Da conciliação com o capital ao poder popular // Especial Revolução Russa
"Ao longo do ano de 1917, o Soviete de Petrogrado passou de um corpo disposto a negociar com o capital a um preparado para a revolução."
Por Kevin Murphy.
Em apenas alguns poucos dias, a Revolução de Fevereiro varreu o czarismo russo. Depois da revolta, o eleito Soviete dos Delegados Operários e Soldados de Petrogrado ficou lado a lado com o não-eleito Governo Provisório. Seu papel ao longo de 1917 não podia ser mais central.
Os militantes operários tinham dado início ao primeiro soviete durante a greve geral de massas de 1905. A ideia se tornou tão arraigada no movimento revolucionário que, no segundo dia do levante de 1917, algumas fábricas começaram a eleger seus representantes, antecipando a própria criação do novo Soviete.
Mas quando os Mencheviques convocaram esses operários, no dia 27 de fevereiro, o socialista moderado Alexander Kerienski prometeu que ele trabalharia para “manter a ordem”. Diferente do que ocorrera em 1905 – quando os sovietes eram órgãos de luta – o Soviete de Petrogrado acabou por eleger, quase que exclusivamente, intelectuais que não tinham participado ativamente da revolução para o seu Comitê Executivo.
No final de março, 2.000 delegados super-representavam as 150.000 tropas em Petrogrado, enquanto apenas 800 delegados representavam os cerca de 400.000 trabalhadores industriais da cidade. Apesar do papel central das operárias têxteis no levante de Fevereiro, a composição do Soviete era dominantemente masculina, com apenas alguma dúzia de delegadas mulheres. As desorganizadas e tumultuadas assembleias gerais indicavam que era o Comitê Executivo que conduzia a maioria dos assuntos importantes.
Esse comitê tinha objetivos muito menos ambiciosas que aquelas dos operários e soldados. Ao invés de tomar o poder, ele imediatamente pressionou seus relutantes aliados liberais a formarem um governo. Os Mencheviques acreditavam que “o governo que substituiria o czarismo deveria ser exclusivamente burguês”, como escrevera Nikolai Sukhanov.
Após o Soviete ter entregue o poder ao Governo Provisório, no dia 2 de março, o jornal oficial do órgão, Izvestiia, explicava que o conselho pressionaria o novo governo para atender os interesses em prol “da democracia”, mas sem forçar demais e gerar, com isso, uma contrarrevolução.
Contudo, o Comitê Executivo não conseguiu sequer atingir seu objetivo mais modesto. Para acalmar o Governo Provisório, os líderes do Soviete recuaram em praticamente todos os grandes temas. Eles postergaram a questão agrária até que fosse eleita uma Assembleia Constituinte, um evento que ele mesmo foi adiado repetidamente. Incrivelmente, eles chegaram até mesmo a concordar com um retorno à monarquia – apesar dessa decisão ter vindo por meio do irmão de Nicolau II, Miguel.
Sobre o tenso debate acerca da guerra, o Soviete lançou um manifesto pacifista no dia 14 de maio, o qual o jornal dos Bolcheviques, o Pravda, descreveu como “um compromisso consciente entre diferentes tendências representadas no Soviete”. O consenso resultante foi tão vago que até mesmo o belicista ministro do exterior, Pavel Milyukov, o assinou, bem como Josef Stálin e Lev Kamenev em nome dos Bolcheviques.
De fato, é difícil distinguir os registros dos Bolcheviques, nesses primeiros dias, em relação àqueles dos Mencheviques e dos Socialistas-Revolucionários (SRs). Os registros do Comitê Executivo revelam que os líderes das facções permaneceram em silêncio na maioria das questões de princípio, o que confirmava a posição de Trótski na época:
“Ainda está para encontrar nos registros e na imprensa pelo menos uma proposta, anúncio ou protesto no qual Stálin tenha expressado o ponto de vista dos Bolcheviques em oposição à sabujice dos Mencheviques e SRs”.
Tal registro dos Bolcheviques, durante o domínio de Stálin e Kamenev, era tão macabro que, anos depois, eles iriam pressionar Alexander Shliapnikov a revisar suas memórias.
Nessas primeiras semanas, o único ato realmente significante do Soviete foi a Ordem Número 1, que só foi aprovada por conta da pressão de soldados radicais sobre os seus líderes. Esse famoso decreto empoderou os homens alistados no Exército, permitindo que eles elegessem seus próprios comitês e rejeitassem ordens que contrariassem os Sovietes. A Ordem Número 1 se tornou um enorme obstáculo para os objetivos militaristas do Governo Provisório.
