O Dia D

Quando criança eu adorava soldadinhos de chumbo. Os que eu tinha eram herança de meu avô e de meu pai. Resistiram ao tempo, resistiriam a mim.

Por Flávio Aguiar.

Quando criança eu adorava soldadinhos de chumbo. Os que eu tinha eram herança de meu avô e de meu pai. Dois, um ajoelhado e outro de pé, tinham os fuzis apontados para o horizonte. Outros estavam em posição de parada: ombro-armas, apresentar armas, descansar, etc. Vestiam as fardas dos exércitos alemão e francês. E havia um hussardo e um cossaco, provavelmente exilados depois da Revolução de 1917. Havia também carrinhos: um caminhão de bombeiros, uma ambulância, ambos de ferro. Resistiram ao tempo, resistiriam a mim.

Nas guerras que eu e os garotos da rua armávamos, eles lutavam com outros soldados, que pertenciam aos demais. Eram muitos, estes; os meus eram poucos, mas invariavelmente lutavam com bravura. Batalhávamos nas sarjetas das ruas, nos terrenos baldios cheios de mato, em montes de areia das construções que se avolumavam nas vizinhanças, e que faziam as vezes dos desertos africanos. Fazíamos manobras ousadas, avanços temerários, recuos prudentes, às vezes os combatentes tinham de suportar bombardeios de artilharia, simulados com pedras de pequeno porte para nós, mas de grande calibre para eles, ou até com bombas de verdade, que sobravam das festas de São João.

A coragem dos meus não anulava a minha inveja diante de alguns dos soldados alheios. Certo dia, por exemplo, um dos outros garotos armou uma grande parada em sua casa, sobre a mesa de jantar. Havia carruagens antigas, canhões puxados por parelhas de cavalos, além da soldadesca e dos oficiais perfilados atrás das respectivas bandeiras, empunhadas com orgulho e acompanhadas por tambores e cornetas. Uma linha me impressionou: eram soldados britânicos, com aqueles chapéus altos e de pele (imitada pelo chumbo, é claro), que tinham o fuzil a um ombro e do outro lado um braço articulado, que podia balançar. Naquela noite não dormi, sonhando com o dia em que eu poderia ter uma tropa de soldados da Rainha, com braços articulados e chapéus de pele de verdade.

Acho que meus pais ouviram as lamúrias de minha alma diante da pujança dos exércitos alheios. Em certo aniversário, chegando em casa ao fim da tarde, depois da escola, encontrei a mesa do jantar tomada – não por doces e refrigerantes – mas por um verdadeiro e gigantesco exército em parada. Lá estavam os oficiais prestando continência diante do porta-bandeira; os soldados com suas armas ao ombro ou a tiracolo; havia carros de combate, tanques, canhões anti-aéreos, metralhadoras sobre caminhões, morteiros, munição à vontade, no desfile, e para minha imaginação. Era um verdadeiro delírio sobre toda a mesa, que não era pequena, pois nela podiam jantar umas doze pessoas confortavelmente.

Olhando bem para as divisões perfiladas, percebi logo que a bandeira que as liderava era a dos Estados Unidos. Os soldados, os oficiais, os caminhões, os canhões, eram todos de matéria plástica. E eram achatados, isto é, bi-dimensionais. Não havia pintura nas fardas nem nos rostos: tudo e todos tinham a mesma cor esverdeada, que fingia um verde-oliva. Mas isto não me desanimou. Logo pensei nas batalhas em que eu passaria a ter uma vantagem numérica esmagadora, e quis logo contar a novidade e exibir o exército recém-desembarcado à gurizada da rua. Quase ao mesmo tempo, um pensamento me assaltou: ‘vão roubar, depredar o meu exército’. Naquela noite, depois dos festejos do aniversário, dormi envolto em sonhos onde meu exército era desfeito pela cobiça dos demais.

Mas meus temores não impediram que o novo exército passasse a integrar nossas batalhas, junto à soldadesca de chumbo, agora relegada a uma reserva na retaguarda. E de fato, como eu temia, e como acontece com quase todos os exércitos, ele foi se desintegrando. Mas não pelo furto, como eu inicialmente imaginara. Apesar de estarmos em guerra, havia um certo acordo de cavalheiros entre nós, herança talvez das lutas de séculos anteriores, personificadas naqueles soldados de chumbo sobreviventes de uma outra época.

