Da tragédia à comédia

Um comentário sobre "Três dimensões da tragédia da esquerda no início do século XXI", de Edemilson Paraná

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Por Gabriel Tupinambá.

Um grande mérito da contribuição de Edemilson Paraná publicada aqui no Blog da Boitempo foi ter abordado as “três dimensões da tragédia da esquerda” a partir de categorias e métodos de análise elaborados pela própria esquerda, focando na “prática cotidiana das esquerdas nos espaços de luta política em que habita”. A famosa frase de Marx de que “a humanidade só se coloca problemas que é capaz de resolver” poderia ser relida nessa mesma chave: talvez o aspecto realmente central dessa formulação seja que a superação de um obstáculo externo a um dado sistema dependa de sua reconstrução como um objeto dentro desse mesmo sistema. Afinal, até hoje quem melhor “resolveu” os problemas do capitalismo foi o próprio capitalismo: e não apenas por se mostrar plástico o suficiente para lidar com seus próprios limites históricos, mas porque mesmo soluções mais progressistas para problemas formulados pelo capitalismo permanecem compatíveis com esse sistema. Talvez haja uma espécie de epistemologia política a ser extraída dessa citação do Marx: o capitalismo resolve problemas capitalistas – uma alternativa não-capitalista deveria, pensando assim, buscar formular dentro de seu próprio campo os problemas que gostaria de solucionar.

Portanto, tomar os problemas da esquerda como objeto de investigação não deveria tanto significar fazer um balanço de vitórias e derrotas no confronto com um adversário – ainda que isso também precise ser feito num segundo momento – mas principalmente disputar o “controle dos meios de produção de problemas”, para que a formulação dos nossos obstáculos faça uso da mesma trama conceitual que queremos usar para tecer nossos próximos passos. É nesse sentido que entendo o mérito de recortarmos a situação da esquerda atual do ponto de vista da “prática cotidiana”, isto é, do ponto de vista do posicionamento concreto de diferentes tendências em relação às esferas da vida econômica e política que buscam afetar. E de fazê-lo com suficiente rigor para, uma vez escolhido esse objeto de análise, submetê-lo a um estudo que diferencie esses “tipos ideais” de suas diferentes misturas em casos concretos e que mapeie cada “corrente” como a imbricação de diferentes níveis – se nesse caso, até por restrições de espaço, Paraná se restringe aos níveis “ideológico, epistemológico e político”. O importante é que essas são ferramentas de análise que nós aplicaríamos à crítica de nossos adversários políticos e às “análises concretas de situações concretas” alheias a nossa própria composição política – nada mais correto, portanto, do que aplicar a nós mesmos o rigor crítico que aplicamos ao resto do mundo.

Segue-se, então, a caracterização das “três grandes forças de gravitação” responsáveis pela composição das diferentes correntes da esquerda atual – para simplificar: a esquerda parlamentar, a esquerda tradicional e a esquerda fragmentária.

O que salta à vista logo de saída é que cada uma parece se articular a partir de um pólo diferente do complexo social: a esquerda parlamentar organiza-se em torno do Estado, a esquerda tradicional, ou radical, em torno do Capital e a esquerda fragmentária orienta-se pela Cultura. Assim, Paraná aponta como a primeira “encontra centralmente no Estado a razão e causa maior do poder”, a segunda mantém “seu caráter anti-capitalista” e a terceira “dá precedência à dimensão ético-comportamental”. E sugere também que é a partir dessas diferentes interpretações do “ponto sintomal” da estrutura social que cada tendência da esquerda articula seus aspectos ideológicos (sua teoria do poder), epistemológicos (sua análise crítica da realidade) e políticos (suas formas de organização e suas pautas). É certamente uma boa caracterização da maneira como a tragédia da esquerda aparece para nós hoje, que oferece um panorama bastante útil para a descrição e distinção das organizações e movimentos políticos atuais. Mas acredito que é possível encontrar um fio solto aqui e que, se puxado, poderia colocar muitos aspectos desse mapeamento em questão. Vou introduzí-lo a partir das metáforas que o próprio texto utiliza.