Lênin rapidamente reconheceu a instabilidade do sistema dual de poder. O Governo Provisório e o Soviete tinham interesses de classe opostos e que nem a diplomacia e nem a conciliação poderiam unificar. Ao se aproximar de Trótski e dos grupos extremistas dos Bolcheviques de Vyborg, as Teses de Abril de Lênin argumentavam em favor de sabotar o esforço de guerra a partir da política de confraternização no front, de transferir o poder do Estado aos sovietes e deixar os conselhos operários em controle de toda “produção social e da distribuição de produtos”.
Nas vinte quatro horas seguintes após o seu retorno, no dia 3 de abril, Lênin falou em inúmeros comícios, partilhando sua nova perspectiva radical para milhares de militantes Bolcheviques. Ele agitou contra “a guerra dos piratas capitalistas”, implodiu as negociações de unidade com os Mencheviques que Stálin e Kamenev estavam tocando e invocou a fúria de vários oponentes ao longo do espectro político.
O jornal dos Mencheviques vociferava que o novo programa de Lênin representava um “indubitável perigo” à revolução, enquanto a imprensa amarela, mais histérica, comparava ele à “lenda do Anticristo”. O primeiro ministro Lvov em breve reclamara que, ao invés de receber o “incondicional apoio” que o Soviete prometera, ele teria se tornado “suspeito”. Enquanto isso, na Avenida Nevsky, trabalhadores e soldados carregando faixas com as inscrições “Abaixo os ministros capitalistas!” enfrentavam-se contra liberais que carregavam faixas dizendo “abaixo Lênin!”.
A guerra e a crise de abril
O papel da Rússia na Primeira Guerra Mundial iria levar essas tensões a um ponto de efervescência rapidamente. Pressionado pelo Menchevique Irakli Tsereteli, o Governo Provisório anunciou, no dia 27 de março, que ele tinha apenas objetivos defensivos para com a guerra. Contudo, menos de um mês depois, Milyukov, um membro do liberal Partido Constitucional Democrata (os Kadetes) expediu um bilhete aos Aliados que essencialmente descartava a declaração anterior do Governo.
Milyukov argumentava que a Rússia poderia “levar a guerra mundial a uma vitória decisiva”, tomando controle de Constantinopla e dos Dardanelos. Ao invés de ter enfraquecido os objetivos militaristas do Império, ele acreditava que a revolução havia fortalecido “o desejo universal de levar a guerra mundial a uma vitória decisiva” e que as “garantias e sanções” – o que significava anexações e indenizações – iriam prevenir conflitos futuros.
A sincera explanação de Milyukov sobre os objetivos predatórios do imperialismo russo e dos Aliados despedaçaram a frágil paz que existia entre o Soviete e o Governo Provisório. O Comitê Executivo reuniu-se até tarde da noite naquele dia, mas não conseguiu chegar a nenhum acordo.
Quando o bilhete de Milyukov apareceu nos jornais matutinos de 20 de abril, um sargento do Regimento Finlandês conclamou uma manifestação anti-guerra. Muitos outros regimentos e os marinheiros do Báltico logo juntaram-se ao protesto, até que 25 mil soldados armados foram em direção ao Palácio Mariinsky com placas que diziam “Abaixo Milyukov!”.
No dia seguinte, uma grande manifestação chamada pelos Bolcheviques tomou forma enquanto os Mencheviques e os SRs imploravam aos trabalhadores e soldados que não participassem. Ao longo da imensa faixada do Palácio Mariinsky, os Bolcheviques esticaram um longo estandarte vermelho com as palavras: “Vida longa à Terceira Internacional!”. Os Kadetes convocaram sua própria contra-manifestação, em apoio ao governo e, pela primeira vez desde fevereiro, lutas campais irromperam ao longo da Avenida Nevsky.
Alguns Bolcheviques levaram o apelo “Abaixo o Governo Provisório” de forma bastante literal, tentando atacar o palácio e prender os ministros. O general Lavr Kornilov sugeriu bombardear os manifestantes com sua artilharia. Quando as notícias chegaram aos líderes do Soviete, eles ordenaram que as tropas permanecessem nos quartéis.
O Izvestiia reclamara que a liderança estava tentando resolver o conflito, mas que “muitos apoiadores estavam se manifestando sob bandeiras cujos slogans não correspondiam aos objetivos do Soviete”, tais como “exigir a derrubada do Governo e a transferência de poder ao Soviete”. Naquela noite, o Governo Provisório mandou uma nota reformulada ao Soviete, a respeito da guerra, a qual o Comitê Executivo aprovou numa votação apertada por 34 a 19. Esses líderes consideraram a crise encerrada e expediram um mandato contra futuras manifestações.
Lênin ridicularizou a resolução, dizendo que “os capitalistas são a favor de continuar a guerra” e, depois “da primeira crise, outras virão”. Ele rejeitou as “tentativas blanquistas de tomada de poder” e advogou em prol de uma estratégia de longa duração para persuadir a favor “do método proletário para acabar com a guerra” e para “eleger membros dentro do Soviete”.
