história, a organização social anterior à história escrita, era desconhecida em 1847”, entretanto as descobertas nos anos que se seguiram trouxeram novas possibilidades de investigações2 – tanto foi assim que essas novas descobertas, juntamente com a descoberta dos Cadernos etnológicos de Marx, motivaram Engels a produzir sua obra A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1884). A essência do pensamento de Engels não mudou de 1847 a 1888. O desenvolvimento das pesquisas históricas, sim, mudou. Não há um “deslocamento de Engels” de uma obra para a outra, e nem seu modo de investigação – abordagem – foi alterado. Eis, portanto, minha resposta à provocação do parágrafo anterior: não há uma nova ótica ou uma nova abordagem no pensamento de Marx a partir de sua leitura de Morgan.

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Retomando o artigo em questão, “Marx na floresta”: Tible propõe um diálogo entre Marx e o líder Yanomami Davi Kopenawa (p.36-39) – através da obra conjunta A Queda do Céu do líder indígena com o antropólogo francês Bruce Albert – e, assim, apresenta as constatações de Kopenawa sobre o assim mencionado “povo da mercadoria” (p.36). Segundo Jean Tible, “a crítica de Kopenawa aproxima-se da crítica marxiana do fetichismo da mercadoria” (p.39), e, assim, Tible também apresenta, a seu modo, sua interpretação sobre o fetichismo da mercadoria em Marx com base, é claro, o primeiro capítulo de O capital. Na sequência de suas formulações sobre o fetichismo da mercadoria, Tible endossa uma passagem de Isabelle Stengers e Philippe Pignarre, na qual os autores “defendem que não é no âmbito dos conceitos modernos que se deve tentar caracterizar o capitalismo, pois ‘a modernidade nos fecha em categorias demasiado pobres, tendo como eixo o conhecimento, o erro e a ilusão’”. Assim, Tible questiona: “quem pode conjugar sujeição e liberdade?” E concorda com a resposta de Stengers e Pignarre ao dizerem que, para eles, “é algo cujo os povos mais diversos – exceto nós, os modernos – sabem a natureza temível e a necessidade de cultivar, para se defender, dos meios apropriados”. (“Marx na floresta”, Margem Esquerda n.29, p.40; trechos de Stengers e Pignarre citados em tradução livre feita pelo por Jean Tible).

A formulação é genérica, mas, por si só, parece-me equivocado dizer que não é no âmbito dos conceitos modernos que se deve tentar caracterizar o capitalismo. Em contraposição, nos Grundrisse, Marx parece dizer exatamente o oposto ao mencionar que “a sociedade burguesa é a mais desenvolvida e diversificada organização histórica de produção” e que por isso “as categorias que expressam suas relações e a compreensão de sua estrutura permitem simultaneamente compreender a organização e as relações de produção de todas as formas de sociedades desaparecidas” (MARX, 2011, p.58). Percebam: Marx não só compreende que as categorias da moderna sociedade civil-burguesa são pressupostos para a compreensão de uma sociedade que adota o modo de produção capitalista, como também compreende que a apreensão da sociedade burguesa nos oferece a chave para compreensão de uma sociedade antiga, mas ressalta que isso deve ser feito “de modo algum à moda dos economistas, que apagam todas as diferenças históricas e veem a sociedade burguesa em todas as formas de sociedade” (2011, p.58) – ou seja, o que, nos próprios Grundrisse, Marx tratou como “Robinsonadas”. E claro, “as categorias expressam formas de ser, determinações de existência” (2011, p.59), são formas movidas e moventes da própria matéria, o que faz com que a categoria supere uma apreensão caótica, desordenada do todo (LUKÁCS, 1979, p.25). Portanto, mais uma vez, contrapondo-me ao modo como Tible apresenta a questão, não me parece viável caracterizar o capitalismo através de categorias e conceitos externos encontradas em sociedades que adotam outro modo de produção – ou no que Stangers e Pignarre chamam de “povos mais diversos”. Sigamos.

“O capitalismo configura-se como um sistema feiticeiro sem feiticeiros” (p.40); “capitalismo como mestre das ilusões” (p.41); “Se o capitalismo é um sistema feiticeiro, pode-se conceber a luta contra tal forma de organização da vida como um contrafeitiço” (p.41). Marx e Tible seguiram um mesmo caminho, porém, em sentidos opostos. Marx parte do fetiche para conceituar o fetichismo, refugiando-se “na região nebulosa do mundo religioso. Aqui, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, como figuras independentes que travam relação umas com as outras e com os homens” (MARX, 2011, p.148). Essa é a forma como se manifesta o fetiche religioso. Mas Marx prossegue: “Assim se apresentam, no mundo das mercadorias, os produtos da mão humana. A isso eu chamo de fetichismo, que se cola aos produtos do trabalho tão logo eles são produzidos como mercadorias e que, por isso, é inseparável da produção de mercadorias” (2011, p.148) – já esta é a forma como se manifesta o fetichismo da mercadoria, que é uma especificidade das sociedades capitalistas, afinal, “todo o misticismo do mundo das mercadorias , toda a mágica e a assombração que anuviam os produtos do trabalho na base da produção de mercadorias desaparecem imediatamente, tão logo nos refugiemos em outras formas de produção” (2011, p.149).