Primeiro, o problema da tragédia. É importante lembrar que o gênero trágico não é apenas aquele que foca nos infortúnios ou nas limitações da humanidade, mas antes uma forma de dramatização em que o infinito, ou o mais-além, coincide com a finitude ou a limitação. Édipo não só quer escapar de seu destino, como a princípio consegue – vai mais além – mas “encontra seu destino na estrada que tomou para evitá-lo”: é seu sucesso em escapar do oráculo que realiza a profecia do oráculo, e portanto seu fracasso. A grande tragédia nunca é só a tragédia de fracassar e não conseguir o que a gente quer, mas acima de tudo a tragédia de conseguir o queremos e mesmo assim fracassar. Nesse sentido, talvez fosse interessante não entender o destino trágico da esquerda atual como um fracasso em “reter as virtudes e descartar os vícios” de cada vertente, tragédia portanto de superar a fragmentação, mas como a tragédia ainda mais impiedosa de que, em sua desconexão, a esquerda atual já está conectadauma dinâmica em que as deficiências de cada corrente alimentam as certezas e funcionamento das demais.

De fato, falta no mapeamento proposto por Paraná uma análise da interação entre essas diferentes esquerdas. O que nos leva à segunda metáfora utilizada, a das “forças de gravitação”. Em física, grandes corpos celestes exercem força gravitacional sobre outros menores, mas também exercem força entre si: a organização de um sistema planetário é condicionada pelo equilíbrio entre corpos que se atraem mutuamente, de modo que se a gente tivesse um sistema com três planetas, cada um com várias luas (lutas?) em órbita, teríamos ainda que considerar a influência de um planeta sobre os demais, e de cada um dos demais sobre os outros, etc. E é do ponto de vista dessa interação que eu gostaria de retomar ao panorama proposto em Três dimensões da tragédia da esquerda.

Considerando essa dimensão da análise, vemos que algumas das características de cada uma das tendências da esquerda não parecem decorrer diretamente da lógica de cada um desses “atratores” sociais fundamentais – Estado, Capital, Cultura – mas sim da insistência, comum a todas as correntes, de subsumir as outras duas forças sob uma terceira. A esquerda parlamentar acreditando na capacidade da reforma do Estado de resolver as contradições do Capital e das comunidades, a esquerda tradicional acreditando que a mudança sistêmica anti-capitalista altera por si só as contradições na “superestrutura” estatal e cultural e a esquerda fragmentária apostando que a transformação ética e estética da vida cultural bloqueia e subverte as dimensões institucionais do Estado e do Capital. Trata-se de um ponto em comum entre elas, e que nos permite, assim, pensar a conjuntura da esquerda como um complexo organizado e estruturado, com propriedades globais irredutíveis a cada uma de suas partes.

Ideologicamente, esse complexo parece se sustentar a partir da crença de que há uma dimensão da vida social que tem o potencial de resolver as contradições das demais esferas da sociedade. Seja o esquema de transformação social baseado no gradualismo, no modelo insurrecional ou em táticas de resistência e subversão, podemos reconhecer essa mesma propriedade geral. De um lado, ela aparece como a tendência analítica de reduzir os outros modelos de transformação a formas mistificadas de reprodução e manutenção da realidade social vigente. Por outro, como uma ignorância sistemática dos efeitos de seu próprio modelo de atividade e prática sobre as outras esferas da vida social e política, de modo que a emergência de novas ou mais acirradas contradições costuma ser entendida como efeito de uma reação por parte dos adversários políticos, ou de uma incompreensão das massas, e nunca como efeito colateral de um movimento da própria esquerda.