O recall ultra-democrático dos delegados dos Sovietes iria atuar em prol dos Bolcheviques. No final de abril, o partido de Lênin tinha conseguido aproximadamente 1/4 dos delegados do Soviete de Petrogrado e um número ainda maior nos conselhos dos distritos. No front, os agitadores chamavam pela política de confraternização para com os soldados alemães, o que angariou apelo perante as já exaustas tropas.
No dia 6 de maio, o Izvestiia fustigava o Pravda e sua tentativa de “sabotar a confiança da soldadela perante os apelos do Soviete […] Se você acredita no seu Soviete, então aceitem o seu apelo para pararem com as ‘confraternizações’!”.
A ofensiva militar de Keriénski
A previsão de Lênin de que o bilhete de Milyukov era apenas a primeira de muitas crises que viriam em seguida mostrou-se verdadeira. Em junho, Keriénski propôs uma ofensiva militar que dividiu ainda mais o Governo Provisório, os Sovietes e o povo que eles supostamente representavam.
Quando o Primeiro Congresso dos Sovietes se reuniu, no dia 3 de junho, em Petrogrado, os socialistas moderados gozavam de um enorme apoio e podiam afirmar que falavam em nome de vinte milhões de operários e soldados. Esse grupo endossava o avanço de Keriénski, mas no clima politicamente carregado da capital, a radicalização desses operários e soldados já superava em muito a do resto do país.
Em preparação para o renovado esforço de guerra, Keriénski, tentou reinstituir a disciplina militar, mas enfrentou a reação dos soldados radicais. Uma reunião da Organização Militar dos Bolcheviques de Petrogrado, no dia 23 de maio, anunciava que eles “estavam prontos para agir por conta própria se uma decisão positiva não fosse adotada pelas lideranças”.
No dia 8 de junho, os líderes Bolcheviques, incluindo a Organização Militar, votaram esmagadoramente a favor para fazerem uma manifestação em protesto contra os planos de Keriénski. O jornal Bolchevique, Soldatskaia Pravda, zombava do chamado do Governo Provisório para uma “guerra até sua conclusão vitoriosa”, criando um novo slogan: “guerra até sua conclusão vitoriosa contra os capitalistas”.
Apesar do apoio disseminado na base, o apelo dos bolcheviques desafiou tanto o Congresso dos Sovietes como o Soviete de Petrogrado. Na manhã do dia 10 de junho, um recuado Comitê Central Bolchevique cancelou a manifestação numa peculiar votação em três a zero, com Yakov Sverdlov e Lênin se abstendo perante a maioria.
A decisão ultrajou os militantes do partido e alguns dos membros em Vyborg rasgaram seus cartões de membros do partido. No comitê de São Petersburgo, orador atrás de orador criticavam o Comitê Central. Receoso de repetir os erros da isolada Comuna de Paris, Lênin apelava aos seus camaradas para que tivessem “a máxima calma, cautela, paciência e organização”.
Numa sessão conjunta do Soviete de Petrogrado e da Presidência do Congresso dos Sovietes, no dia 11 de junho, um histérico Tsereteli acusava os Bolcheviques de tramarem contra a revolução e exigia medidas repressivas.
Kamenev falou em nome dos Bolcheviques. Ele argumentou que nenhum slogan deles falava sobre “tomada de poder”, apenas falavam em “todo poder aos Sovietes!”. “Prendam-me e nós veremos quem, afinal, está tramando contra a revolução”, ele desafiou, enquanto retirava-se junto com os Bolcheviques em protesto perante as acusações.
No dia seguinte, o Congresso endossou a ofensiva planejada por Keriénski e convocou para o dia 18 de junho uma marcha unificada para coincidir com o avanço militar. Porém, os líderes do Soviete de Petrogrado, temendo que os Bolcheviques sequestrassem a manifestação, sugeriram que apenas slogans aprovados pelo Soviete fossem utilizados.
Essa nítida ruptura com as normas revolucionárias – que, de qualquer forma, teria sido impossível de controlar – acabou fazendo com que muitos trabalhadores e soldados se voltassem contra suas lideranças conservadoras. As fábricas e os regimentos que antes eram dominados pelos SRs e pelos Mencheviques resolveram apoiar os slogans dos Bolcheviques.
O Izvestiia reclamava que “os segmentos mais baixos e ignorantes da população” estavam tomados por uma “propaganda anarquista-Bolchevique”. Na véspera da manifestação, Tsereteli disse aos representantes Bolcheviques: “nós vamos ver quem a maioria vai seguir, se são vocês ou se somos nós”.
