A liberdade de limitar-se: psicanálise e teoria do poder
O moralismo que deu luz ao nosso momento atual entrou em colapso. O princípio de autolimitação foi trocado pelo modelo no qual a liberdade é exercer todo o poder que se pode.
Por Christian Ingo Lenz Dunker.
A psicanálise desenvolveu uma pequena teoria prática sobre o poder. Quando alguém procura a nós, psicanalistas, em geral este alguém está questionando suas posições e decisões na vida. Por isso mesmo abre-se para ouvir, pedindo que o outro lhe dê alguma direção, uma pista e até mesmo um conselho sobre a pergunta fundamental: o que fazer? Esse pedido não é apenas uma demanda formal, como a que fazemos para um consultor financeiro ou jurídico, mas emerge em uma relação de confiança e intimidade, adquirida e formada pela escuta paciente e cuidadosa sobre os aspectos que deram luz da rede de problemas que cercam uma vida. Portanto, estamos nas condições ideais para sugerir e orientar, posição com a qual muitos educadores sonham porque lhes garantiria o trabalho disciplinar que é tão difícil de obter em situações institucionais.
Ocorre que toda a graça e quase toda a arte da psicanálise consiste em renunciar ao exercício deste poder que o próprio paciente nos incita e nos pede para praticar. É porque nós não agimos com o poder que nos é atribuído, entendendo que a natureza dessa atribuição é por si só problemática, que a psicanálise transforma o poder imaginário da sugestão em autoridade simbólica da transferência. Nós não o fazemos, contra o pedido e a demanda, por vezes explícita, de nossos pacientes. Nós não vamos para a cama com eles, não usamos nossas informações para obter benefícios indiretos, não nos associamos nem empreendemos nada com eles, muito menos nos satisfazemos em sermos amados como uma imagem sábia ou benevolente. Todo o poder que a situação nos confere, com exceção do poder de contribuir para a transformação do próprio paciente, nos é interditado.
Ora, todas as atividades humanas que dependem de situações análogas deveriam seguir a mesma regra. Ou seja, padres e pastores nunca deveriam usar a autoridade que lhes é concedida para indicar candidatos ou eles mesmos se apresentarem como postulantes a cargos representativos. Também médicos e professores jamais deveriam aproveitar-se desse tipo de situação para extrair benefícios secundários da relação de tratamento ou de ensino para criar laços secundários. A liberdade que se exerce nessas atividades é dada pelo limite que se escolheu.
Quando acompanhamos a reforma política, quando vemos a discussão sobre os ditos “dez pontos contra a corrupção”, quando examinamos as posições recentes de nosso sistema judiciário, encontramos uma inversão direta e regular desse princípio de autolimitação, sem que, curiosamente, ninguém o invoque como uma plataforma explícita e crivo de avaliação das práticas políticas. Tudo se passa como se a complacência cultural tornasse esse ponto ocluído e nublado. Nenhuma marcha contra a corrupção, nenhuma transformação institucional, nenhum uso da força popular e institucional que aparentemente tinha isso como motor de transformação.
Parece a simples vergonha do ingênuo que, percebendo-se manipulado, quer mudar de assunto, esquecer a raiva e partir para outra. Mas a situação atual é extremamente pedagógica. Ela coloca em consideração a situação na qual alguém pode exercer seu poder – não há nenhum direito a impedi-lo, nenhum regulamento a constrangê-lo, nenhuma retaliação vai puni-lo –, mas mesmo assim sabemos que ele não deve usar o poder que tem. A situação ecológica e o consumismo auto e hetero devastador não terão tratamento sem essa reversão fundamental em que entra em cena a autolimitação. Pouco se percebe que essa limitação, justamente por ser contingente, é um ato supremo de liberdade. O modelo de ação, assim estabelecido, tem um profundo efeito moral, de ação capilarizada sobre os subordinados. Ele recria as relações de poder como relações de autoridade e respeito. O limite confere a liberdade – uma das teses menos conhecidas de Lacan.
Contudo, não é assim que pensamos usualmente a liberdade. Talvez isso ocorra porque quando se tem muito pouco, quando os meios materiais são exíguos, não conseguimos exercer as oportunidades de renunciar ao gozo para obter efeitos de liberdade em termos da lei do desejo. O segundo problema aqui é que tendemos a nos achar idiotas por seguir esse modelo enquanto todos os outros à nossa volta se beneficiam do modelo contrário; de modo que, para não ficar para trás, somos impelidos para frente, mesmo que diante de nós exista um precipício.