Epistemologicamente, há também um curioso efeito de “feedback” nesse sistema, uma vez que o déficit ideológico descrito acima leva cada uma das correntes da esquerda atual à fracassar naquilo que almejam realizar, fracassos esses que servem no entanto de prova verificável para as demais tendências de que cada uma delas está correta em seu posicionamento e análise da realidade. A esquerda parlamentar se reforça cada vez que, ciente do papel do Estado na organização social, observa como a desconfiança do jogo eleitoral – por parte da esquerda tradicional – e a crítica das instituições – por parte da esquerda fragmentária – acabam por preservar a máquina estatal na mão dos mesmos interesses contra os quais essas duas correntes se organizam em suas denúncias. A esquerda tradicional, por sua vez, também encontra-se justificada em seu puritanismo ou em seu apego às expectativas revolucionárias quando assiste de camarote à implementação de políticas públicas impopulares por parte de governos de esquerda e a inépcia dos movimentos identitários em compor forças políticas para além de seus condomínios. E a esquerda fragmentária, finalmente, ganha ainda mais legitimação ao reconhecer um mesmo impasse subjacente tanto à esquerda parlamentar quanto à esquerda tradicional: por baixo do debate sobre “reforma ou revolução” – em que essas duas se degladiam eternamente – reconhece a recusa, comum a ambas, de pensar uma política que não dependa de uma força cega de normativização e uniformização das culturas e dos corpos. E enquanto existe esse ponto cego comum, a esquerda fragmentária encontra ali o seu objeto de crítica e seu lugar.

O mais importante, no entanto, é o aspecto político, pois é esse que revela o caráter efetivamente trágico da situação. Trágico no sentido proposto acima: há certamente um fracasso da esquerda, mas é um fracasso dentro do qual se realizou aquilo que almejávamos. Pois há uma unidade complexa nessas partes dispersas, uma espécie de trâmite organizacional entre partidos com potencial de disputa do Estado, pequenas organizações radicais e movimentos sociais identitários, onde o militante que toca na contradição interna de um desses componentes encontra alívio e poder crítico em outro deles – ignorante do fato de que a constituição ideológica, epistêmica e política desse outro pólo é parte do problema que garante a existência e a não-resolução da contradição que o incomodou, em sua organização anterior.

Os processos de migração da militância teriam assim uma lógica interna, muito como os processos de migração dos refugiados, que também se tornam inteligíveis quando consideramos as contradições moventes que se deslocam com eles – nas esferas do capital, das nações e dos estados. E, num sentido mais geral, me parece plausível sugerir que, em sua organização, a esquerda atual não faz muito mais do que aprender a lição do capitalismo contemporâneo, em que as contradições de cada esfera social são constantemente deslocadas para as demais: a crise do valor mobilizando tanto a máquina estatal quando o ideário nacionalista para conter os efeitos da “população excedente”, a falência do estado de bem-estar social sendo gerida por um empuxo de privatização generalizada e uma mercantilização da cultura como modelo de inclusão social alternativo, etc…

Esse nível de análise da totalidade da tragédia tem efeitos importantes na hora de pensarmos o que poderia vir pela frente. Logo vemos, por exemplo, que há uma imbricação transversal entre as virtudes e os vícios de cada tendência da esquerda, de modo que não podemos simplesmente sugerir que, jogando fora os vícios, não perderíamos também as virtudes, uma vez que a consistência interna de cada “atrator gravitacional” também se deriva de sua relação crítica com os demais. Não há dúvidas que a pergunta correta frente a qualquer catástrofe é sempre aquela que diferencia o luto da melancolia: ao contrário da resignação depressiva que joga fora a realidade em nome de uma paixão por um ideal perdido, o luto desloca essa divisão para a própria realidade, e pergunta, como o faz o autor de Três tragédias, o que pode ser preservado e o que já está perdido numa dada situação ou num dado investimento pulsional. Mas nem sempre essa divisão recobre àquela entre virtudes e vícios – às vezes o que deve ser preservado se apresenta na forma de um problema, e não de uma solução. E aí cabe a nós justamente formular esse impasse e nos reconhecermos nele.

