Três dimensões da tragédia da esquerda no início do século XXI
Pode-se dizer que a ação das esquerdas realmente existentes hoje se divide em três as grandes “correntes”. E se, na busca por uma esquerda conectada com os desafios de nosso tempo, conseguíssemos nos pautar pela necessidade de reter as virtudes e descartar os vícios de cada uma?
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Por Edemilson Paraná.
Passadas as venturas e desventuras do longo século XX, há muito deixou de representar qualquer novidade a já repetida enunciação da crise do marxismo, em particular, e do horizonte de uma política emancipatória de esquerda, em geral. Como é de amplo conhecimento, ao menos desde meados do século passado, a esquerda debate-se em questões epistemológicas, teóricas e práticas de difícil, ainda que inescapável, enfrentamento: as ‘novas’ identidades e sujeitos políticos, a reconfiguração das relações de produção e o consequente descentramento da classe trabalhadora ‘típica-ideal’, a flexível plasticidade novas formas de exploração e acumulação de capital, o peso e materialidade da ideologia, os desafios postos às leituras de conjuntura frente à complexidade da realidade, a autonomia (relativa?) do político, os limites da razão, entre tantos, e intermináveis, problemas.
Muitas formulações, em múltiplas direções, algumas mais adequadas do que outras, buscaram decifrar essa esfinge há tempos posta em nossa sala. Debatê-las aqui, no entanto, não é meu objetivo. Se é verdade que longas e celebres análises e sínteses já foram produzidas a respeito, é igualmente certo que os becos do pensamento emancipatório continuam nos assombrando. A relação das forças e movimentos revolucionários com a institucionalidade burguesa e o poder do Estado, as aporias da forma partido, os desafios organizativos postos para os (já não tão) novos movimentos sociais, entre outros pontos, seguem todos ainda na agenda. Uma vez assumida essa necessidade, por onde e de onde (re?)começar o necessário (e trágico, no sentido grego clássico da palavra – já que as consequências não pretendidas da ação parecem sempre nos trazer de volta ao mesmo problema inicial) esforço de renovação teórico-político da esquerda?
Penso, como muitos, que convém começarmos pela boa e velha “análise concreta da realidade concreta”. É evidente que nesta há incontáveis aspectos e facetas a serem cobertos, mediados ou condicionados por distintas abordagens. No espaço restrito deste texto, não pretendo ir além de uma primeira e limitada aproximação dessa vasta problemática. Para tal, me detenho a uma dimensão específica: a prática cotidiana das esquerdas nos espaços de luta política em que habita no presente. Partindo desse ponto, classifico em três as grandes “correntes” de ação da esquerda realmente existentes nesta quadra da história – e é evidente que, como tais, estas não são se apresentam em estado ‘puro’, tampouco excludentes entre si: i) uma esquerda institucional-parlamentar ou “estadocêntrica”; ii) a esquerda dita tradicional-radical ou “saudosa”; e, por fim, iii) a esquerda fragmentária ou dita “pós-moderna” (por mais complicada e problemática que seja a utilização deste termo, convém faze-lo a bem da simplificação do debate).
Parece ser basicamente em torno desses três grandes modelos, mais próximas ou distantes de um ou mais desses tipos (ideais?), que as esquerdas têm se situado em termos de leitura de mundo, comportamento e ação política. Todas elas, grandes forças de gravitação, defendo, carregam vícios e virtudes, sendo importante mapeá-los a fim de uma primeira reflexão sobre o assunto. A reflexão se dará, de passagem, e de modo um tanto arbitrário, dadas as limitações características desse espaço, em três níveis: ideológico, epistemológico e político. Para efeitos de análise, assumirei, como ponto de partida, que os representantes de todas as frações são bem-intencionados e que igualmente buscam, por vias distintas, a transformação (radical?) da realidade – o que nem sempre é verificável no mundo da vida (mas isso levaria a discussão para outras e indesejadas esferas). A eles, pois.