Mas, atenção: renunciar ao gozo não é renunciar aos prazeres, levar uma vida frugal, dentro dos limites da parcimônia. Ainda que essa possa ser uma opção individual, a verdadeira oposição não é entre hedonistas e sacrificados, mas entre aqueles que, diante do poder, podem escolher outra coisa e aqueles para os quais o poder se torna uma coerção e um gozo, um exercício compulsório. Diante da regra “se é permitido então, para mim torna-se obrigatório”, é possível responder: “justamente porque é permitido que, para mim, não se tornará obrigatório”.
A prática continuada da heterolimitação (limitar os outros) nos torna vulneráveis à corrupção. Isso ocorre porque a liberdade não é uma experiência individual. A liberdade não é apenas a liberdade de comprar ou de, diante de escolhas pré-estabelecidas, fazer opções. Isso vale para os que pouco têm. Muito se critica os governos petistas porque eles investiram no consumo das famílias, em vez de priorizar áreas mais básicas como educação e fundamentos infra estruturais da economia (como saneamento básico). A crítica é correta, contudo ela deveria ponderar que pessoas em situação de miséria ou de fome estão em condições extremamente adversas para entender e praticar o princípio da autolimitação. Isso ocorre porque, neste caso, é a realidade que, de fora, lhes aparece impondo constantemente limites. Portanto, facultar o consumo, menos do que uma estratégia economicamente desastrosa, deve ser entendido, também, como uma aposta ética interessante.
Para os que muito têm, essa desculpa não vale. Estar à altura simbólica do patrimônio econômico que se tem implica separar-se do lema de que “a ocasião faz o ladrão” (logo, tu és já um ladrão), ultrapassar a fase na qual minha educação depende da sua (logo, não tens educação alguma), implica poder contar a história do seu dinheiro, sem vergonha (a pontuação escolhida aqui, pelo leitor, revelará algo de sua própria posição na matéria). Aquele que precisa vigiar ao máximo as ocasiões para extinguir os bárbaros e ladrões, é incapaz de escolher seus próprios limites. Caro, custoso e ineficiente. Tem que ser feito, mas é a opção mais simples, não a melhor. Infelizmente, as práticas correntes hoje em dia em termos de recursos humanos e de planejamento de negócios, reunidas em torno do lema da austeridade, da gestão otimizada, da redução de custos, também sofrem do mal da impossibilidade de autolimitação. Onde estão os sócios dispostos a limitar seus ganhos hoje em vista de um formato mais viável de desenvolvimento amanhã?
É isso que torna o discurso de Trump tão difícil de aceitar quando ele se retira do acordo internacional para suspender emissão de poluentes. Trata-se do exercício do poder porque ele é poder. Se posso construir um muro, por que não? Se posso atacar a Coréia, por que não? Versão nacional: a reforma da previdência é necessária, por mais dolorosa que seja, mas ela é de fato uma autolimitação, ou o Estado está apenas limitando os outros para deixar de limitar-se a si mesmo? Limitar-se a si mesmo não é reduzir a extensão dos projetos sociais, e sim suspender o uso do fisiologismo, da liberação de verbas para deputados em troca da manutenção do mandato. É porque sabemos que a autolimitação é crucial que somos tão facilmente enganados pela retórica dos cortes, das reduções e do desinvestimento.
Quando vemos, a céu aberto, deputados que deviam pensar formas de autolimitação, para criar regras que no futuro beneficiarão a todos nós, trocarem o futuro possível pelo presente de autoconservação; quando vemos pessoas comuns aceitarem esse exercício da incapacidade de se autolimitar, como se isso fosse a única opção possível, fica óbvio que o moralismo que deu luz ao nosso momento atual entrou em colapso. Fica clara a substância obscena da qual ele era feito. Não se tratava de “tirar Dilma”, como início de uma reforma baseada na autolimitação do poder, que subsequentemente tiraria Temer, seguido de “todos os outros”, até que o próprio sistema se visse constrangido a exercer a autolimitação que dele se espera.
O princípio de autolimitação que estamos todos, direita e esquerda, dispostos a apoiar, assim que tivermos mostras reais de quem o representa, foi trocado por outro modelo de liberdade: o modelo no qual a liberdade é exercer todo o poder que se pode. Um exemplo caricato disso: no dia da votação do afastamento de Temer, minha caixa postal se encheu de e-mails perguntando se eu não iria me posicionar sobre a Venezuela. Uma amostra cabal de como o processo todo foi pensado a partir da limitação do outro, que chega ao deslocamento bizarro de preferir preocupar-se em limitar outro país, ao invés de ocupar-se da nossa própria autolimitação. Prefere-se insistir na criação de inimigos petistas e esquerdistas, que precisam ser limitados em nossas universidades em vez de questionar o corte de verbas para ciência e pesquisa. A retórica de que nosso problema é que o outro está gozando demais serve para um tipo de liberdade que deveria se chamar de prisão domiciliar.
