A esquerda diante do poder: do trágico ao cômico para o tragicômico
Tréplica de Edemilson Paraná ao comentário de Gabriel Tupinambá a seu artigo sobre "Três dimensões da tragédia da esquerda no início do século XXI".
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Por Edemilson Paraná.
“Vou fazer com que seja uma peça mista: com que seja uma tragicomédia porque não acho certo que seja uma comédia uma peça em que aparecem reis e deuses. O que vou fazer, então? Como também um escravo toma parte nela farei que seja, como já disse, uma trágico-comédia.” (Plauto, Anfitrião, ou Júpiter em disfarce, Ato 1, Prólogo).
O desafiador comentário de Gabriel Tupinambá a respeito do texto que publiquei recentemente aqui no Blog da Boitempo traz provocações que escalam a discussão em complexidade, nos convidando a mudar aqui o gênero narrativo quanto à situação atual das esquerdas: da tragédia à comédia. Acolho como pertinente grande parte de seus desenvolvimentos, mas aponto que, de modo a fazerem mais sentido, estes precisam ser ajustados de tal forma que se articulem à problemática das esquerdas diante da disputa pelo poder e acúmulo de força social – algo que nos coloca, por fim, face ao tragicômico de nossa situação.
Cabe a nota, antes, de que, tanto neste quanto em meu primeiro artigo, mais do que uma construção formal e conceitualmente acabada, procuro oferecer elementos ainda precários para um debate político que, em um quadro de crise permanente, tem encontrado inúmeras dificuldades para se desenrolar entre nós. Trata-se, então, e antes de mais nada, de um experimento. Dito isso, previamente ao desenvolvimento de uma contra argumentação, cumpre resgatarmos rapidamente a polêmica em tela.
Um resgate da polêmica
Depois de meu diagnóstico inicial sobre a divisão da tragédia das esquerdas em três dimensões fundamentais – simplificadamente: esquerda parlamentar, esquerda tradicional e esquerda fragmentária –, Tupinambá avalia criticamente tal categorização, vinculando-a respectivamente às dimensões sociais correspondentes aos domínios do Estado, do capital e da cultura. Feito isso, o autor desenvolve sobre aquilo que sustenta como uma já existente complementariedade trágica entre os três tipos de esquerda, argumentando que, em verdade, o problema da unidade das esquerdas só surge historicamente porque já está, de algum modo, e contraditoriamente, resolvido. É que, para ele, a fragmentação das esquerdas revela uma complementariedade oculta de seus vícios e virtudes, aqui compreendidos como inseparáveis. A partir deste ponto de vista, desconfia da possibilidade de se descartarem os vícios para se manterem as virtudes de cada uma dessas esquerdas – especulação que apresento em meu primeiro artigo.
Daí o autor passa à apresentação de três hipóteses para o tratamento do problema. “Se existe efetivamente uma unidade complexa na esquerda, que é percebida teoricamente por cada uma de suas partes como uma desunião, então uma primeira hipótese seria a de que experimentamos hoje os efeitos de um déficit teórico”, argumenta. Como num encadeamento deste raciocínio, aponta que “uma segunda hipótese é que, do ponto de vista da irredutibilidade dessas lógicas de intercâmbio social, a divisão da esquerda em três grandes correntes poderia ser entendida um passo errado, mas na direção certa. (…) Nesse caso, seria necessário imaginar um outro critério do que é unidade na esquerda – um modelo de avaliação mais parecido com aquele que aplicamos à análise do sistema capitalista atual, do qual falamos sem grandes problemas como objeto de uma referência comum, ainda que saibamos quão heterogêneo, desconjuntado e sujeito a contingências esse está”. O que, por fim, sustenta o autor, “nos traz a uma terceira hipótese, que diz respeito às organizações políticas. Pois as três categorias escolhidas por Paraná para balizar o panorama das correntes da esquerda atual – a análise ideológica, epistemológica e política – tocam todas, ainda que indiretamente, numa quarta categoria, a de ‘sujeito’”. Ao que complementa: “uma terceira hipótese seria, portanto, de que, por trás do problema epistemológico de reduzir o esquema causal das formações sociais a uma só esfera da vida, talvez encontremos nosso desejo de deslocar para os outros a causa de um sofrimento que, afinal de contas, fomos nós que inventamos” – sofrimento este vinculado ao modo de cada fração da esquerda em lidar com a tensão entre formas de “reprodução social” e formas de “transformação social”.