O que foi desintegrando meu novo exército foi sua pouca resistência diante dos fados da luta. Onde antes os soldados de chumbo mostravam inquebrantável resistência, só perdendo lascas de tinta, os de plástico se quebravam sem remédio; nossas pedradas partiam seus fuzis; esverdeados, eles se perdiam mais facilmente na grama e entre os arbustos dos terrenos baldios onde brincávamos. Outras circunstâncias contribuíram para o seu constrangimento: aqueles terrenos baldios foram rareando, ocupados por prédios e casas que subiam com vigor. Logo nossos campos de batalha se viram restringidos aos quintais de nossas casas, onde não havia areais africanos nem selvas ameaçadoras que acoitassem nossas batalhas. Tivemos de mudar as nossas táticas, lutando em escadas de apartamentos ou entre utensílios de cozinha, já que as salas de visita nos eram sempre interditas. Nossas guerras mundiais se viram transformadas em guerrilhas urbanas; os combates por amplos desertos ou savanas baldias viraram disputas acuadas entre sofás e cadeiras envelhecidas.

Neste mundo descorado a soldadesca – a de chumbo e a de plástico – foi perdendo a graça; era mais divertido ir aos cinema nos domingos, passando a tarde entre as lutas da cavalaria americana contra os índios ou do exército dos Estados Unidos contra os alemães nazistas. Acabaram todos os soldadinhos irmanados no abandono em caixas de sapato guardadas em fundos de gaveta. Depois foram desaparecendo com as sucessivas mudanças, limpezas, reformas, despejos de velharias, enfim, perdendo a guerra contra o tempo.

Somente com o passar dos anos compreendi que aquele exército que ocupara meus sonhos e meu aniversário – talvez o dos oito anos – fazia parte de uma outra invasão maior, aquela que fez desaparecerem de minha casa o fogão a lenha, o “boiler” para aquecer a água, as toalhas de mesa de chita ou linho, enquanto ela recebia triunfalmente os linóleos de plástico, o chuveiro elétrico e o fogão a gás. Na sala de visitas a enorme eletrola para discos 78 cedeu seu lugar a uma também enorme televisão encapsulada num móvel de madeira nobre. O tosco tamanco deu lugar, nos meus pés, a uma chinela de dedo.

Muitos anos depois, quando a casa de meus pais foi vendida e eu já morava em outra cidade, ao remexer nos últimos guardados deparei com um daqueles soldados de plástico, e um outro dos de chumbo. O primeiro era um soldado de infantaria, com uma metralhadora a tiracolo e seu capacete coberto pela redinha típica do exército norte-americano. O de chumbo era visivelmente um soldado alemão, quem sabe francês, mas anterior à Segunda Guerra, fuzil em riste, disparando contra o nada.

Movido por não sei que sentimento estranho, não os levei comigo. Acompanhei-os até o quintal da casa, já tomado por um mato agressivo, como nos velhos terrenos baldios da infância. Coloquei-os ao pé de uma bergamoteira, entre as macegas que já assaltavam o seu tronco. E ali os deixei, para que livrassem sua última batalha contra o edifício que seria construído quando a casa fosse demolida e o quintal ocupado pelo estacionamento.

Tenho certeza de que lutaram com valor.

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Seu mais novo livro é O legado de Capitu, publicado em versão eletrônica (e-book). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

3 comentários em O Dia D

  1. Antonio Tadeu Meneses // 07/09/2017 às 11:09 am // Responder

    Quando o texto do Flávio tem uma natureza literária é muito agradável de ler.

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  2. SÉRGIO ARMANDO DINIZ GUERRA // 07/09/2017 às 11:56 am // Responder

    Grande companheiro Flávio. O nosso poeta de todos os tempos!

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  3. Flávio Aguiar // 07/09/2017 às 12:26 pm // Responder

    Obrigado pelos comentários generosos!

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