Lembrar Benjamin
Lembrar Benjamin significa admirá-lo. Não uma admiração contemplativa, mas como afeto e encantamento com a potência de seus escritos, atuais porque organicamente colados à cultura, ou melhor, à sua crítica.
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Por Carlos Eduardo Rebuá.
Eu vim do avesso,
Reverso do que é aceito.
[Sinto Encanto, Paulinho Moska]
Walter Benjamin foi o marxista que da maneira mais sensível buscou auscultar o mundo da experiência sob o capitalismo, imergindo nele – em nossa perspectiva –, sob três morfologias: a do flâneur, a do narrador e a do colecionador, que traduzimos como três prismas singulares de diagnose das catástrofes modernas, quais sejam a experiência, a rememoração e a permanência, esta última no sentido da preocupação com a coisa que se guarda para que não se perca.
Nenhum outro intelectual da dialética materialista impregnou na temporalidade um baixo-alto relevo capaz de indicar, num Jetztzeit ainda mais fragmentado que aquele dos anos 1920 e 1930, o que vai mal na cultura, o que estamos perdendo a conta-gotas e o que existe apenas sob fenótipos fantasmagóricos.
À tríade arquetípica apontada acima ousamos acoplar as esferas mais nítidas do pensar benjaminiano, discutidas por seus inúmeros intérpretes: o marxismo (experienciar: a práxis), a teologia judaica (rememorar: o rito) e o romantismo (manter/guardar: a crítica). A própria articulação destes campos é uma marca originalíssima legada pelo ensaísta alemão, ainda hoje debatida e de difícil leitura. Todavia, ainda que num arriscado passo – suscetível de ser compreendido como síntese apressada –, buscamos uma aproximação dos tipos humanos, das concepções de mundo e dos verbos no infinitivo aqui delineados, almejando, quem sabe, epigrafar Benjamin nos 125 anos de seu nascimento, completados em 15 de julho deste ano.
Lembrar Benjamin significa admirá-lo. Não uma admiração contemplativa, mas como afeto e encantamento com a potência de seus escritos, atuais porque organicamente colados à cultura, ou melhor, à sua crítica. Adorno sinalizou o orgulho e a estima pelo amigo em cartas que trocaram, sobretudo na maturidade deste. Admiramos, muitas vezes, aquilo que nos impacta imprimindo uma dificuldade de classificação à primeira vista, como uma música de ritmo estranho ou um filme que não entendemos, ainda, mas temos a sensação que isto ocorrerá em breve, tamanho foi o impacto em nós. É recorrente a percepção da sedução de Benjamin em seus primeiros leitores ou ouvintes, na arquitetura ou na filosofia, na história ou nas artes, nas epígrafes ou nos textos mais densos: gostam, mas é comum não saberem ao certo narrar para alguém, de forma imediata, porque aquilo lhes tocou, porque querem ler o autor novamente ou parar ali, naquele exato ponto do primeiro contato, do primeiro flerte. O filósofo de difícil classificação nos exige, invariavelmente, um tempo de decantação.
A perspectiva dos dominados e esquecidos, a ruptura com o tempo linear-uniforme, a defesa da experiência como partilha e sentido, sua antevisão da perda na crítica radical do capitalismo como modo de vida, a percepção da crise, o cuidado com o diminuto e o fugidio, sua atenção para com as crianças compõem um mosaico intrigante que não é qualquer cor, forma e imagem, mas exatamente o movimento constante de uma nostalgia da totalidade, ciente de sua corrosão simbólica e material, mas engajada no ânimo de sua busca.
De volta à costura triangular que realizamos, flâneur/marxismo; narrador/teologia; colecionador/romantismo, refletimos: como é difícil experienciar, lembrar e manter/guardar no desenraizado mundo hodierno, onde a melancolia ganha matizes distintos a cada fração do instante. A psicanálise talvez seja o espaço do contemporâneo que mais se esmera na radiografia destas dores, perdas e nas suturas possíveis em seus tecidos: para viver a modernidade é preciso uma constituição heroica, sinalizou Benjamin. Contudo, a melancolia para ele não é lamento, mas sintoma; não é patologia, mas uma antevisão da perda, visível nas narrativas das filosofias que compõem os pares que indicamos.
Nestas três fontes da reflexão benjaminiana há a preocupação e a atenção com a dissolução, o ocaso, a metamorfose, o processo, o que explica em grande medida suas marcantes presenças na cultura e nas análises sociais do presente. O perfume trazido por Benjamin à estas miradas é, sem dúvida, a perspectiva a contrapelo vinculada à uma compreensão da História como abertura-possibilidade: uma história que não é inevitabilidade, nem do caos nem da emancipação; que não é progresso linear e inexorável, mas imprevisibilidade e constructo humano, seja da tragédia ou da revolução.
Em sociedades cada vez mais isoladas na conexão, reprodutibilizadas na expressão, emudecidas na profusão, enxergar nos escombros rotas de fuga oníricas e concretas significa agir e pensar de forma revolucionária, resistindo. O flâneur, o narrador e o colecionador são os resistentes em Benjamin!
O flâneur é aquele que só existe na multidão, sem se confundir com ela, sentindo as rugosidades do urbano, os laboratórios do capital e do consumo, as mutações do poeta em assalariado, do pequeno burguês em proletário, do homem em coisa (D’Angelo, 2006, p. 242). O narrador é quem mantém viva em nós – rememorando – a certeza de que não há nada perdido definitivamente para a História: o tempo perdido para Benjamin não é o de Proust (o passado), mas o futuro, daí a relevância destes sujeitos sintonizados com a libertação da finitude, uma vez que o que rememoramos não tem limites, como ocorre com o que vivemos, encerrado na esfera do vivido. Por sua vez, o colecionador é o responsável por manter/guardar o fragmento, não como peça perfeita de um quebra-cabeças, mas como o agente que despe os objetos de seu caráter de mercadoria, tomando posse deles (Kang, 2009, p. 232), significando o tátil em certa oposição ao visual, enfatizando o valor de uso em relação ao valor de exibição. O colecionador é um investigador profano do mundo fantasmagórico, resultado do incremento da lógica da mercadoria como alicerce das relações sociais.