Tible parece fazer o oposto. De sua compreensão do fetichismo da mercadoria (p.39), ele retoma o feitiço – palavra portuguesa que está na base da origem etimológica de “fetiche”, termo esse, para esses fins, cunhado por Charles de Brosses ainda em 1760 a partir da obra Du Culte des Dieux Fétiches – para caracterizar o capitalismo como “mundo enfeitiçado”3. Assim, para Tible, o objetivo do pensamento marxiano seria “o de explicitar seus processos [desenfeitiçar] para abrir caminhos de luta” (p.41), pois, embora Marx não acreditasse em feitiçarias, “suas novas categorias (e instrumentos de luta) contribuem decisivamente para desencantar as armas capitalistas e sua produção de consensos” (p.41-42). Ora, estamos diante de uma contradição: em um momento o capitalismo não pode ser caracterizado no âmbito dos conceitos modernos “pois a modernidade nos fecha em categorias demasiado pobres” (p.40), em outro, as categorias de Marx – “modernas” – são decisivas para “desencantar as armas capitalistas e sua produção de consensos” (p.42). Como as pobres categorias modernas ora são incapazes para caracterizar o capitalismo e ora se apresentam como solução aos “feitiços capitalistas”? Parece-me que, a rigor, as categorias modernas não são tão pobres assim.

Tible segue e sugere a “Revolução como desenfeitiçamento” e questiona: “como desenfeitiçar?” (p.42). E responde: “um primeiro passo é aprender com as lutas cosmopolíticas” (p.42). Com outras palavras, e provavelmente outra resposta, eu acredito que o primeiro passo é entendermos a essência do materialismo de Marx ao retornarmos à oitava tese de contra Feuerbach e compreender que “toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática” (MARX, 2007, p.534). Assim, da mesma forma em que “as mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras” (MARX, 2013, p.159), os ingredientes do feitiço não chegam por si mesmos ao caldeirão. Desse modo, nem as mercadorias nem os feitiços devem impor resistência ao homem.

Já caminhando para a conclusão de seu texto, Tible remete a um relevante estudo da italiana Silvia Federici – a saber: O calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva (2017) – e, ao apresentar as formulações da italiana, endossa que na origem do capitalismo está a caça às bruxas, e que esse foi um ponto esquecido por Marx (p.42). A menção à obra de Federici é o único assunto que Tible inova em relação a seus textos anteriores. Embora pareça uma discussão interessante, gostaria de chamar a atenção para outra questão: o parágrafo sobre esse assunto me parece um pouco deslocado em relação às demais temáticas tratadas do texto. Acredito que isso se deu através da constatação de que Tible não diferencia algumas temáticas que são essenciais da antropologia – mas que não se resumem a esse campo de conhecimento apenas – como por exemplo: “Bruxaria”, “Fetichismo”, “Ritual”, “Fetiche”, “Feitiço”, “Simbolismo”, entre outras. Tible também não compreendeu que o sentido em que Marx utiliza tais termos como “espectro”, “fantasmas”, “feitiços” não tem relação alguma com o modo pelo qual os autores da antropologia fazem uso deles. Quando o líder Yanomami Davi Kopenawa utiliza o termo “feitiço”, por exemplo, ele faz uso de uma categoria que ele mesmo exprime para conceber o mundo – “às vezes se pode sentir no ar da floresta o cheiro do urucum e dos feitiços de caça” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p.112). Já Marx, quando utiliza termos como “fantasmas”, “espectro”, “feitiço”, expressa não o modo pelo qual ele concebe o mundo, mas sim, a necessidade da crítica ao efeito ilusório que esses termos ensejam – aparentemente místicos, porém constitutivos do real. Por exemplo, na referência à metáfora do feiticeiro presente no Manifesto Comunista, isso fica claramente perceptível: “a sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que invocou” (MARX, ENGELS, 2010, p.45). Assim, Tible se utiliza de tais categorias para promover uma aproximação de Marx com as temáticas antropológicas, ao passo que me parece, na verdade, que Marx está cada vez mais se distanciando delas.