A manifestação de mais de 400 mil pessoas foi, nas palavras de Maxim Gorky em seu Novaya zhizn, “um completo triunfo do bolchevismo perante o proletariado de São Petersburgo”. As bandeiras e palavras de ordem dos Bolcheviques dominavam. Apenas uma pequena minoria de slogans oficiais dos Soviete, Mencheviques e SRs apareciam no mar de cartazes que exigia “Todo poder aos Sovietes!” e “Abaixo os dez ministros capitalistas!”.
A demonstração coincidiu com o início da terrível ofensiva de Keriénski, que mataria cerca de 40 mil soldados. O Izvestiia reportava que uma delegação do Comitê do Front do Décimo Exército estava sendo chamada para “explicar a essas pessoas o ponto de vista da democracia russa”. Em muitos regimentos, o
“Comitê ouviu que os soldados não reconheciam a sua autoridade, o Soviete de Petrogrado, ou mesmo o Ministro da Guerra e não iriam participar da ofensiva. Eles não pretendiam morrer agora que havia liberdade na Rússia e a chance de finalmente ter uma terra”.
No regimento 703, os soldados ridicularizavam a delegação por “exigir que nós obedeçamos a ordem de Keriénski” e os espancaram, ameaçaram matar e por fim prenderam a delegação do Soviete de Petrogrado.
A tão esperada ofensiva de Keriénski mostrou-se catastrófica. Enquanto publicamente ele afirmava seu sucesso, ele afirmou, em um telegrama codificado no dia 24 de junho que “após os primeiros dias, às vezes após as primeiras horas da batalha”, “os espíritos se arrefeceram” e as unidades “começaram a criar resoluções com exigências em prol de debandarem imediatamente para a retaguarda”.
A semi-insurreição de julho
As Jornadas de Julho intensificaram esses conflitos. Os rebeldes imploraram para que o Soviete de Petrogrado tomasse o poder enquanto os seus líderes, paradoxalmente, imploravam às tropas para que os defendessem desses manifestantes. Um trabalhador mais corpulento expressou, de forma célebre, essa contradição, quando confrontara o líder dos SRs, Viktor Chernov no lado de fora do Palácio Tauride, gritando: “Tome o poder, seu filho da puta, quando ele é dado a você!”.
Em fevereiro, milhares de manifestantes do Primeiro Corpo de Metralhadoras tinham marchado de Orenburg até Petrogrado para defender a revolução. Esses soldados iniciaram uma revolta tão logo dois-terços deles tinham sido mandados de volta ao front, o que eles consideravam ser praticamente uma sentença de morte. No dia 1º de julho, o Soviete exigiu que esses atiradores voltassem aos quartéis, mas eles continuaram com seus planos de fazer uma manifestação armada.
Os delegados da conferência da Organização Militar Bolchevique de Todas as Rússia chegaram com rifles em suas costas, prontos para a luta. Organizações provinciais registravam uma raiva disseminada contra Keriénski e os seus planos. Os soldados exigiam preparações imediatas para um levante armado, o que repetidamente interrompia a conferência. O discurso de Lênin foi uma ducha de água fria, alertando para o risco de estarem fazendo justamente o que queria o Governo Provisório, ao darem início a um levante prematuro e desorganizado.
Em julho, alguns Bolcheviques extremistas mais pareciam anarquistas. No dia 2 daquele mês, uma reunião de anarquistas exigia uma revolta armada e, de fato, esse grupo desempenharia “um papel significativo no levante”, como argumentara Alexander Rabinowich.
O anarquista Bleichman instava aos metralhadores para que derrubassem o governo, mas sua crença de que “a rua irá nos organizar” levou apenas ao caos. Quando dez mil marinheiros armados chegaram de Kronstadt, os líderes do Soviete imploraram para que eles voltassem para casa, mas eles tinham mais simpatias a Bleichman, que novamente instava por uma insurreição.
O Izvestiia imprimia as exigências que aquela massiva manifestação tinha submetido ao Comitê Executivo do Soviete de Todas as Rússias:
“A remoção dos dez ministros burgueses, todo o poder aos sovietes, fim da ofensiva, confisco da imprensa burguesa, transformar a terra em propriedade do Estado e o controle estatal da produção”.
Naquela mesma noite, Kamenev e Zinoviev convenceram os líderes bolcheviques a cancelarem a manifestação do dia seguinte, com medo de que ela saísse completamente fora de controle. Quando ficou claro que a manifestação iria acontecer de qualquer forma e que a estratégia da direita Bolchevique seria entendida como uma traição, o Pravda de 4 de julho foi publicado com um espaço vazio, onde originalmente estaria ali o apelo para o cancelamento.
Meio milhão de pessoas marcharam naquele dia e o governo reagiu violentamente. O Izvestiia descreveu aquele ato como uma bem orquestrada tramoia:
“Conforme eles [os manifestantes] estavam passando por uma Igreja, um sino tocou no campanário e, como se fosse um sinal, os rifles e metralhadoras dispararam nos pontos mais altos das casas”.
