O futuro da Revolução Russa
Logo depois de Outubro de 1917 os bolcheviques proscreveram a História como disciplina porque ela reproduzia o patriotismo e a ideologia da classe dominante. Mais tarde, Stálin reabilitou a disciplina nas escolas e encomendou manuais convencionais com nomes e datas.
Por Lincoln Secco.
Logo depois de Outubro de 1917 os bolcheviques proscreveram a História como disciplina porque ela reproduzia o patriotismo e a ideologia da classe dominante. A corrente historiográfica marxista, liderada por Pokrovski, pensava a História como o desenvolvimento de forças impessoais e abstratas e sem nomes. Mais tarde, Stálin reabilitou a disciplina nas escolas e encomendou manuais convencionais com nomes e datas como demonstrou Sheila Fitzpatrick em seu livro sobre a Revolução Russa.
Na famosa entrevista concedida a Emil Ludwig em 1931 Stálin asseverou o papel dos heróis na História (e não de quaisquer indivíduos, bem entendido), desde que ancorados na compreensão das condições históricas limitantes e na capacidade de usá-las e transformá-las. Ele citou a ideia de Marx de que os homens fazem a história, mas sob condições herdadas etc e reinterpretou-a obviamente.
Por outro lado, os primeiros relatos da Revolução deixaram de ser editados sob Stálin. Os livros de época eram conhecidos por poucos especialistas enquanto a massa de historiadores ignorava Sukhanov, Keriénski, Trótski etc.
Por muitos anos o guia oficial para historiadores foi a História do Partido Comunista da URSS (bolchevique) – Breve curso. Sua revisão foi feita em 1959, com uma Nova História do Partido Comunista Soviético. Com a Glasnost (abertura) de Gorbatchov houve uma crise do ensino de História quando os líderes da Revolução mortos no terror dos anos 1930 foram reabilitados.
Os eventos de 1917 eram conhecidos como a “Revolução de Outubro”, sendo o adjetivo “russa” usado no exterior. Agora passavam a ser descritos como a “Revolução Bolchevique”, o que os restringia à ação de um único partido e a uma ideologia da qual uma expressiva parcela da população buscava se distanciar e, se possível, esquecer.
A relação com aquele passado permaneceu um problema político e não só de especialistas. Um país não pode apagar sete decênios em que viveu duas revoluções, uma guerra civil e duas guerras mundiais. Na segunda delas, a sua vitória foi inseparável de símbolos e nomes bolcheviques como “Exército Vermelho” e “Stalingrado”. Como valorizar a vitória contra a invasão alemã sem se referir ao passado socialista em que se mesclaram o terror e a salvação nacional?
Duas Revoluções
A França entronizou a sua Revolução em bloco durante o primeiro centenário (1889), incluindo o indesejável terror de Robespierre. E não deixou de produzir uma disputa pelos personagens e temas durante os cem anos seguintes. Somente no bicentenário os historiadores tiveram audiência para ousar dizer o que antes permanecia em círculos estreitos: que a Revolução não existiu, foi uma derrapagem irrelevante ou um prenúncio do totalitarismo.
Libertava-se dessa forma de um segundo centenário dominado pela comparação com a Revolução Russa e pela interpretação de 1789 como uma Revolução Burguesa que poderia ter sido “completada” em 1917. Favorável ou não a essa leitura os primeiros textos depois da conquista do poder pelos bolcheviques já exibiam aquele cotejo como o reconhecido Albert Mathiez em seu opúsculo Le bolchevisme et le jacobinisme de 1920 e M. Aldanov em Deux Révolutions: la Révolution Française et la Révolution Russe (1921). Os próprios bolcheviques, Lênin em primeiro lugar, tinham os olhos voltados para o ano II da Grande Revolução Francesa e para sua continuidade secular (1830, 1848, 1871). Não por outro motivo homenagearam Marat e Robespierre. Os adversários pertencentes a outros agrupamentos da esquerda vislumbraram em cada momento um Bonaparte no Exército Vermelho ou no comando do partido. Mais tarde Trótski verá na ascensão de Stálin o termidor soviético.
