A crítica de Lukács a Rosa Luxemburgo // Especial Revolução Russa
A crítica de Györygy Lukács a Rosa Luxemburgo em História e consciência de classe
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Por Rogério Castro.
Após publicar um texto bastante elogioso à Rosa (Prefácio à Greve de massas) em 1921, Lukács iria concluir, no ano seguinte, um estudo crítico às concepções da revolucionária alemã sobre a Revolução Russa. Esse escrito, concluído em janeiro de 1922, virá à luz em 1923 e será um dos oito ensaios que integrarão o corpo de sua primeira obra de impacto em sua fase marxista, História e consciência de classe[1]. Sob o efeito da crítica de Lênin (“o primeiro passo na superação do sectarismo”, como ele mesmo avalia no Prefácio de 1967; Lênin teria considerado, em 1920, um texto de Lukács para uma revista da Internacional “esquerdista”), o filósofo resolve tomar partido a favor dos bolcheviques na polêmica de Rosa com os revolucionários russos (no Prefácio à Greve de massas, ele põe Lênin e Rosa como os únicos sucessores dignos de Marx e Engels).
Não deixando de considerar os seus méritos enquanto revolucionária, Lukács elenca pontos levantados por Rosa Luxemburgo – a questão agrária, o problema da autodeterminação dos povos (Estados fronteiriços, Ucrânia), a crítica à dissolução da Assembleia Constituinte, o papel do Estado (sovietes) durante o período de transição, o problema da liberdade na revolução [“liberdade dos que pensam diferente” (para as outras “correntes” do movimento operário)], etc. – e os critica com lucidez, serenidade e, pela pujança dos argumentos, com uma autoridade de quem já pisava em terreno firme para intrometer-se em um “duelo de gigantes”. As citações de escritos e documentos (cartas, etc.) de Marx, Engels e Lênin confirmam, além do aguçamento do seu olhar interpretativo, a crescente familiaridade do autor com o marxismo. Não à toa, portanto, esse livro irá alçá-lo a uma posição de destaque, muito embora críticas acerbas também lhe sejam dirigidas[2].
Analisemos de perto quatro pontos da oposição de Rosa aos bolcheviques segundo o olhar lukacsiano. Segundo o pensador húngaro, Rosa Luxemburgo condenava a dissolução da Assembleia Constituinte após Lênin e Trótski julgarem-na como um órgão inadequado para a revolução proletária devido à sua composição (note que, apesar de declarar ulteriormente sem rodeios possuir uma antipatia à Trótski, Lukács cita-o aqui). Escreve ela: “É incrível como toda experiência histórica contradiz isso! Ela nos mostra, inversamente, que o fluido vivo do ânimo popular envolve constantemente os corpos de representação, penetra-os e orienta-os[3]”. A despeito das constatações corretas, Lukács considera que a revolucionária alemã não teria se dado conta de que, enquanto nas revoluções inglesa e francesa os conselhos progressistas “purificavam” os corpos representativos, o soviete (órgão da revolução proletária) ia mais longe e tomava o lugar de tais órgãos de representação. “De órgãos proletários (e semiproletários) de controle e promoção da revolução burguesa, tornaram-se organizações de luta e governo do proletariado vitorioso[4]”. Mas, segundo Lukács, Rosa não consentia os sovietes como forma de luta e governo do período de transição, “como forma de luta para conquistar e impor as condições do socialismo[5]”. Assim ela se manifesta: “Não faz sentido qualificar o direito de voto como um produto utópico da fantasia, desligado da realidade social e que, exatamente por isso, não é um instrumento sério da ditadura proletária[6]”. E complementa: “É um anacronismo […] [o soviete] que tem lugar numa base econômica socialista já sólida, e não no período de transição da ditadura proletária[7]”. Lukács recorre à Engels para tratar do papel do Estado durante o período da remodelagem da vida econômica e social da sociedade (transição). Ele argumenta que os fundamentos do modo de produção capitalista (e suas leis naturais) não são de modo algum eliminados quando ocorre a tomada do poder pelo proletariado, ou mesmo quando se impõe às instituições uma socialização dos meios de produção. Diz ele: “[…] a sua erradicação e substituição pelo modo de economia socialista, conscientemente organizado, não deve ser concebida simplesmente como um processo lento e complicado, mas, antes, como uma luta obstinada e conduzida conscientemente[8]”. O filósofo segue e critica a sobrevalorização da maturidade das circunstâncias, do poder do proletariado, assim como a subestimação do poder das forças opostas, cujo prejuízo é pago sob a forma de crises, recuos, etc.[9] O autor conclui que o controle consciente e organizado da vida econômica só pode se dá conscientemente, e o órgão dessa efetuação é o Estado proletário, o sistema de sovietes. “[…] os sovietes são, de fato, ‘uma antecipação da situação jurídica’ de uma fase posterior [sucessora] da divisão de classes […] são o único meio apropriado para um dia dar vida a essa situação antecipada[10]”.