Por fim, Tible termina seu texto criticando o marxismo. Ele sugere a hipótese de que “a certa fraqueza atual do marxismo deve-se a sua domesticação” (p.42) e menciona que “em vez de pensar a luta de classes a partir das bruxas, [os marxistas] preferiram deixar isso de lado e em vários momentos abraçaram seus caçadores… O espectro foi domesticado!” (p.43). Parece que Tible aponta para uma determinação unicamente positiva do “espectro do comunismo”, quando na realidade, a intenção da escrita do Manifesto Comunista teve como objetivo exatamente o contrário: “é tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo” (MARX, ENGELS, 2010, p.39). E como último ato crítico, parece-me que a utilização dessas dicotomias não marxianas – por exemplo bruxa/caçadores – enseja muito mais um recurso estilístico textual do que efetivamente uma constatação sobre o modo pelo qual tem se fundamentado a teoria marxista, em outras palavras, a forma da exposição de Tible se sobrepôs ao seu rigor.

Para finalizar, acredito que há uma diferenciação significativa que compromete a análise que Jean Tible faz de Marx, e gostaria de concluir apresentando tal diferenciação sob a forma de uma hipótese: ao passo que Tible é adepto, Marx é crítico a uma espécie de “razão etnológica”. Apresento essa formulação como uma hipótese na medida em que o produto da pesquisa que atualmente desenvolvo pode fornecer elementos para desvendá-la.[iv] E claro, considerando a temática que investigo, e na condição de um estudante no Brasil, se por acaso eu ignorasse as formulações e hipóteses de Tible, minha pesquisa estaria incompleta. Eis o que justifica essas primeiras palavras a partir das quais espero que possamos estabelecer um proveitoso diálogo, afinal, apesar das diferentes interpretações, sabemos muito bem que ecoar os apontamentos históricos-etnológicos da obra de Marx é algo que nos interessa conjuntamente. A crítica escolhe um alvo, mas na essência da crítica estão as formulações de quem a executa.

Notas

1 Vide, por exemplo: CASTRO, Eduardo Viveros de. O Medo dos Outros. Revista de Antropologia da UspSão Paulo, v. 54, n. 2, p.885-914, ago. 2011; MALUF, Sônia Weidner. A antropologia reversa e nós: alteridade e diferença. Ilha: Revista de AntropologiaFlorianópolis, v. 12, n. 1, p.40-56, mar. 2010. Semestral.
2 Ironicamente, ao apresentar tais citações para um autor que as conhece tanto quanto eu, só me vem à mente o que Althusser chamou de “citações célebres de Marx” (ALTHUSSER, 1979, p.157). Mesmo que nem Tible nem eu sejamos adeptos das formulações do pensador argelino/francês, acredito que concordaríamos que essa citação do Manifesto Comunista seja uma “citação célebre” para os assuntos históricos/etnológicos em Marx.
Para Tible, “o próprio Marx trata o capitalismo como mundo enfeitiçado” (p.41), muito embora não apresente a referência de onde Marx teria feito esse tratamento ou utilizado tais termos. Ao contrário, Tible puxa um rodapé e faz uma referência ao Anti-Édipo de Deleuze e Guattari no qual os franceses teriam citado a expressão como utilizada por Marx. Investiguei, portanto, a passagem do Anti-Édipo e me surpreendi com o fato de que Deleuze e Guattari parecem citar Marx mas na verdade não apresentam nenhuma referência. Segue o trecho em que os franceses falam do assim chamado “mundo enfeitiçado”: “Como diz Marx, no começo os capitalistas têm necessariamente consciência da oposição do trabalho e do capital, e do uso do capital como meio de extorquir sobretrabalho. Mas depressa se instaura um mundo perverso enfeitiçado, ao mesmo tempo em que o capital tem o papel de superfície de registro que se assenta sobre toda a produção” (DELEUZE, GUATTARI; 2010, p.23).
A título de informação: em linhas gerais, minha pesquisa versa sobre a diferenciação entre as leituras que Marx e Engels fizeram da obra Ancient Society de Lewis Morgan.


Referências bibliográficas

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ANDERSON, Kevin B. Marx and the Margins: on nationalism, ethnicity and non-western societies. Chicago: University of Chicago Press, 2010.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34, 2010, 559p.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A Queda do Céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, 729p.
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LUKÁCS, György. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. Tradução Carlos Nelson Coutinho; revisão de Antônio Elias Ribeiro. São Paulo/SP: Livraria Editora Ciências Humanas LTDA, 1979.
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Lucas Parreira Álvares, nascido no município de Pompéu (MG), é graduado em Ciências do Estado pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestrando em Direito pela mesma instituição. É autor do artigo “Comunismo Primitivo e transição capitalista no pensamento de Rosa Luxemburgo” (2017) e atualmente desenvolve pesquisas sobre os Cadernos etnológicos de Karl Marx.

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