Sentir, rememorar e preservar assumem cada vez mais, como seus arquétipos, o lugar de experiência (Erfahrung) – para além das três filosofias que citamos –, que em Benjamin lemos como construção de novos e outros sentidos; como a criação coletiva de pontes que nos conectem à cultura; como a elaboração de histórias e narrativas que significam algo porque tecidas de forma partilhada pelos grandes-pequenos criadores implacáveis, que recomeçam o ciclo do novo a despeito das bombas-relógio das novas formas de barbárie que amedrontam e dilaceram.
Tomando por empréstimo as últimas palavras de Experiência e pobreza (1933), talvez o mais agudo de seus diminutos escritos: ficamos pobres sem Benjamin. Por isso lembrá-lo será sempre a reivindicação intransigente e otimista da inventividade, da radicalidade sensível e da capacidade humana de construir uma existência plena de sentido, na contramão (Rebuá, 2015a, p. 330).
Num contexto de Brasil onde hegemonias, espectros e feridas escrevem e apagam projetos emancipadores e/ou conservadores, resgatar experiências de rosto humano em meio às ruínas de nossa gelatinosa democracia é tarefa para aqueles ainda não desprovidos de espírito, como escreveu Benjamin.
A Boitempo acaba de publicar o essencial Ensaios sobre Brecht, de Walter Benjamin! Até então inédita no Brasil, a obra reúne todos os escritos de Benjamin sobre Brecht, dos ensaios às passagens em seus diários, todos traduzidos diretamente do original em alemão. A edição vem acrescida de textos complementares de Rolf Tiedman, Sérgio de Carvalho e de José Antonio Pasta, orelha de Iná Camargo Costa, além de uma cronologia casada de Benjamin e Brecht. A publicação integra a coleção “Marxismo e literatura”, coordenada por Michael Löwy na Boitempo.
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“O conjunto dos extraordinários ensaios benjaminianos sobre Brecht poderia ser lido como uma análise do sentido, da extensão e do alcance do distanciamento na obra brechtiana, servindo de antídoto e de advertência quanto a sua interpretação redutora.” – José Antonio Pasta
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“Os adeptos das teses social-democratas a respeito do desaparecimento do proletariado, da luta de classes e das próprias classes devem ficar longe deste livro, pois ele é veneno puro. Já o arraial brechtiano no Brasil vai encontrar aqui as maiores preciosidades do Benjamin ensaísta, pois seu assunto é a experiência com o ‘agitprop’, com peças, poemas e narrativas de Brecht e com o próprio Brecht. É livro para panfletar.” – Iná Camargo Costa
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Onde encontrar?
Referências
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Obras Escolhidas, III. São Paulo: Brasiliense, 1989.
___. Experiência e pobreza. In: O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p. 83-90.
___. Ensaios reunidos: escritos sobre Goethe. São Paulo: Duas Cidades: Editora 34, 2009.
D’ANGELO, Martha. A modernidade pelo olhar de Walter Benjamin. Estudos Avançados, vol. 20, nº 56, São Paulo, jan./abr. 2006. p. 237-251.
KANG, Jaeho. O espetáculo da modernidade. Novos Estudos – CEBRAP, nº 84, São Paulo, 2009. p. 215-233.
REBUÁ, Eduardo. Da praça ao solo: um novo chão para a universidade. As experiências das universidades populares de Madres de Plaza de Mayo [UPMPM] e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra [ENFF] em tempos de crise neoliberal na América Latina [2000-2010]. Tese [Doutorado
em Educação] – Faculdade de Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense, 2015a.
___. Benjamin en Gaza: collages de Tesis ‘Sobre el concepto de Historia’ y breves notas. Revista Herramienta [Argentina], nº 56, Año VIII, 2015b. p. 129-139.
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Carlos Eduardo Rebuá é Professor Adjunto da UERJ [História]. Professor Adjunto Credenciado do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF [PPGE], onde ministra curso sobre a vida e a obra de Walter Benjamin. Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Católica de Petrópolis [UCP]. Doutor em Educação pela UFF. Mestre em Educação pela UERJ. Bacharel e licenciado em História pela UFF. Pesquisador do NUFIPE-UFF [Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação]. Coordenador do Observatório de História, Educação e Cultura da UCP [HECO]. Organizador das obras “Gramsci nos Trópicos: estudos gramscianos a partir de olhares latino-americanos” (2014); “Educação e Filosofia da Práxis: reflexões de início de século” (2016), em parceria com Pedro Silva, e “Pensamento Social Brasileiro: matrizes nacionais-populares”, em parceria com Rodrigo Gomes, Giovanni Semeraro e Martha D’Angelo (2017). Dele, leia também, Hereges marxistas: similaridades e permanências, sobre Walter Benjamin e Antonio Gramsci, Sobre Sheherazades, Batmans e demônios, e “Muros e silêncios: o ataque ao Charlie Hebdo em perspectiva ampliada“, no Espaço do Leitor do Blog da Boitempo.
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Excelente texto! Bem escrito e preciso!
Parabéns professor.
Abraço saudoso.
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Republicou isso em Exousia.
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Ainda em tempo…
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