Os intelectuais e a Revolução Russa

O que torna a coletânea Escritos de Outubro: os intelectuais e a Revolução Russa tão valiosa e particular é o modo como Bruno Gomide foi capaz de organizar um mosaico de dissonâncias, composto não apenas dos embates implícitos e explícitos entre os diversos autores, mas das tensões e dificuldades internas enfrentadas por cada um daqueles que vivenciaram e fizeram a Revolução Russa.

Por Tiago Pinheiro.

“Ouçam a revolução”, aconselha o poeta Aleksandr Blok. Passados cem anos, sua convocatória ainda desafia nossa audição. Não encontramos pautas e partituras que a organizem ou sintetizem. Tampouco basta imaginá-la como o conflito de duas bandas marciais, em trajes vermelhos ou brancos. Escutar Outubro é diferente de dar ouvidos aos seus anúncios e ler os programas para ele preparados. O estrondo da mudança é altíssimo, mas sua complexidade histórica só é alcançada devido a uma infinidade heterogênea de vozes.

O que torna a coletânea Escritos de Outubro: os intelectuais e a Revolução Russa tão valiosa e particular é o modo como Bruno Gomide foi capaz de organizar um mosaico de dissonâncias, composto não apenas dos embates implícitos e explícitos entre os diversos autores, mas das tensões e dificuldades internas enfrentadas por cada um daqueles que vivenciaram e fizeram a Revolução Russa. Assim, os textos selecionados deixam entrever certas surpresas, como Marina Tsevtáieva tomando por ofensa pessoal zombarias proferidas contra Lênin – a quem por sua vez se encontra, páginas antes, elogiando um livro de contos pró-czaristas sobre a Guerra Civil. Ou ainda, lá onde menos se espera, em trechos dos diários de Búnin carregados de ódio contra os acontecimentos, surgem os vestígios de vozes subalternas que, orgulhosas, expressam suas esperanças no porvir. E mesmo Maiakóvski aqui suspende seu furor pelo novo em defesa de um trabalho quase arqueológico para impedir o desaparecimento de efêmeros periódicos pré-revolucionários, alguns dos quais grafitados diretamente nas paredes das estações de trem.

Longe de simples lapsos ou incoerências, tais passagens constituem as notas mais vivas desse evento, pois nelas se pergunta a cada instante “o que fazer?” diante do caos e violência de uma mudança que, sem possuir quaisquer precedentes, promete acabar com a miséria e trazer a paz mundial.

Com isso, Escritos de Outubro mostra que o maior desafio revolucionário não está na construção de consensos e antagonismos, mas da possibilidade de abertura total à reinvenção das formas de vida. Para tanto, cada esfera da vida social precisa traduzir essa mudança em seus próprios termos. Assim intenta Khlébnikov com a geografia, Mandelstam com a arquitetura e Kerjentsev com a moda. A geometria e a física não poderiam permanecer incólumes para Zamiátin, e novas ciências deveriam surgir, como a tectologia, proposta por Bogdánov. Até o fim do mundo já não poderia ser igual nas visões de Rózanov.

Mesmo um único poema – justamente “Os Doze”, de Blok – será objeto de uma intensa discussão que atravessará diversos textos como uma melodia áspera, já que era indispensável saber qual seria seu lugar – se o primeiro ou o último de uma era.

Extraordinárias narrativas contrastivas como as de Teffi e Bábel, Guíppius e Kollontai, atestam que os sonhos daqueles que testemunharam a Revolução são muito mais complexos. E aí a encontramos mais desperta. Porque nos faz recordar que ela irrompe quando as condições parecem não mais existir. Aproximemos nossas orelhas, agucemos nossos ouvidos…

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