Depois de desenvolver tais hipóteses, Tupinambá encerra sugerindo que a tarefa a ser perseguida reside, então, em uma disputa pelo “controle dos meios de produção de problemas”, de modo que, ao invés de pautarmos nossa ação pela busca de sínteses ou resolução final de contradições, apostemos em um deslocamento que nos possibilite, distintamente, atuarmos nós mesmos na produção de novos problemas e contradições; “isto é, menos a criação de um novo sujeito político, mas a criação de um novo outro para esse sujeito” – a ser, algo que se traduza em uma mudança na forma como as organizações e coletivos se orientam em relação às contradições da esquerda. Desse modo, o “comunismo” apareceria ironicamente como “um nome que vai ganhar realidade histórica primeiro como um método de tratamento das contradições ‘não-antagônicas’ dentro da esquerda, antes de se constituir como uma estratégia de transformação da realidade social como um todo”. Caminho este que o autor, no encerramento de sua intervenção, caracteriza como uma mudança de gênero narrativo (da tragédia à comédia), uma vez que “conseguir o que a gente deseja, mas não o que a gente quer, é a própria forma da comédia”.
A esquerda e o poder
Ao longo deste texto me concentrei especialmente nesta sua última proposição-conclusão, mas seguindo a ordem do próprio comentário, começo pelos problemas da tipologia das esquerdas por mim incialmente apresentada.
Cabe observar que autor é feliz quando vincula os três tipos de esquerda às dimensões do Estado, capital e cultura. Trata-se de um passo que vai na direção de tratar um problema que, por razões de economia do texto, fica em aberto em meu primeiro artigo, a ser: a relação desse diagnóstico sobre as esquerdas com uma análise global e complexa da sociedade capitalista em que ela própria habita e realiza suas ações. Há aqui, sabemos, um problema epistemológico clássico, de observação: a esquerda que reflete sobre uma sociedade da qual ela própria é parte e produto, em uma análise que, para complicar, está supostamente orientada pela necessidade de transformar (radicalmente) essa mesma sociedade. Novamente, não temos condições para resolver esse problema aqui. Mas, sabendo de sua existência, é possível intuir a enorme importância do passo analítico que Tupinambá nos convida a dar. Tratarei disso mais a frente.
Ainda que em momento algum eu tenha negado essa possibilidade, e tenha ademais mencionado de passagem essa inter-relação, o autor diagnostica corretamente que “falta no mapeamento proposto por Paraná uma análise da interação entre essas diferentes esquerdas”. O transcorrer de seu comentário sem dúvida complementa essa falta, e tão melhor o faz quando relaciona as três esquerdas ao complexo Estado-capital-cultura – um sistema tal em que as partes, existindo em sua autonomia relativa e irredutibilidade às demais, compõem um todo complexo, inter-relacionado.
Este passo, que assumo integralmente, carrega, ademais, a virtude de limpar o campo de uma possível confusão conceitual proveniente da minha divisão inicial das esquerdas em “tipos”: a de que o método de aproximação que utilizei remete de algum modo à Max Weber. Ainda que, em certo momento, eu tenha perguntado também ao leitor sobre o estatuto conceitual desses tipos (seriam eles “ideais”?), penso que não é disso que se trata aqui. Fala-se, distintamente, de uma estrutura relacional de três polos ou centros de gravitação (forças políticas, que organizam um “campo” de disputas) realmente existentes na “prática cotidiana das esquerdas nos espaços de luta política em que habita” – e a partir desta concebida. E a crítica endereçado ao texto novamente acerta em cheio quando, se utilizando da mesma analogia, problematiza a relatividade das forças de atração que operam nestes polos e entre eles.