Para alguns, a Rússia talvez tenha vivenciado de forma diferente o primeiro centenário de sua Revolução porque ele não está tão distante da queda do domínio territorial que ela manteve. Não foi sem razão que o Presidente Vladimir Putin, em abril de 2005 no Discurso sobre o Estado da União, no parlamento russo, declarou que o fim da União Soviética foi “a maior catástrofe geopolítica do século” passado.
Todavia, é mais provável que a razão principal da diferença entre franceses e russos esteja na profundidade das transformações que o “Grande Outubro” engendrou. A França vivenciou tanto o primeiro quanto o segundo centenário como uma consagração da nova ordem social consolidada pela Revolução Francesa: a de uma burguesia autoconfiante numa sociedade capitalista afluente e de “classe média”. A Rússia revisitou o ano de 1917 como o início de uma experiência malograda e no meio de uma crise econômica e social.
Embora responsável por gigantescos sucessos econômicos, modificações no padrão das classes sociais e sacrifícios humanos enormes, o socialismo foi associado só ao terror e à estagnação econômica dos anos 1970 que parecia superada com a transição do estatismo aos monopólios privados e do estamento de gestores burocratas a uma nova classe dominante mafiosa.
Hoje, os ideólogos da democracia liberal dissolvem as classes, entronizam o indivíduo abstrato enquanto seus representantes políticos destroem os direitos sociais e jogam os indivíduos concretos numa luta de classes aparentemente “sem classes”. Mais cruenta e multiforme. Enquanto esperavam apagar as classes em nome das quais as revoluções eram feitas, aboliram as barreiras sociais que as impediam.
Uma nova era das Revoluções se aproxima.
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O dossiê especial “1917: o ano que abalou o mundo“, reúne reflexões de alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos nacionais e internacionais sobre a história e o legado da Revolução Russa. Aqui você encontra artigos, ensaios, reflexões, resenhas e vídeos de nomes como Alain Badiou, Slavoj Žižek, Michael Löwy, Christian Laval, Pierre Dardot, Domenico Losurdo, Mauro Iasi, Luis Felipe Miguel, Juliana Borges, Wendy Goldmann, Rosane Borges, José Paulo Netto, Flávio Aguiar, Mouzar Benedito, Ruy Braga, Edson Teles, Lincoln Secco, Luiz Bernardo Pericás, Gilberto Maringoni, Alysson Mascaro, Todd Chretien, Kevin Murphy, Yurii Colombo, Álvaro Bianchi, Daniela Mussi, Eric Blanc, Lars T. Lih, Megan Trudell, Brendan McGeever, entre outros. Além de indicações de livros e eventos ligados ao centenário.
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Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP. Publicou pela Boitempo a biografia de Caio Prado Júnior (2008), pela Coleção Pauliceia. É organizador, com Luiz Bernardo Pericás, da coletânea de ensaios inéditos Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, e um dos autores do livro de intervenção da Boitempo inspirado em Junho Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. Colaborou para o Blog da Boitempo mensalmente durante o ano de 2011. A partir de 2012, tornou-se colaborador esporádico do Blog.
Sobre a Revolução de Outubro e sobre o regime que se instalou em função dela já se teceu muitas glórias, fantasias e horrores, como se ela tivesse sido um fantasma, uma bela utopia ou uma grande ilusão e pesadelo. No entanto, acima dessa cortina de fumaça, ela continua sendo algo que ninguém pode considerar irrelevante. Portanto, o grande desafio que ela provoca é o seguinte: ainda vale apena nossa preocupação com o seu legado, ou seja, reflexões sobre ela ainda nos ajuda na superação dessa tragédia que estamos enredados?
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Professor, excelente texto e reflexão. Gostaria de algumas palavras a mais sobre esse final: “Enquanto esperavam apagar as classes em nome das quais as revoluções eram feitas, aboliram as barreiras sociais que as impediam.”
Principalmente na questão das barreiras sociais que impediam as revoluções, ficando a pergunta, quais barreiras?
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Shilton, grato pelo comentário. Refiro-me ao fato de que o Estado de Bem Estar social servia para contentar, controlar e conter as classes trabalhadoras, embora fosse também uma conquista delas. Os seus direitos tinham a função de integrá-las no sistema e diminuir as razões para revoltas. Sem esses direitos, a insatisfação tende a se expressar fora dos meios legais e previsíveis.
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