O problema da organização era outro ponto que punha Lênin e Rosa em lados opostos. Lukács recorda-se que desde as primeiras polêmicas sobre organização entre bolcheviques e mencheviques Rosa se colocava contra os primeiros. Não havia divergência tático-política entre a líder alemã e os bolcheviques (eles concordavam no plano da tática com a greve de massa, imperialismo, combate à guerra mundial, etc.). Ambos entendiam que o oportunismo deveria ser combatido; no entanto, enquanto os bolcheviques acreditavam que essa luta devesse ser travada no campo da organização, Rosa, por sua vez, defendia que esse combate se desse por meio de uma luta intelectual no interior do partido revolucionário do proletariado. Para ela, o verdadeiro espírito revolucionário deveria ser buscado “na espontaneidade elementar das massas[11]”, diferente dos bolcheviques, que “exageravam” no papel dado “às questões de organização como garantias do espírito revolucionário[12]”. A organização para ela seria algo que “se desenvolve”, e não algo que “é feito”. A sua concepção de que o partido se constitua enquanto ponto organizacional das camadas em luta contra a burguesia pelo curso do desenvolvimento estaria assentada na seguinte formulação:
“Essa afirmação [socialdemocracia como representante da classe proletária, das vítimas oprimidas da ordem burguesa, etc.] torna-se verdadeira sob a forma do processo histórico de desenvolvimento, por força do qual a socialdemocracia, também como partido político, torna-se pouco a pouco o refúgio dos mais diversos elementos insatisfeitos e, portanto, o partido do povo contra uma minoria insignificante da burguesia dominante” (apud Lukács, 2003, p. 509-10; ênfase original).
Uma das bases de sustentação dessa visão de Rosa parece supor que o agravamento revolucionário da situação econômica empurraria a pequena-burguesia, ameaçada em sua existência social, para uma união partidária com o proletariado em luta. Essa compreensão chocava-se com o entendimento dos bolcheviques, até porque partia duma suposição da classe operária enquanto um bloco uniformemente revolucionário. Para os bolcheviques, o conflito com camadas proletárias que lutam ao lado da burguesia era inevitável (Lukács lembra que a questão da aliança com a burguesia “progressista” teria sido uma das causas da cisão entre bolcheviques e mencheviques). A concepção bolchevique de partido estaria, pois, em dissonância com aquela que o concebe enquanto “refúgio dos elementos insatisfeitos”: “O fundamento político dessa concepção [bolchevique] é exatamente o reconhecimento de que o proletariado há de conduzir a revolução em aliança, com outras camadas em luta contra a burguesia, mas não como parte da mesma organização[13]”. O problema da organização, e essa seria uma das principais conquistas de Lênin aos olhos de Lukács, teria se transformado num problema tático-político (a guerra mundial teria sido o ponto determinante para isso).
“É preciso reconhecer claramente que, nas duas frentes da guerra civil[14] que se formam gradualmente, o proletariado entrará na luta, num primeiro momento, dividido e interiormente cindido. Essa cisão não pode ser eliminada por meio de discussões. […] portanto, não é seguro acreditar que o movimento operário poderá produzir sua uniformidade – revolucionária – ‘organicamente’, de ‘dentro’ para fora” (Lukács, 2003, p. 515-16).
Por fim, Rosa levanta a bandeira do “direito de liberdade” contra os bolcheviques. O programa espartacista – escreve Lukács – é o fundamento teórico tanto da distinção entre “terror” e “violência” (um “bizantinismo centrista”, segundo o filósofo húngaro), como da oposição entre “ditadura do partido” e “ditadura do proletariado” – palavra de ordem do Partido Comunista Operário holandês[15]. “Liberdade é sempre a liberdade dos que pensam diferente[16]”, diz ela. Segundo Lukács, com essa afirmação Rosa não estaria abordando a defesa banal de uma democracia “em geral” (algo tão recorrente no âmbito da esquerda mundial nos dias correntes); sua tomada de posição é o resultado lógico de uma avaliação equivocada do agrupamento de forças naquele estado da revolução (o papel dos mencheviques: são aliados da revolução com “opinião diferente” sobre questões de tática, organização, etc., ou uma corrente inimiga da revolução?). O filósofo afirma que a necessidade de crítica, controle público, não era uma questão tida como desnecessária pelos bolcheviques, sobretudo Lênin (como ela mesma teria destacado). Como a liberdade não seria um valor em si mesmo, a diferença entre Rosa e Lênin poderia ser explicada a partir da função que a liberdade irá desempenhar: se uma função revolucionária ou contra-revolucionária.
“No período da ditadura, o tipo e a medida da ‘liberdade’ dependerão do estado da luta de classes, do poder do inimigo, da intensidade da ameaça à ditadura, das reivindicações das camadas a conquistar, da maturidade daquelas classes aliadas ao proletariado e influenciadas por ele, etc. A liberdade não pode (assim como, por exemplo, a socialização) representar um valor em si. É ela que tem de estar a serviço da dominação do proletariado, e não o contrário” (Ibidem, p. 521; ênfase original).