Caberia, inclusive, darmos um passo além no argumento de Tupinambá a respeito da inter-relação problemática entre as três esquerdas e sua identificação às esferas do Estado, capital e cultura. Isso porque sabemos, por exemplo, que a despeito de buscar no Estado uma forma de controlar o capital, a esquerda parlamentar se alia tática ou estrategicamente a setores do próprio capital e, não raro, mobiliza uma narrativa de nação ao fazê-lo. Vale também para parte considerável da esquerda tradicional, que, a despeito do antagonismo ao capital e da desconfiança em relação ao Estado, em geral continua participando efusivamente do jogo democrático-institucional seja para “disputar consciências”, seja para sobreviver materialmente. Por fim, e não chega a surpreender, sabemos que, a despeito da negação da “política tradicional”, é fundamentalmente ao núcleo duro do Estado jurídico que os mais diversos setores da esquerda fragmentária clamam por representatividade, reconhecimento, proteção, políticas de visibilidade. E poderíamos seguir cavando ainda mais fundo neste buraco da inter-relação complexa e multicausal das diferentes esquerdas face às distintas esferas sociais.
Mas se até aqui a homologia apresentada por Tupinambá caminha para um desenvolvimento sintonizado à minha categorização inicial das três esquerdas, na medida que a leva para mais além, o autor termina por concluir, como já se disse, que “a divisão da esquerda em três grandes correntes poderia ser entendida um passo errado, mas na direção certa”. Ao fazê-lo, no entanto, a conta parece não fechar.
Isso porque, como na tríade Estado-capital-cultura, a adequada divisão das esquerdas em três (simplificadamente: parlamentar, tradicional, fragmentária) não precisa, para existir, negar suas relações de complementariedade e interdependência. Antes o contrário, a divisão nos ajuda, como o próprio comentador aponta, a buscar um entendimento mais complexo e multifacetado das relações que compõe esse todo. Mais do que esclarecer, a “hipótese” em tela faz confundir o problema da epistemologia da complexidade com o da organização concreta das esquerdas em três níveis ou tipos distintos – como se, devido a isso, a esquerda tivesse de ser composta apenas de três tipos de organizações.
Argumentando que precisamos aprender a pensar cada organização como uma imbricação desses três registros, volto a sustentar, então, minha posição: essas três esquerdas existem materialmente no mundo da prática política, mas, naturalmente, suas relações concretas são mais complexas e intricadas do que uma primeira categorização faz parecer. Isso porque envolve também outros aspectos que não foram e não serão aqui tratados. A tipologia, no entanto, segue sendo, defendo, instrumento de uma necessária organização cognitiva para a apresentação do problema em questão.
Em meio a tal defesa da tipologia que sustenta meu primeiro texto, cabe conceder, no entanto, sobre a precariedade de minha sugestão final, otimista, quiçá ingênua, de que descartemos os vícios para retermos as virtudes de cada um dessas correntes. Ainda que me pareça um bom ponto de partida para a reflexão, não há aqui, de minha parte, nenhum apego a esta sugestão provisória. Em minha defesa, cabe lembrar, que apontei expressamente no texto se tratar apenas de um início precário, e ainda especulativo, para o nosso processo (um tanto caótico) de busca por soluções.
Superado este tópico, e assumida a integração problemática das três esquerdas, chegamos finalmente ao que parece ser uma discordância mais importante. Toda a análise de Tupinambá culmina, como se disse, na ideia que devemos conquistar o “controle dos meios de produção de [nossos] problemas”. Sem negar essa fecunda saída, é preciso apontar que um processo social e político de tal monta, não pode ser produto apenas de um cômico desenrolar de contradições finalmente assumidas como nossas. Defendo que esse reposicionamento exige também um enorme acúmulo de força social. E aqui aparece uma palavra estranhamente ausente neste debate: poder.
