Lênin: Em memória da Comuna
A Boitempo acaba de anunciar o lançamento do Arsenal Lênin, ambiciosa nova coleção editorial dedicada a publicar as obras de Vladímir Ilitch Uliánov em edições cuidadosas, acrescidas de notas, comentários, e com traduções feitas diretamente a partir do original, sob os auspícios de um conselho composto por Antonio Carlos Mazzeo, Antonio Rago, Augusto Buonicore, Ivana Jinkings, Marcos del Roio, Marly Vianna, Milton Pinheiro e Slavoj Žižek.
Para comemorar as boas novas, o Blog da Boitempo recupera aqui o clássico “Em memória da Comuna” escrito por Lênin em comemoração aos quarenta anos da revolta. A apresentação e revisão da tradução são de Alexandre Linares, feitas especialmente para a Margem Esquerda #16, volume publicado no aniversário de 140 anos do levante proletário parisiense de 1871. Nesse texto, o líder soviético analisa a origem e a organização da luta dos communards, que, abandonados por seus aliados, enfrentaram até a morte os exércitos da burguesia francesa.
* * *
Apresentação
Por Alexandre Linares
Foi Lênin quem mais profundamente tirou as lições da experiência revolucionária do proletariado parisiense na Comuna de Paris. Seu trabalho buscou generalizar essa experiência para os trabalhadores russos e para o proletariado mundial. Em sua obra O Estado e a revolução, escrita no calor da revolução de 1917, ele recupera os ensinamentos do proletariado parisiense para alimentar o processo que desembocou na tomada do poder pelos Sovietes.
O artigo “Em memória da Comuna” redigido por Lênin para a Rabochaya Gazeta (Gazeta dos Trabalhadores), em 15 de abril de 1911, é um testemunho dessa busca por preservar e generalizar a experiência dos trabalhadores de Paris em 1871. Escrito para comemorar o aniversário de quarenta anos dessa gloriosa experiência histórica, Lênin explica que “não morreu a causa da Comuna, que segue vivendo dentro de cada um de nós. A causa da Comuna é a causa da revolução social, é a causa da completa emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado mundial. E, neste sentido, é imortal.”
Hoje, ao comemorarmos os 140 anos da Comuna de Paris, precisamos lembrar que ela segue viva, inspirando e ensinando que o combate pela independência política dos trabalhadores se mantém atual e cada vez mais necessário.
* * *
Em memória da Comuna
[Publicado originalmente em Rabochaya Gazeta, n. 4-5, 15 de abril de 1911). Tradução de Pedro Castro, para o Marxist Internet Archive, com revisão de Alexandre Linares.]
Por Vladimir Ilyich Lênin
Já se passaram quarenta anos desde a proclamação da Comuna de Paris. Seguindo a tradição, o proletariado francês honrou a data com comícios e manifestações em memória dos homens da revolução de 18 de março de 1871. No final de maio voltará a levar coroas de flores às tumbas dos communards fuzilados durante a terrível “semana de maio” e a jurar, diante delas, que lutará sem descanso até o triunfo completo de suas ideias, até dar por cumprida a obra por eles legada.
Por que o proletariado – não apenas o francês como o de todo o mundo – honra os combatentes da Comuna e seus precursores? Qual é a herança da Comuna?
A Comuna surgiu espontaneamente; ninguém a preparou de modo consciente ou sistemático. A desgraçada guerra contra a Alemanha, os sofrimentos das privações impostas pelo cerco militar, o desemprego operário e a ruína da pequena burguesia; a indignação das massas contra as classes superiores e contra as autoridades, que haviam demonstrado uma incapacidade absoluta; a surda efervescência no seio da classe operária, descontente de sua situação e ansiosa por um novo regime social; a composição reacionária da Assembleia Nacional, que fazia temer os destinos da República, foram as causas que concorreram com outras muitas para impulsionar a população parisiense para a revolução do 18 de março, que colocou de improviso o poder nas mãos da Guarda Nacional, em mãos da classe operária e da pequena burguesia, que havia se unido a ela.