Apesar da coerência e da clareza do entendimento acima, o Lukács de 1922 – imbuído do espírito revolucionário do seu marxismo da época – afirma na sequência que somente o partido bolchevique teria “capacidade de manobra e imparcialidade suficientes” para avaliar as forças realmente atuantes e conduzir essas modificações frequentemente repentinas. A posterior emergência do fenômeno do estalinismo iria, em certa medida, refutar Lukács quanto a tal capacidade[17] (a prova da história); a sua prospecção de então não fora capaz de intuir que aquele não seria um caminho imune a percalços, haja vista a introdução de métodos burocráticos no interior do movimento comunista desde aquela ocasião (o “caso do ouro” de Béla Kun estoura em 1920). De todo modo, na visão do Lukács de 1922, Rosa, apesar de conhecedora da situação russa, teria adotado o ponto de vista da esquerda não-russa, que não dispunha de nenhuma experiência revolucionária prática.
Embora tal escrito não esteja alicerçado no terreno onde virá a se edificar a concepção madura de Lukács, nesse oportuno momento em que se desenvolve debates comemorativos sobre o centenário da Revolução Russa não custa relembrá-lo. Indubitavelmente ele será ponto de parada em qualquer roteiro de pesquisa que se ponha a pensar a revolução de outubro com o intuito de enfrentar a pergunta – posta aqui de modo unicamente provocativo – de a quem a história teria dado razão: se a Lênin, ou se a Rosa. Não obstante o autor dessas linhas advirta para os riscos de eventuais simplismos, arrisco a dizer que a resposta a essa indagação pode contribuir em muito para a imensa tarefa de elucidação da débâcle soviética.
Notas
[1] Há um outro ensaio dedicado à Rosa Luxemburgo nesse trabalho que irá projetar – para o bem e para o mal – o pensador húngaro no âmbito do marxismo. Trata-se do “Rosa Luxemburgo como marxista”, concluído em janeiro de 1921. Ver: História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[2] O texto Reboquismo e dialética: uma resposta aos críticos de História e consciência de classe (São Paulo: Boitempo, 2015) é emblemático das contendas travadas em torno dessa obra, que, segundo a edição brasileira, teria sido escrita em 1925 ou 1926 (p. 14).
[3] apud Lukács, 2003, p. 500-01.
[4] Lukács, 2003, p. 501-02.
[5] Ibidem, p. 502; ênfase original.
[6] apud Lukács, 2003, p. 502.
[7] apud Lukács, 2003, p. 502.
[8] Lukács, 2003, p. 504; ênfase minha.
[9] A maestria e a genialidade com que desenvolve a sua crítica, abordando o problema por vários ângulos, pode ser atestada nessa passagem: “[…] a observação de que o poder do proletariado e a possibilidade de controlar conscientemente a ordem econômica são frequentemente muito limitados não deveria nos levar a concluir que a ‘economia’ do socialismo irá prevalecer por si mesma ou pelas ‘leis cegas’ de suas forças motrizes, como no capitalismo” (Lukács, 2003, p. 504).
[10] Lukács, 2003, p. 505; ênfase original.
[11] Ibidem, p. 509.
[12] Ibidem, p. 509.
[13] Lukács, 2003, p. 511.
[14] Atente para o contexto em que o texto está sendo escrito, janeiro de 1922, período em que o tema da guerra civil fazia parte daquela realidade.
[15] Lukács, 2003, p. 519.
[16] apud Lukács, 2003, p. 518.
[17] O próprio autor irá se posicionar contra esse fenômeno em diversas ocasiões, como no escrito “Cartas sobre o estalinismo”. Ver em: Revista Civilização Brasileira. Caderno Especial 1. A revolução russa, 50 anos de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 29-46.
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Rogério Castro é Doutorando em Serviço Social pela ESS-UFRJ; mestre em Serviço Social pela UFAL. Professor universitário e pesquisador da obra do filósofo marxista húngaro, György Lukács. É autor de artigos em periódicos, jornais e sites especializados. Dentre os trabalhos publicados, destacam-se: “Os 40 anos sem Lukács e o debate contemporâneo nas ciências humanas” (Revista Serviço Social e Sociedade, n. 114); Celso Furtado e a formação do Estado brasileiro em Formação Econômica do Brasil (Revista “Cadernos do Desenvolvimento” do Centro Internacional Celso Furtado, n. 14); O debate sobre o trabalho em Marx (Revista Praia Vermelha, UFRJ, v. 24, n. 2); além dos artigos, pelo Blog da Boitempo, “As raízes da escalada conservadora no Brasil atual”, “A crise brasileira atual” e “Dilma é derrubada. Cai também a tese da democracia”. (rcastro.liceu@gmail.com)
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