Certamente, uma maneira de colocar a situação é dizer que a esquerda está dividida em partes que não se comunicam, e o problema seria portanto pensar sua união, a combinação de seus pontos positivos, abdicando dos aspectos negativos que impedem essa formação sinérgica. O que estou sugerindo aqui, no entanto, é que a tragédia atual talvez seja justamente a tragédia de uma esquerda que já está organizada, uma vez que as virtudes de cada corrente só se sustentam a partir dos vícios das demais, repetindo dentro da prática cotidiana das esquerdas um modelo complexo de (dis)solução de contradições que espelha muito bem o funcionamento do mundo em que vivemos. Desse ponto de vista, podemos propor uma interpretação propriamente trágica da citação de Marx, reconhecendo a trágica vitória que habita nossa derrota: nos colocamos um problema (a unidade da esquerda) justamente porque temos os meios de resolvê-lo. Não meios futuros, mas meios presentes, pois a esquerda já o resolveu.

A razão pela qual essa solução não aparece como uma solução do nosso ponto de vista é que, como sugeri acima, trata-se da solução para um problema que se apresenta já formatado pelas formas próprias do nosso sistema social. Ora, como a esquerda tende a utilizar seu arsenal crítico para analisar apenas as contradições “antagônicas”, produzidas e reproduzidas pela sociedade capitalista, e não tem o costume de aplicá-las para pensar nossa própria imersão nessa mesma sociedade, nossos impasses só poderiam mesmo parecer fruto de uma fragmentação ideológico-política desconectada do resto do mundo. E não é à toa que sempre que emerge um efeito irredutível a uma explicação causal observamos um deus-nos-acuda de análises morais, de caráter e fraqueza dos outros perante pressões externas. O que é uma pena, porque, enquanto a análise de um dado fenômeno social encontra “caixas pretas” que a análise crítica precisa contornar, a investigação da organização material (divisão do trabalho, caráter de classe, ideologia, compromissos epistêmicos, etc) da própria esquerda, ainda que traga seus próprios impasses, poderia apreender de maneira diferente – na sua “interioridade” – alguns aspectos da vida social, como num laboratório que simula em condições controladas variáveis de funcionamento mais geral. Há inclusive mais rigor teórico em encontrar contradições numa região do mundo e pensar a transitividade entre essa região e o todo do que fazer o caminho inverso, partindo de um fenômeno que se apresenta em condições descontroladas e derivar daí sua distribuição em regiões afetadas ou não por essa lei fenomênica. Dá para imaginar quão diferente seria o tratamento das contradições sociais por parte de uma esquerda que reconhecesse essas contradições em si antes de nos outros?

Outro aspecto desse mesmo impasse é que permanecemos comprometidos com a ideia de que a vocação da esquerda é resolver contradições – soluções anti-capitalistas para problemas capitalistas, mas também, como sugeri em minha análise acima: soluções anti-estatais para problemas capitalistas e culturais, soluções anti-normativas para problemas estatais e capitalistas, soluções anti-capitalistas para problemas estatais e culturais… – ao invés de aceitarmos a tarefa de propor novas contradições e problemas. Isso não significaria abandonar o mundo às moscas, pelo contrário: produzir problemas e contradições é o que o mundo parece fazer melhor, então seria antes o caso de construir meios que nos permitam desenvolver uma paixão maior pelo mundo, sem sentir que com isso estamos condenados a querê-lo como ele é. Um pragmatismo intrínseco à política emancipatória, e não apenas acessório ou tático, só poderia nascer daí.

Vale notar também que o aparato crítico da esquerda, pelo menos em seu viés marxista, se organiza justamente em torno da produção de contradições: por mais que a crítica da economia política, a análise do Estado e da vida cultural e política se refira a estruturas e formas sociais mais gerais do que as organizações e práticas militantes da esquerda, não temos como contornar o fato de que o marxismo contribuiu muito para que pensássemos o mundo desde a realidade das contradições. Ou seja, nosso aparato crítico enxerga por todos os lados o deslocamento horizontal e vertical das contradições na história, mas nosso aparato construtivo ou propositivo parece ainda firmemente condicionado pela promessa de que a política emancipatória é responsável pela superação das contradições em geral. E a única maneira que conhecemos de superar contradições locais é um sistema complexo em que as contradições de cada parte são deslocadas para a próxima, e assim sucessivamente, de modo que o todo permaneça coeso e interligado, impedindo que a crise interna de um componente leve a sua dissolução. Ou seja, num certo sentido, a real tragédia da esquerda é que conseguimos pensar maneiras de superar nossa situação atual não porque temos um problema sem solução, mas porque solucionamos um problema em termos que não podemos aplicar a nossa própria existência. Desse ponto de vista, as virtudes da esquerda atual são virtudes em conteúdo, mas formalmente são sintomas de um vício mais profundo.