Foi um acontecimento histórico sem precedentes. Até então, o poder estivera, em geral, nas mãos dos latifundiários e dos capitalistas, quer dizer, de seus mandatários, que constituíam o chamado governo. Depois da revolução de 18 de março, quando o governo do senhor Thiers fugiu de Paris com suas tropas, sua polícia e seus funcionários, o povo ficou dono da situação, e o poder passou para as mãos do proletariado. Porém, na sociedade moderna, o proletariado, avassalado no econômico pelo Capital, não pode dominar na política se não rompe as cadeias que o amarram ao Capital. Daí que o movimento da Comuna deveria adquirir inevitavelmente um matiz socialista, isto é, deveria tender ao aniquilamento do domínio da burguesia, da dominação do capital e à destruição das próprias bases do regime social contemporâneo.
A princípio, tratou-se de um movimento heterogêneo e confuso. A ele somaram-se também os patriotas, na esperança de que a Comuna reiniciaria a guerra contra os alemães e levasse a um desenlace venturoso. Apoiaram-no também os pequenos lojistas, em perigo de arruinamento se não se adiasse o pagamento das letras vencidas e dos aluguéis – adiamento este que lhes era negado pelo governo, mas que a Comuna lhes concedeu. Por último, no começo também simpatizaram em certo grau com o movimento os republicanos burgueses, temerosos de que a reacionária Assembleia Nacional (os ruralistas, os violentos latifundiários) restabelecesse a monarquia. Porém, o papel fundamental nesse movimento foi desempenhado, naturalmente, pelos operários (sobretudo os artesãos parisienses), entre os quais se havia espalhado, nos últimos anos do Segundo Império da França, uma intensa propaganda socialista –muitos deles, inclusive, eram filiados à Internacional.
Somente os operários revelara-se fiéis à Comuna até o fim. Os republicanos burgueses e a pequena burguesia não tardaram em apartar-se dela: uns assustaram-se com o caráter revolucionário socialista do movimento, com seu caráter proletário; outros se afastaram quando viram que a Comuna estava inevitavelmente condenada à derrota. Apenas os proletários franceses apoiaram seu governo sem temor nem vacilo; só eles lutaram e morreram por ele, quer dizer, pela emancipação da classe operária, por um futuro melhor para os trabalhadores.
Abandonada por seus aliados de outrora e sem poder contar com nenhum apoio, a Comuna havia de ser derrotada. Toda a burguesia francesa, todos os latifundiários, especuladores da bolsa e fabricantes, todos os grandes e pequenos ladrões, todos os exploradores uniram-se contra ela. Com a ajuda de Bismarck (que pôs em liberdade 100 mil soldados franceses, prisioneiros dos alemães, para esmagar a Paris revolucionária), essa coalizão burguesa logrou confrontar com o proletariado parisiense os camponeses atrasados e a pequena burguesia de províncias e cercar meia Paris com um anel de ferro – a outra metade havia sido cercada pelo exército alemão. Em algumas cidades importantes da França (Marselha, Lyon, Saint-Etienne, Dijon e outras), os operários também tentaram tomar o poder, proclamar a Comuna e acudir a Paris. Tais intentos, porém, logo fracassaram, e Paris, que havia sido o primeiro local a desfraldar a bandeira da insurreição proletária, ficou abandonada a sua própria força, condenada a uma morte certa.