Quando eles corriam para o outro lado, “os tiros passaram a vir das casas do lado oposto”. O jornal menchevique também noticiou que os canhões dos cossacos tinham sido disparados contra os manifestantes.
As Jornadas de Julho mostraram que havia acabado a frágil nacional unidade que se seguiu após a abdicação do czar. “Sob a bandeira vermelha, marcharam apenas os trabalhadores e os soldados”, escrevera um participante:
“Os brasões dos oficiais, os brilhantes botões dos estudantes, os chapéus das “damas simpatizantes”, não eram mais vistos… Os escravos ordinários do capitalismo estavam marchando”.
O célebre membro dos Kadetes, Vladmir Nabokov, escreveu que os manifestantes tinham “as mesmas faces insanas, estúpidas e bestializadas que o lembravam dos dias de fevereiro”. O ódio de classe era agora mútuo. Os trabalhadores carregavam cartazes que diziam “Lembrem-se, capitalistas, que aço e metralhadoras irão esmaga-los!”.
Ao ouvirem que Keriénski estava indo para o front de trem, alguns dos metralhadores fizeram uma caçada em busca dele na Estação do Báltico. Outros se apropriaram dos automóveis dos ricos residentes e dirigiram até Avenida Nevsky, bradando suas armas.
No lado de fora do Palácio Tauride, Chernov pedia calma, até que os marinheiros de Kronstadt o prenderam. Tróstki finalmente interviu e assegurou a soltura do líder dos SRs.
Operários armados fizeram uma busca no palácio atrás de Tsereteli e invadiram uma sessão do Soviete onde, de acordo com Sukhanov, alguns dos delegados “falharam na tentativa de mostrar coragem e um adequado auto-controle”. Um dos trabalhadores saltou em direção ao púlpito do orador e, balançando seu rifle, declarou:
“Camaradas! Até quando nós trabalhadores vamos aguentar essa traição? Vocês estão aqui debatendo e fazendo acordos com os latifundiários… Vocês estão ocupados traindo a classe trabalhadora. Bem, então entendam uma coisa: a classe trabalhadora não vai mais tolerar isso! Há 30.000 de nós na fábrica Putilov. E nós vamos fazer as coisas do nosso jeito. Todo poder aos sovietes! Não vamos largar nossos rifles! Seus Keriénskis e seus Tseritelis não vão nos enganar!”
A balança de poder havia virado contra a liderança do Soviete. Designado para encontrar tropas leais, o Menchevique Wladimir Woytinsky descreveu seus “esforços infrutíferos para alistar soldados para defender o Palácio Tauride”. Ironicamente, as primeiras tropas que chegaram eram leais à organização interdistrital de Trótski. A apavorada liderança do Soviete os recebeu com exclamações de alegria.
Naquela noite, os Bolcheviques clamaram pelo fim das manifestações e, na manhã seguinte, o Governo Provisório lançou uma campanha contra Lênin e seus camaradas afirmando que eles eram agentes alemães.
No final das Jornadas de Julho, os não-socialistas que estavam no governo decidiram esmagar a revolução, restaurar a disciplina no Exército e aniquilar os sovietes. Essa solução de massacrar o levante, contudo, iria fortalecer o próprio alvo que eles esperavam destruir. Os sovietes finalmente se levantariam para proteger a revolução.
O soviete se radicaliza
Lênin fugiu para a Finlândia, enquanto centenas de Bolcheviques estavam sendo presos por conta de acusações espúrias. Um exemplo delas é que o Governo Provisório afirmava que Trótski havia viajado no “trem blindado” que os alemães teriam fornecido a Lênin – o que seria prova suficiente de que ambos revolucionários atuaram em prol do inimigo russo; o problema é que naquela época, Trótski estava preso num campo de concentração em Nova Escócia, no Canadá.
Tsereteli assinou o pedido de prisão para Lênin e momentaneamente pareceu que os Mencheviques haviam se juntado à contrarrevolução. Mas os ataques aos sindicatos dos metalúrgicos, sedes Mencheviques e a prisão de alguns delegados dos sovietes deixaram claro que mesmo os mais conservadores dentre os socialistas não estavam à salvo diante da grande rede repressiva que o Governo Provisório havia lançado.
A conferência do Partido dos Kadetes abandonou suas premissas democráticas e clamou em favor de um ditador forte. Os oradores nesse encontro culparam Keriénski e o Soviete pela Ordem Número 1 e pela “presente e terrível situação na Rússia”.