Mas nem tudo está perdido. Caso faça realmente sentido esse diagnóstico de que cada componente da esquerda se articula aos demais pela promessa de que teria condições de resolver as contradições esquecidas ou criadas pelas demais correntes, o que sobraria caso abandonássemos essa promessa de superação das contradições? Vale acrescentar: abandonássemos não apenas de nossas cabeças individuais, mas na “prática cotidiana das esquerdas nos espaços de luta política em que habita”? Bem, torna-se necessário colocar então a seguinte questão: o que seriam formas de organização – em pequena, média e larga escala – que não se articulem a partir do deslocamento de suas próprias inconsistências para outras esferas da vida social?

Do ponto de vista dessa questão, podemos retornar ao nosso mapa das correntes de esquerda atual – parlamentar, tradicional e fragmentária – e reavaliar o que sobrevive ao nosso modelo crítico alternativo.

Se existe efetivamente uma unidade complexa na esquerda, que é percebida teoricamente por cada uma de suas partes como uma desunião, então uma primeira hipótese seria a de que experimentamos hoje os efeitos de um déficit teórico. E, de fato, como sugerimos em nossa análise da caracterização de cada uma delas, o que parece ser um fator comum a todas é pensar os modos de implicação entre Estado, Nação e Capital a partir de modelos de determinação linear, através dos quais a transformação de uma esfera do poder, tomada como fundamental, ocasionaria efeitos irreversíveis nas demais. Ora, já vimos que nem a própria esquerda se organiza assim, já que os limites de uma corrente só fazem fortificar a posição das outras, e seus próprios limites, que por sua vez alimentam a perseverança do primeiro campo em sua própria orientação. A construção de um modelo de determinação social complexo, capaz de preservar as especificidades das lógicas do Capital, do Estado e da Cultura sem deixar de considerar como cada uma dessas lógicas interage de maneira essencial com as demais, seria um bom exemplo de como, ao tentar formular o problema da organização concreta da esquerda atual, estaríamos também contribuindo para a formulação um modelo de compreensão das relações sociais em amplo espectro.

Uma segunda hipótese é que, do ponto de vista da irredutibilidade dessas lógicas de intercâmbio social, a divisão da esquerda em três grandes correntes poderia ser entendida um passo errado, mas na direção certa. Ou seja, as formas organizacionais, ideológicas, epistemológicas e políticas que correspondem aos desafios do capitalismo contemporâneo realmente demandam que tratemos essas três esferas como irredutíveis, ainda que articuladas, e portanto a separação da esquerda em três pólos, e três lógicas, poderia ser entendida como uma solução de compromisso sintomática que carrega um “sinal do futuro”. Um impasse à espera de uma forma de pensar a prática política que nem busque extrair seu poder de mobilização social da promessa de superação de todas as contradições e nem assuma que a unidade ou o comum se apresentam como homogeneidade, estabilidade ou transparência. Nesse caso, seria necessário imaginar um outro critério do que é unidade na esquerda – um modelo de avaliação mais parecido com aquele que aplicamos à análise do sistema capitalista atual, do qual falamos sem grandes problemas como objeto de uma referência comum, ainda que saibamos quão heterogêneo, desconjuntado e sujeito a contingências esse está.