Novamente, penso que o problema não pode se manter restrito ao idílico mundo de nossa própria comédia das esquerdas. Tratando o que há de mais denso e complexo em questão – o poder, precisaremos dar mais um passo, caminhando para além deste “gênero”. Para retomar Plauto, não há como caracterizarmos impunemente como comédia uma peça que inclui esferas ou personagens tão distintos quanto “reis e deuses” e “escravos” (aqui, o povo, as esquerdas, a luta de classes, etc.). Daí que a análise não possa ficar presa à comédia da esquerda: terá de chegar a tragicomédia do (problema do) poder.
Nos reorganizando em meio ao combate
Assumindo a proposição de Tupinambá de que i) precisamos nos livrar da obsessão em negar ou não reconhecer nossa (da esquerda) própria realidade contraditória para, assim, ii) passarmos a dirigir por nós mesmos a produção de novas contradições, fica a dúvida de como isso pode ser obtido: se por meio de uma mudança de consciência-comportamento, se por meio de uma nova postura teórica, ou se a partir de um tal acúmulo de força social que nos abra acesso ao poder material para fazê-lo.
Poderíamos argumentar, sem prejuízo de sua proposição, que as três ações são necessárias. Mas se for este o caso, segue curiosa a ausência até aqui de questões sobre poder, luta de classes, e acumulo de forças no interior de nossa discussão sobre a situação das esquerdas (o que nos levaria, ao fim, para a esfera da ação tática e estratégica, à arte da política como guerra).
É precisamente este aspecto – diante do qual a condição trágica, mais do que cômica, do fracasso das esquerdas ainda se mantém – que passo a desenvolver. Algo que me permitirá, por fim, sustentar que se assumirmos a mudança de narrativa do trágico ao cômico, proposta por Tupinambá, só podemos fazê-lo, chegando ao tragicômico. Veremos, ademais, que considerado o acúmulo de força social como o objetivo em tela, não estamos diante de um problema (da unidade das esquerdas) “resolvido”, como nos é sugerido, antes o contrário. Explico.
Aprendemos, na esquerda, que, a despeito de várias nuances, a história se faz por meio de rupturas. Mas sabemos igualmente que estas não existem como tais senão no enquadramento de continuidades, inseridas que estão em longas durações. O que nos leva, então, a pensar a mudança social como algo situado na constante tensão entre permanências e impermanências (e aqui cabe resgatarmos o par “reprodução/transformação” social, introduzido pelo comentador para posicionar a tensão central da esquerda nesses termos). Uma revolução, qualquer que seja, não instaura, em um golpe de ocasião ou decreto, uma nova sociedade. As inúmeras estruturas do passado seguem produzindo seus efeitos no presente.
Daí a dimensão trágica desta nossa jornada: o dia seguinte da mudança social nunca é como planejamos ou imaginamos ser. É algo, em certa medida, sempre incontrolável, cheio de surpresas – muitas delas aterrorizantes. Fracassamos, assim, mesmo quando bem-sucedidos (e em momento algum usei em meu primeiro texto outra definição de tragédia que não esta). A trajetória sinuosa da mudança social nos coloca, então, diante do fato de que uma revolução ou uma grande transformação não é o fim, mas um novo começo para a mesma jornada. Se este é o caso, a proposição de Tupinambá encontra seu lugar. Mas isso só é válido diante do fato que nenhum desses deslocamentos da ideologia e da luta social para outros estágios ao longo da história, podem ser realizados sem um acúmulo de forças, no interior de uma luta social e política concreta, sem um algum tipo de administração trágica de nossa relação para com a monstruosidade do poder.
Em meio a este enquadramento da questão, podemos nos direcionar, então, à tematização do que significa acumular força social. Trata-se aqui da capacidade da esquerda, a despeito de sua heterogeneidade, de movimentar todo o espectro social e político para uma certa direção, deslocando ou reinstaurando o campo de combate, os conflitos e as contradições sociais em outro patamar – ou, como quer Tupinambá: “criando novos problemas e contradições”, algo para o qual se faz necessário poder material.