Para que uma revolução social triunfe, são necessárias pelo menos duas condições: um alto desenvolvimento das forças produtivas e um proletariado preparado para tal. Contudo, em 1871, nenhuma dessas condições estava dada. O capitalismo francês encontrava-se ainda pouco desenvolvido; a França era, então, fundamentalmente um país de pequena burguesia (artesãos, camponeses, lojistas etc.). Da mesma forma, não existia um partido operário; a classe operária não tinha preparação nem havia passado por um grande treinamento e, em sua massa, sequer tinha uma noção totalmente clara de quais eram seus objetivos nem como se poderia alcançá-los. Não havia uma organização política séria do proletariado nem sindicatos e cooperativas fortes…
Mas o que faltou à Comuna foi, principalmente, tempo, isto é, possibilidade para perceber a situação das coisas e empreender a realização de seu programa. Não teve tempo para iniciar essa tarefa quando o governo, entrincheirado em Versalhes e apoiado por toda a burguesia, iniciou as operações militares contra Paris. A Comuna teve de pensar, antes de tudo, em sua própria defesa. E até seu fim, que ocorreu na semana de 21 a 28 de maio, não houve tempo para pensar com seriedade em outra coisa.
Por certo, em que pese a essas condições tão desfavoráveis e à brevidade de sua existência, a Comuna teve tempo de aplicar algumas medidas que caracterizam bastante seus verdadeiros sentido e objetivo. Substituiu o exército permanente, instrumento cego em mãos das classes dominantes, pelo armamento de todo o povo; proclamou a separação da Igreja do Estado; suprimiu a subvenção ao culto (o soldo que o Estado pagava aos padres) e deu um caráter estritamente laico à instrução pública, com o que assestou um rude golpe aos soldados de batina. Pouco foi o que se pôde fazer no terreno puramente social. Esse pouco, porém, mostra com suficiente clareza seu caráter de governo popular, de governo operário: foi suprimido o trabalho noturno nas padarias, foi abolido o sistema das multas – essa exploração consagrada pela lei, com que se vitimavam os operários – e, finalmente, foi promulgado o famoso decreto de entrega de todas as fábricas e oficinas abandonadas ou paralisadas por seus donos às cooperativas operárias, com o fim de retomar a produção. E, para sublinhar, seu caráter de governo autenticamente democrático, proletário, a Comuna dispôs que a remuneração de todos os funcionários administrativos e do governo não fosse superior ao salário normal de um operário, nem passasse em nenhum caso dos 6 mil francos anuais (menos de 200 rublos ao mês).
Todas essas medidas mostravam eloquentemente que a Comuna constituía uma ameaça de morte ao Velho Mundo, baseado no avassalamento e na exploração. Essa era a causa de a sociedade burguesa não poder dormir tranquila, enquanto o ajuntamento de Paris ostentasse a bandeira vermelha do proletariado. E, quando a força organizada do governo pôde, afinal, dominar a força mal organizada da revolução, os generais bonapartistas, esses generais batidos pelos alemães mas garbosos frente a seus compatriotas vencidos, esses Rennenkampf e Méller-Zakomelski franceses fizeram uma matança como jamais se havia visto em Paris. Cerca de 30 mil parisienses foram mortos pela soldadesca enfurecida; uns 45 mil foram detidos, executados logo muitos e desterrados ou enviados a trabalhos forçados milhares deles. No total, Paris perdeu 100 mil filhos, entre os quais se encontravam os melhores operários de todos os ofícios.
A burguesia estava satisfeita. “Agora, acabou-se com o socialismo, por um longo tempo!”, dizia seu sanguinário chefe, o diminuto Thiers, quando ele e seus generais afogaram em sangue a sublevação do proletariado de Paris. Mas de nada serviram os grunhidos desses corvos burgueses. Não passariam ainda seis anos da derrocada da Comuna, enquanto se achavam muitos de seus lutadores em presídio ou no exílio, quando na França iniciou-se um novo movimento operário. A nova geração socialista, enriquecida com a experiência de seus predecessores e em absoluto desencorajada pela derrota que sofreram, recolheu a bandeira caída das mãos dos combatentes da Comuna e levou-a adiante com firmeza e valentia aos gritos de “Viva a revolução social! Viva a Comuna!”. E três ou quatro anos mais tarde um novo partido operário e a agitação que levantara no país obrigaram as classes dominantes a pôr em liberdade os communards que o governo ainda mantinha presos.