Isso nos traz a uma terceira hipótese, que diz respeito às organizações políticas. Pois as três categorias escolhidas por Paraná para balizar o panorama das correntes da esquerda atual – a análise ideológica, epistemológica e política – tocam todas, ainda que indiretamente, numa quarta categoria, a de “sujeito”. Sujeito que se reconhece através de uma ideologia, que conhece através de esquemas cognitivos, que age através de uma teoria da transformação política. Mas a categoria do sujeito tem pelo menos mais um aspecto digno de consideração nessa análise, que é que o sujeito político moderno está, por definição, preso numa disjunção – muitas vezes insuportável – entre dois mundos: aquele que a história nos lega e aquele que construímos historicamente. Na política de esquerda, essa disjunção se apresenta principalmente como uma tensão entre as formas de reprodução social que sustentam uma dada fração da militância e os modelos de transformação social que ela propõe e exercita.

De certa forma, a esquerda é mesmo uma forma de loucura, como sugerem nossos adversários – nós realmente temos o desejo de viver uma tensão sem a qual seria sim possível levar uma vida digna. A militância efetivamente opera um tensionamento ainda maior desse dilaceramento entre a vida que levamos e a vida que é digna de ser vivida – entre diferentes formas de uso do tempo, dificulta a compatibilidade entre nossas histórias e planos de vida, realça e transforma a maneira como sofremos, etc. Mas como reconhecer e nos responsabilizar pelo tipo de padecimento que podemos causar – sobre nós mesmos e sobre os outros – se não pudermos formular as contradições do mundo em termos que incluam o funcionamento da própria esquerda? Como poderíamos cogitar a possibilidade de que a resistência de alguém às nossas ideias pudesse ser uma resposta racional e legítima à impossibilidade – até mesmo material – de suportar essa loucura? Uma terceira hipótese seria, portanto, de que, por trás do problema epistemológico de reduzir o esquema causal das formações sociais a uma só esfera da vida, talvez encontremos nosso desejo de deslocar para os outros a causa de um sofrimento que, afinal de contas, fomos nós que inventamos.

Para “dessuturar” a política emancipatória de cada uma dessas “reduções transcendentais” que Paraná distinguiu em Três dimensões da tragédia da esquerda seria preciso, portanto, que as organizações políticas fossem capazes de oferecer uma forma de figurar essa tensão própria da militância que não nos eximisse dessa responsabilidade. Ou seja, pode ser que se revele necessário, para que seja possível até mesmo começar concretamente a averiguar o que sobrevive e o que não sobrevive de nossos esquemas de pensamento e ação, a invenção de espaços coletivos, organizados, em que possamos exercitar a formulação de nossos próprios problemas. Isto é, menos a criação de um novo sujeito político, mas a criação de um novo outro para esse sujeito: uma forma de endereçarmos nosso padecimento enquanto militantes que não dependa tanto dessa dinâmica autofágica que desloca as contradições de uma esfera da vida social para outra, de um fragmento da esquerda para o outro, numa rede de implicações mútuas que se reafirma infinitamente.

Seria irônico descobrir que “comunismo” é um nome que vai ganhar realidade histórica primeiro como um método de tratamento das contradições “não-antagônicas” dentro da esquerda, antes de se constituir como uma estratégia de transformação da realidade social como um todo. Mas tem gente que acha que conseguir o que a gente deseja, mas não o que a gente quer, é a própria forma da comédia – o marido quer trair a esposa, e a esposa o marido, cada um vai na festa mascarado… e acabam se traindo um com o outro! Só nessa mudança de gênero narrativo eu acho que já existe uma bela de uma mudança.

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Gabriel Tupinambá é psicanalista, pesquisador no Departamento de História da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e coordenador do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia (www.ideiaeideologia.com). Autor do livro Hegel, Lacan, Žižek (Atropos Press, 2013), de contribuições nos livros editados Slavoj Žižek and Dialectical Materialism (Palgrave, 2016), Repeating Žižek (Duke Press, 2015) e Althusser and Theology (Brill, 2016) – além de autor da orelha da edição brasileira, publicada pela Boitempo, do livro O sujeito incomodo: o centro ausente da ontologia política, de Slavoj Žižek.

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1 comentário em Da tragédia à comédia

  1. Angela Gaben // 05/07/2017 às 12:29 pm // Responder

    Ate que enfim alguém localiza bem as diferentes frentes da esquerda e inclui de forma positiva aqueles que trabalham nas observações de mudanças comportamentais.

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