Os magnatas dos grandes negócios, no Congresso do Comércio e da Indústria daquele ano, pediram por “uma ruptura radical… para com a ditadura dos sovietes” que havia levado a Rússia “à beira da destruição”. Vladmir Purishkevich, pogromista e fundador da União dos Povos Russos, juntou-se ao coro e exigiu a imediata dissolução do Soviete dos Delegados Operários e Soldados.
Os contrarrevolucionários encontraram seu homem forte no general Lavr Kornilov, o mais novo comandante do Exército Russo. Na noite antes de sua tentativa de golpe, Kornilov anunciara que “era hora de enforcar os agentes alemães e espiões, Lênin antes dos demais, e com isso dispersar os sovietes”. Ele prosseguiu, então, prometendo “enforcar todos os membros do Soviete dos Delegados Operários e Soldados” se assim fosse necessário.
De certa forma, isso era um tema comum para o general. Antes mesmo da revolução, Kornilov falava abertamente em enforcar “todos esses Guchkovs e Milyukovs”, mas agora ele estava do lado dos liberais, já que ambos queriam aniquilar a revolução.
Keriénski e Kornílov negociaram os detalhes da restauração da ordem. Eles concordaram em reinstaurar a pena de morte na retaguarda, em dissolver os comitês dos soldados e em instituir lei marcial em Petrogrado.
As tropas começaram a se mover em direção à capital revolucionária no dia 25 de agosto e, dois dias depois, Kornílov reportou que o Terceiro Regimento chegaria nos arredores da cidade naquela noite. Ele então pediu a Keriénski que declarasse lei marcial.
Naquele mesmo dia, os Mencheviques propuseram um Comitê de Defesa contra a contrarrevolução. Se “o comitê quiser agir com seriedade”, comentou Sukhanov, deveria se reconhecer que “apenas os Bolcheviques tinham recursos para tal”.
Cerca de 40 mil pessoas se voluntariaram para as Guardas Vermelhas e outros milhares vieram em apoio. Metalúrgicos militantes produziram centenas de canhões em questões de dias, trabalhando em turnos de 16 horas. A Rússia Revolucionária parecia estar à beira de uma guerra civil aberta.
Contudo, o confronto militar nunca se materializou. Kornilov permaneceu nos quartéis de Mogilev, deixando o general Alesandr Krymov liderar os cossacos e a Divisão de Cavalaria Nativa Caucasiana, melhor conhecida como a Divisão Selvagem. Enquanto isso, o Soviete tinha conseguido chegar até os ferroviários revolucionários, que por sua vez sabotaram os trilhos e isolaram as tropas de Krymov, fragmentando-os em oito diferentes linhas. Os agitadores do Soviete enfrentaram a Divisão Selvagem e os soldados que tinham sido chamados para suprimir a revolução acabaram levantando uma bandeira vermelha por “Terra e Liberdade”.
Em Petrogrado, 2 mil tropas leais estavam sendo esperadas para responder ao fictício levante dos Bolcheviques. O líder cossaco, Alexander Dutov, reclamara: “eu chamei as pessoas para virem às ruas, mas ninguém me seguiu”.
O general Khrystofor Baranovsky, em Petrogrado, apelara ao general Mikhail Alexiev, no quartel-general de Mogilev, afirmando “que os sovietes estavam furiosos e que essa atmosfera só poderá ser dissipada por uma demonstração de poder, com a prisão de Kornilov”. Alexiev respondeu: “nós caímos ferrenhamente nas garras dos sovietes”.
O centro entra em colapso
No dia 30 de agosto, o golpe planejado havia obviamente colapsado, levando junto com ele o Partido dos Kadetes. O seu jornal anunciava que “os objetivos de Kornilov são os mesmos que nós cremos serem necessários para a salvação do país. […] Nós advogamos eles antes mesmo de Kornilov”.
No dia 1º de setembro, Tsereteli tentou defender seus antigos aliados. Ignorando a proposta de Milyukov para tornar o general Alexiev o novo ditador, esperando com isso apaziguar tanto Keriénski quanto Kornílov, Tsereteli afirmou que “pelo menos as figuras proeminentes dele [o partido Kadete] mantiveram a revolução”.
Tanto os Mencheviques quanto os SRs romperam com seus aliados liberais apenas para voltarem atrás nas semanas seguintes. Enquanto isso, o Soviete e o público aprenderam que Keriénski tinha trabalhado junto com Kornilov para suprimir o conselho popular. O jornal da esquerda dos SRs, o Znamya truda, enfaticamente trouxe isso à tona:
“O golpe de Keriénski não foi uma conspiração contra o Governo Provisório, mas sim um acordo com ele e contra as organizações democráticas”.