Honram a memória dos combatentes da Comuna não só os operários franceses, senão também o proletariado de todo o mundo, pois ela não lutou apenas por um objetivo local ou nacional estreito, mas pela emancipação de toda a humanidade trabalhadora, de todos os humilhados e ofendidos. Como combatente de vanguarda da revolução social, a Comuna ganhou a empatia onde quer que sofra e lute o proletariado. A epopeia de sua vida e de sua morte, o exemplo de um governo operário que conquistou e reteve em suas mãos durante mais de dois meses a capital do mundo e o espetáculo da heroica luta do proletariado e seus padecimentos depois da derrota têm levantado até hoje a moral de milhões de operários, têm alentado suas esperanças e têm conquistado sua simpatia para o socialismo. O troar dos canhões de Paris despertou de seu sono profundo às camadas mais atrasadas do proletariado e deu um impulso à propaganda socialista revolucionária em todas as partes. Por isso não morreu a causa da Comuna, por isso segue vivendo até hoje em cada um de nós.
A causa da Comuna é a causa da revolução social, é a causa da completa emancipação política e econômica dos trabalhadores, é a causa do proletariado mundial. E, nesse sentido, é imortal.
O dossiê especial “1917: o ano que abalou o mundo“, reúne reflexões de alguns dos principais pensadores críticos contemporâneos nacionais e internacionais sobre a história e o legado da Revolução Russa. Aqui você encontra artigos, ensaios, reflexões, resenhas e vídeos de nomes como Alain Badiou, Slavoj Žižek, Michael Löwy, Christian Laval, Pierre Dardot, Domenico Losurdo, Mauro Iasi, Luis Felipe Miguel, Juliana Borges, Wendy Goldmann, Rosane Borges, José Paulo Netto, Flávio Aguiar, Mouzar Benedito, Ruy Braga, Edson Teles, Lincoln Secco, Luiz Bernardo Pericás, Gilberto Maringoni, Alysson Mascaro, Todd Chretien, Kevin Murphy, Yurii Colombo, Álvaro Bianchi, Daniela Mussi, Eric Blanc, Lars T. Lih, Megan Trudell, Brendan McGeever, entre outros. Além de indicações de livros e eventos ligados ao centenário.
***
Vladímir Ilitch Uliánov Lênin (1870-1924) foi o mais importante líder bolchevique e chefe de Estado soviético, mentor e executor de um evento que inaugurou uma nova etapa da história universal, a Revolução Russa de 1917. Intelectual e estrategista com rara apreensão do momento histórico em que viveu, escreveu artigos e livros que inspiraram a articulação do internacionalismo socialista e aprofundaram a compreensão do capitalismo, dos efeitos do desenvolvimento desigual, do imperialismo e do Estado. Durante sua existência, praticou o que escreveu e escreveu sobre o que praticou, num notável exemplo de coerência. Quase toda a sua obra – teórica e prática – foi produzida nas duas décadas que inauguraram o século XX, período em que sua influência foi decisiva. Por isso e muito mais, é fundamental voltar a Lênin. A Boitempo aceita o desafio e se lança nesta aventura fundamental: a coleção Arsenal Lênin!
Lênin, com sua lucidez de sempre, não só elucida os principais traços daquela conjuntura, como sintetiza as principais causas daquele acontecimento heroico. Mais importante ainda é que alerta que, aqueles acontecimentos, não foi apenas algo que marcou uma época e que fez milhares de vítimas e exaltou o heroísmo de muitos, mas que, sobretudo, foi algo que adquiriu uma dimensão universal, de longo alcance, que deve ser estudado e discutido porque seu exemplo ainda é muito importante para o movimento dos trabalhadores de hoje e do futuro.
CurtirCurtir