Diante deste objetivo, e dado que muito indica não estarmos atualmente em período de acúmulo de forças, a atual unidade das esquerdas está longe de representar uma resolução para o problema aqui colocado (e claro, novamente, isso dependerá aqui do que definimos como “resolver” o problema). O fato é que o transito interno entre as esquerdas, mencionado pelo autor, não tem se traduzido em força social e política, antes ao contrário. O problema, então, distintamente do que argumenta Tupinambá, ainda está por resolver. Dito de outra forma, cabe passarmos aqui dos meios aos fins. Ou seja, se o fim em questão for centralmente a unidade das esquerdas, podemos concordar com Tupinambá de que o problema já está de fato resolvido. Mas se, distintamente, a unidade das esquerdas for vista apenas como um meio, mais um dentre outros, para o acumulo de força social, então ainda que “alguma” unidade entre as esquerdas seja de fato verificável, esta não atinge sua finalidade e, assim, não passa no crivo de uma real solução para o problema.
Talvez não estejamos no estágio em que a bem-sucedida resolução deste problema ironicamente se revela já como fracasso, mas quem sabe ainda um passo atrás – em uma espécie de travamento operacional, sem horizonte, e sem visão de futuro, presos à administração resignada do presente e à celebração ansiosa de nós mesmos.
O problema fundamental, então, não é apenas ou centralmente o problema da migração entre as diferentes esquerdas, mas para fora dela – algo que reforça o processo de erosão mais ampla de sua força e capacidade de adesão social; de sua possibilidade de apresentar e construir algo passível de crédito por parte dos demais integrantes da sociedade, aqueles ainda não aprisionados nesse nosso (curto) circuito. Posto de outro modo: o problema da fragmentação das esquerdas só é um problema se vinculado a nossa incapacidade em acumular poder social. Não fosse isso e este sequer seria um problema (político) relevante. Ocorre que, na prática, em toda a sua heterogeneidade, e ainda que por razões distintas, as esquerdas têm fracassado retumbantemente em sua disputa da sociedade. Mapear as razões que tem nos mantido nesse estado sustentado de derrota política torna-se uma tarefa da mais alta importância.
Muitos esforços importantes têm sido realizados neste sentido. Analises críticas das transformações na estrutura social e econômica, das reconfigurações políticas, das transformações culturais das últimas décadas, todas tem caminhado, com bastante sofisticação, nesta direção. Nos unindo a estas, caberia aqui, e certamente Tupinambá concordará, pensarmos as esquerdas a partir das transformações na sociedade capitalista e, em via oposta, as transformações do capitalismo a partir também dos desenvolvimentos das lutas sociais e, assim, da atual situação das esquerdas. Ainda que sejamos bem-sucedidos nesse hercúleo exercício de investigação político-intelectual, caberá, a partir daí, concebermos novas formas de organização política conectadas a seu tempo e, desse modo, a articulação de uma ação consequente (programática e pragmática) com os objetivos políticos estratégicos em questão. Já que o desenrolar de uma comédia na presença dos mais sublimes personagens configura algo talvez mais trágico do que a própria tragédia, aceitar que essa é uma tarefa trágica, ou melhor dizendo, tragicômica, é fundamental.
Mas se a “solução” para o problema da fragmentação da esquerda já esta dada, como nos diz Tupinambá, o que isso significa em termos dos objetivos acima desenhados? Ou seja, podemos aceitar aquela sua proposta de encaminhamento final para a questão, mas apenas se a produção desses “novos problemas e contradições” de que se fala for direcionada por alguma força, e para alguma direção, já que não parece crível conceber que um acúmulo de forças dessa monta, mesmo no interior desta tragicomédia, se dê por acidente. Tudo somado, podemos, em meio a esta jornada, até conseguir o que desejamos ao invés daquilo que queremos, mas permanecerá o desafio de nossa relação trágica com o poder. Como equacioná-la?
Encontrando uma direção
Para onde ir? Ao fim e ao cabo, voltar a esta pergunta (sem resposta) pareceria a pior e mais decepcionante forma de finalizar essa reflexão. Ocorre que, nomeada ou não, como uma ausência eloquentemente presente, é esta que vem dirigindo nosso debate até aqui. Olhemos, então, dentro dos olhos da besta.