Outro exemplo. Os que dizem que não houve golpe pensam segundo o princípio da liberdade positiva. Isto é: “se está na lei, pode. Se pode, então deve. Se deve, e nos é conveniente, então que se faça”. Alguns, mas não todos, que dizem que houve golpe estavam em dúvida razoável quanto à hipótese de que a liberdade negativa podia sim estar em jogo nesse movimento. Por isso, me mantive relativamente quieto quanto a este ponto durante os primeiros tempos da experiência Temer.
A única vantagem de Temer, aquilo que podia tê-lo transformado em um herói trágico inesquecível, é que ele poderia ter usado a “ocasião” de exceção para se autolimitar. Fazer reformas políticas drásticas, criar cláusulas de barreiras para partidos, estabelecer voto distrital, suspender manobras e acordos seculares em torno de juros, tributação orquestrada e extorsiva, aprovar leis contra a corrupção (que são tão mais eficazes porque mostram que o poder é capaz de se conter, do que pelo medo que inspiram nos meliantes profissionais). Ele podia fazer o que se esperava dos tiranos na Grécia antiga, mas – e isso dá o sabor apequenado ao seu reinado e aos que, silenciosamente o apoiam – preferiu a liberdade da heterolimitação. Ressurgiu assim o princípio covarde da autoconservação, que pensa pequeno, que nos ameaça com o futuro próximo do desequilíbrio da economia, que só consegue imaginar, medrosamente, reformas que imponham regras aos outros. E isso tudo, vejam só, em nome da liberdade de comércio e da redução do Estado.
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UMA PSICOPATOLOGIA DO BRASIL ENTRE MUROS
Novo curso com Christian Dunker na TV Boitempo!
A TV Boitempo dá início a partir desta sexta-feira, dia 25/8, à publicação de uma nova série ministrada pelo psicanalista Christian Dunker. Ao todo serão sete aulas dedicadas a atravessarem, capítulo a capítulo, a leitura do livro, Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros, obra vencedora do último Prêmio Jabuti.
As aulas são gratuitas e abertas ao público em geral! Inscreva-se no canal e acompanhar o curso em primeira mão clicando aqui.
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Christian Ingo Lenz Dunker é psicanalista, professor Livre-Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Analista Membro de Escola (A.M.E.) do Fórum do Campo Lacaniano e fundador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP. Autor de Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (AnnaBlume, 2011) vencedor do prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 e um dos autores da coletânea Bala Perdida: a violência policial no Brasil e os desafios para sua superação (Boitempo, 2015). Seu livro mais recente é Mal-estar, sofrimento e sintoma: a psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na categoria de Psicologia e Psicanálise. Desde 2008 coordena, junto com Vladimir Safatle e Nelson da Silva Junior, o projeto de pesquisa Patologias do Social: crítica da razão diagnóstica em psicanálise. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
Mistura muito as coisas.
Baseia-se em algo inventado misturado com outro algo inventado. Nenhum provado.
Não é honesto. Quer falar de política, faça-o diretamente, e não por meio de delírios ilógicos.
Tem uma verbosidade que dá pra cortar enormemente.
Sobra imaginação, falta realização e realidade.
Faz tudo oposto ao que inventivamente escreveu. Meteu-se em áreas diversas, de intuitos excusos, usando dos “estudos” que tem.
É um delírio e um meta-delírio.
E não é mais do que se espera de um “professor” da usp.
E é por isso que nada que presta sai da faculdade, e o País é excluído internacionalmente, quando não é visto como uma grande palhaçada, de palhaços risonhos implorando lugar no picadeiro.
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Quanto ódio em colega. Exalando.
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Obrigado, Dunker.
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vivemos em um pais sem identidade: o pobre se julga classe média, a classe média se sente classe alta, estes, da dita cuja, se consideram ricos. E os ricos donos dos monopólios aplaudem toda essa farsa que só os fortificam.
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Acredito que a psicanálise dá muita ênfase aos fatores subjetivos e pouca as condições objetivas, que em determinadas condições podem ser muito mais importantes.
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Lente interessante do texto.
tangencia aspectos relevantes do momento atual.
Gostei
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