Os mencheviques e a direita dos SRs desesperadamente se agarraram ao agora totalmente desacreditado regime de Keriénski e eles, por fim, pagaram o preço por essa estratégia. No início de setembro, a esquerda dos SRs dominara a conferência do Partido na conferência de Petrogrado. O distrito Menchevique de Vasilevsky, em sua totalidade, juntara-se aos Bolcheviques. Os antigos bastiões Mencheviques nas fábricas agora faziam recall de seus delegados nos sovietes, favorecendo os Bolcheviques. Em outras fábricas, os antigos delegados imploravam por perdão e até mesmo rasgavam e jogavam fora os retratos de Keriénski.
O confronto decisivo pelo controle do Soviete de Petrogrado aconteceu durante a eleição da mesa presidencial no dia 9 de setembro. Trótski, falando pela primeira vez desde que tinha sido solto da prisão alguns dias atrás, lembrou os seus ouvintes de que “quando eles propuserem a vocês para sancionar a linha política da mesa presidencial, não esqueçam que vocês estarão sancionando as políticas de Keriénski”.
“Todos entenderam que nós estávamos decidindo a questão do poder – da guerra – do destino da revolução”, Trótski escrevera mais tarde. Ao invés de ser uma típica votação nominal, a assembleia reunida simplesmente decidiu que aqueles que estavam na liderança se resignassem e abandonassem o salão.
Trabalhadores e soldados se dirigiram em direção a porta, em meio a trocas de gritos e acusações de “Kornilovistas!” e “heróis de julho!”. A conta final indicava que 414 tinham votado a favor da mesa Menchevique-SR e do governo de coalizão; 519 votaram contra; e 67 se abstiveram.
Tsereteli congratulou a si mesmo e aos outros antigos líderes, falando que eles eram “a consciência que, por meio ano […] manteve valorosamente a bandeira da revolução no topo”. Trótski, por sua vez, lembrou os líderes removidos que “as acusações contra os Bolcheviques […] de estarem a serviço do Estado-maior alemão, não havia sido retirada”. O Soviete então decidiu “dar todo o seu desprezo aos autores, distribuidores e propagadores da calúnia”.
Com ambos os Kadetes e o próprio Keriénski sendo renegados, Lênin brevemente defendeu uma saída de compromisso com a liderança do Soviete: eles tomariam o poder e os Bolcheviques seriam sua leal oposição. Porém, depois dessa saída, os socialistas persistiram apoiando a coalizão de Keriénski – que ainda incluía os Kadetes – e após os Bolcheviques terem obtido a maioria em Petrogrado, Moscou e nos sovietes de outras cidades, Lênin então voltara-se a estratégia de “Todo poder aos sovietes”. Nas seis semanas seguintes, ele incessantemente barrou todas as exigências do Comitê Central em prol de uma insurreição imediata.
Todo poder aos sovietes
Mesmo depois da famosa resolução do dia 10 de outubro em prol de uma “insurreição armada”, os líderes Bolcheviques titubearam. Alguns deles até mesmo debilitaram as ações revolucionárias.
Quando Kamenev e Grigory Zinoviev publicaram seus argumentos contrários à insurreição no Novaia zhizn, em 18 de outubro, Lênin tinha chegado ao seu limite, defendendo que os “fura-greves fossem expulsos” do partido.
Para aumentar o seu apoio popular, os líderes decidiram que seria a instituição do Soviete de Petrogrado – ao invés de ser o partido Bolchevique – que iria organizar o levante. No dia 16 de outubro, o Comitê Executivo que agora estava à esquerda, anunciara a formação de um Comitê Militar Revolucionário para “a defesa da capital”.
Na batalha por autoridade perante as tropas, o comitê mandou uma delegação ao quartel-general de Petrogrado e informou a eles que “a partir daquele momento, qualquer ordem que não fosse assinada por eles, seria inválida”. Os generais se recusaram a reconhece-los e, no dia seguinte, o comitê declarou que ao romper com o Soviete, o quartel-general havia se tornado uma “arma direta das forças contrarrevolucionárias”.
No meio das frenéticas assembleias do Soviete de Petrogrado nos dias que antecederam o Segundo Congresso, muitos soldados chegavam e exigiam que o Soviete tomasse o poder. Os mencheviques repetidamente advertiam contra “os rios de sangue” que correriam a partir da insurreição.
Quando Eva Broida perguntou se o Comitê Militar Revolucionário iria organizar uma insurreição, Trótski lhe perguntou: “em nome de quem, Broido está perguntando, é em seu nome, no nome de Keriénski, do serviço de inteligência, da polícia secreta ou de alguma outra instituição?”
De fato, os Mencheviques não anunciaram suas ações militares com antecedência. Durante a assembleia do dia 23 de outubro, um dos líderes do Soviete de Moscou, Lomov, reportou que os cossacos haviam atacado o Soviete de Kaluga. Os mencheviques e os SRs da duma da cidade tinham pedido tropas que acabaram por “infringir ultrajante violência” contra os líderes do Soviete.