Deslocada face à reconfiguração estrutural no mundo da produção, do trabalho e das sociabilidades, enfraquecida diante do avanço neoliberalizante e da transformação do Estado, desorientada politicamente em meio à queda do muro e à globalização, a esquerda, nos três tipos aqui discutidos, deixou de ser perigosa. No caso das esquerdas parlamentar e tradicional, se está refém de um passado que não voltará. E quando não é este o caso também para a esquerda fragmentária, sua visão de futuro oscila entre o desespero e crença ingênua. A realidade é que perdemos nossa bússola política, um horizonte político emancipatório mais ou menos compartilhado, mínimo que seja, em torno do qual nos conectamos e disputamos (também entre nós) a sociedade.
Feito esse diagnóstico, como conceber, então, uma força política capaz de suportar a realidade tragicômica de nossa relação com o poder, e ainda assim puxar com radicalidade as cordas da transformação social? Como pensá-la dentro e fora de sua composição social, num processo que é também um processo de meta-transformação (as esquerdas mudam com a mudança social)? Aí reside um desafio importante, e algo que nos traz de volta à necessidade de pensarmos a esquerda no interior do exercício de pensar a própria sociedade.
Afinar nossos diagnósticos, leituras, nossa “analise concreta” sobre a realidade social e econômica do capitalismo presente certamente é uma necessidade, ainda que não autossuficiente. Junto a isso, será necessário, experimentarmos, conspirarmos, concebermos, organizarmos novas formas mecanismos e instrumentos político-organizativos para o acúmulo de força social. O problema do conhecimento da realidade se encontra, então, como quer o comentador, ao problema da organização política – mas uma organização diretamente comprometida com seu papel na dinâmica de luta pelo poder social.
Quer dizer, a esquerda atual é o que é não apenas porque responde a problemas e restrições reais mais ou menos conhecidas, mas porque o faz de determinadas formas e não de outras (igualmente possíveis) – algo que volta a jogar em nosso colo o problema da organização política (suas formas, tipos e modelos). Mas essa combinação de problemas, ou de produção combinada de novos problemas e contradições, só fará sentido se formos capazes de calibrar de alguma forma a bússola que utilizaremos nesta jornada, se conseguirmos produzir um horizonte político compreensível para ação emancipatória, conectado às necessidades e condições do presente.
Assim armados, a disputa e construção de um novo senso comum emancipatório deverá ser traduzida nos termos da luta política corrente, na articulação de objetivos e tarefas táticas e estratégicas para que nossa virtude na ação tenha a possibilidade de encontrar as janelas de fortuna que o movimento de contradições sociais possibilita. Construir um programa político crível e internamente coerente que combine ações de combate dentro do capitalismo e face ao capitalismo se combina, em meio a isso, como um empreendimento necessário. É muito a ser feito, claro – mesmo que, novamente, isso ainda seja apenas mais outra forma precária e especulativa, de continuar alimentando o fogo deste nosso urgente debate.
Nos resta pouco para além dessas linhas gerais, é certo. Alguma garantia de que vão funcionar, de que, ao fim, a “história estará do nosso lado”? Talvez a mais relevante conclusão nesta tragicômica troca de ideias seja justamente o fato de que faz pouco ou nenhum sentido apostarmos nisso. Do outro lado, a história nos espera apenas com o imprevisível.
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Edemilson Paraná é doutorando em Sociologia pela UnB (Universidade de Brasília), e atualmente pesquisador visitante na SOAS – University of London. É autor do livro A Finança Digitalizada: Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional (Insular, 2016). Dele, leia também no Blog da Boitempo os artigos “Brasil 2016: preparando a (nova) gestão de uma crise permanente“, “Brexit: o Reino Unido sequestrado pela extrema-direita?“, “O Brexit e as esquerdas: as contradições da razão europeísta“, “Um novo tsunami financeiro global a caminho?“, “Da direta à esquerda: a crise diante da falta de um projeto de país“, “O Brasil no pêndulo das elites: entre liberalismo submisso e desenvolvimentismo autoritário“, “Disputar o povão: neopentecostalismo e luta de classes“, “As raízes da escalada conservadora atual” e “Lula, o cerberus da política brasileira“.
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