Naquela mesma noite, Trótski declarou que a criação de um Exército Revolucionário era um passo político em direção à tomada de poder e transferí-lo para os sovietes”, mas no dia seguinte, 24 de outubro, ele negou que estivesse planejando tal ação.
Na Assembleia Geral, no dia seguinte, Trótski declarou a uma extasiada plateia que “o Governo Provisório não mais existe. […] Na história do movimento revolucionário, eu não conheço nenhum outro exemplo em que tivesse tanta participação das massas e que tenha se desenrolado de forma tão pacífica”. Enquanto os oponentes de Lênin, incluindo alguns dentro de seu próprio partido, acreditaram que o novo regime dos sovietes duraria apenas algumas semanas, Lênin manteve-se imperturbavelmente otimista de que a terceira Revolução Russa “iria levar à vitória do socialismo”. Ele estava confiante de que “nós seremos ajudados pelo movimento da classe trabalhadora no mundo todo, algo que está começando a acontecer na Itália, na Inglaterra e na Alemanha”.
A estratégica dos mencheviques e da direita dos SRs, de comprometer-se com o capitalismo, tinha se mostrado um fracasso. Num momento crucial na história da classe trabalhadora, muitos desses Mencheviques e SRs tinham saído do Congresso dos Sovietes para juntarem forças com o progromista Purishkevich e com outros antissocialistas.
Conforme nos aproximamos do aniversário da Revolução de Outubro, os anticomunistas novamente irão tentar marcar a vitória dos bolcheviques como um golpe de Estado promovido por uma minoria. Essa fabricação grosseira ignora o mandato democrático que os bolcheviques buscavam e conquistaram ao longo dos meses de luta.
O dossiê especial “1917: o ano que abalou o mundo“, reúne reflexões de alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos nacionais e internacionais sobre a história e o legado da Revolução Russa. Aqui você encontra artigos, ensaios, reflexões, resenhas e vídeos de nomes como Alain Badiou, Slavoj Žižek, Michael Löwy, Christian Laval, Pierre Dardot, Domenico Losurdo, Mauro Iasi, Luis Felipe Miguel, Juliana Borges, Wendy Goldmann, Rosane Borges, José Paulo Netto, Flávio Aguiar, Mouzar Benedito, Ruy Braga, Edson Teles, Lincoln Secco, Luiz Bernardo Pericás, Gilberto Maringoni, Alysson Mascaro, Todd Chretien, Kevin Murphy, Yurii Colombo, Álvaro Bianchi, Daniela Mussi, Eric Blanc, Lars T. Lih, Megan Trudell, Brendan McGeever, entre outros. Além de indicações de livros e eventos ligados ao centenário.
[* Traduzido por Fernando Pureza, este artigo integra uma série de artigos sobre o centenário da “Revolução Russa de 1917″ organizada pela revista Jacobin e que sairá ao longo do ano e publicada no Brasil em uma parceria entre o Blog Junho e o Blog da Boitempo. Redigidos originalmente em inglês, os artigos serão traduzidos em várias línguas, como francês, espanhol, alemão e coreano. Para o português, o blog Junho reuniu um grupo de tradutores e colaboradores, coordenados por Fernando Pureza, que atenderam ao chamado para trazer, ao público brasileiro, alguns dos trabalhos mais atuais sobre a Revolução Russa celebrando o centenário do evento político mais importante do século XX.]
Especial A história da Revolução Russa // Leia também:
- “Antes de Fevereiro“, de Todd Chretien.
- “A História da Revolução de Fevereiro“, de Kevin Murphy.
- “Partindo da Estação Finlândia“, de Yurii Colombo.
- “Gramsci e a Revolução Russa“, de Álvaro Bianchi e Daniela Mussi.
- “De Fevereiro a Outubro“, de Lars T. Lih.
- “A revolução na Finlândia“, de Eric Blanc.
- “As mulheres de 1917“, de Megan Trudell.
- “Os bolcheviques e o antissemitismo“, de Brendan McGeever.
- “Violência e revolução em 1917“, de Mike Haynes.
- “As Jornadas de Julho“, de Daniel Gaido.
- “As revoltas camponesas de 1917“, de Sarah Badcock.
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Kevin Murphy é professor de História da Rússia na Uniiversidade de Massachusetts Boston. Seu livro Revolution and Counterrevolution: Class Struggle in a Moscow Metal Factory [Revolução e contrarrevolução: luta de classes em uma metalúrgica de Moscou], venceu o Prêmio Deutscher Memorial em 2005. Escreveu este artigo especialmente para o dossiê sobre o centenário da Revolução Russa, organizado pela Revista Jacobin, traduzido para o português pelo Blog Junho, e publicado em parceria com o Blog da Boitempo.
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