O primeiro ‘tipo’, institucional-parlamentar, é bastante conhecido, já que carrega alguns séculos de existência nas costas, mesmo que venha reconfigurando-se desde então. No aspecto ideológico (discurso-representação de mundo que orienta suas práticas), corresponde ao pragmatismo de esquerda clássico, que encontra centralmente no Estado a razão e causa maior do poder. Daí, como sabemos, derivam-se a opção pelo reformismo gradualista (com ou sem povo) e a crença na capacidade de alcançar uma sociedade plenamente justa e livre pela via incremental, mais ou menos estável, sem rupturas. Na dimensão epistemológica, o abandono da radicalidade anticapitalista e, dessa forma, de uma leitura orientada para a ruptura sistêmica, funciona como uma grave barreira à imaginação crítica e, desse modo, ao seu pensamento pretensamente transformador – algo que acaba levando-a a alianças quase perpétuas com o pensamento liberal-burguês de “rosto humano”: os proxys do keynesianismo econômico e as teorias liberais da sociedade e da democracia, que prezam pela moderação diante das conquistas da modernidade capitalista. Por último, no aspecto político, essa forma de ver a mudança social acaba encontrando afinidade com o institucionalismo utilitarista e a indefectível paixão pelo poder, produtos de uma grave confusão entre mudança e manutenção da realidade. Em suma, ao tentar civilizar o capital, acaba por ele ‘civilizada’.
A esquerda radical tradicional (saudosista, dirão alguns), o segundo tipo, mantém, no que se refere à dimensão ideológica, seu caráter anticapitalista e, por isso, desconfia da cooptação pelo Estado burguês, apostando sua fichas no socialismo e na revolução. No aspecto epistemológico, é certo, isso a possibilita sustentar algum vigor crítico e analítico, bem como certa solidez dos modelos teóricos – ainda que, em alguns casos, em sacrifício da complexidade do real. Na dimensão política, no entanto, e ainda que seja digna de nota sua heroica e valorosa resistência ao longo das décadas, segue, de certo modo, vinculada cognitiva e discursivamente a um mundo pré-queda do Muro de Berlim, como numa grande elegia dos “sobreviventes” da história, presa a questões de outro tempo. Assim articulada, por mais refinada e influente que seja sua crítica anti-sistêmica, tende ao elitismo político e ao nanismo, afastada que está do universo de questões que governam o senso-comum e a vida cotidiana das maiorias sociais. Por fim, um senso de proporção um tanto distorcido e a pouca abertura para pensar e recriar a realidade a partir de novas categorias a faz escorregar em lamentáveis demonstrações de sectarismo e dogmatismo.
Por último, chegamos à esquerda fragmentária, nossa terceira “corrente”. É certo que esta nasce da crise das duas precedentes, e como resposta aos seus problemas supostamente congênitos. Isso se dá em meados do século passado (1968 é, certamente, um marco importante), mas ganha fôlego renovado a partir do fim do dito ‘socialismo real’, perpassado pela retórica do “fim das grandes narrativas” em tempos ‘pós-ideológicos’. Na dimensão epistemológica, busca na efemeridade dos movimentos transitórios, na particularidade como elemento constitutivo, na cognição de corte relativista e na desconfiança da razão remédios contra a fixidez das estruturas e a subsunção da parte pelo todo-totalidade, ciosa que é da procura por novas bases para pensar o problema da liberdade (em detrimento da igualdade?). No aspecto ideológico, a crítica ao capitalismo, quando é o caso, dá precedência à dimensão ético-comportamental, descurando de suas tensões sistêmico-estruturais; sobrevalorizando, dessa forma, esferas micropolíticas de atuação em detrimento de sua contraparte macrossocial. Desse modo, assim como no primeiro tipo, termina por colaborar consciente ou inconscientemente com o (neo) liberalismo e o mito moderno do indivíduo autodeterminado, que aqui se torna – implícita ou explicitamente – a unidade fundamental de análise. No aspecto político, ao manter certa desconfiança da busca por unidades em detrimento das diversidades (como se no fundo estas fossem inconciliáveis), acaba jogando água no moinho da fragmentação político-organizativa. Ao apostar as fichas na imanência fluída das redes sem dar devida atenção aos seus constrangimentos e limites, termina refém de conceitos de horizontalidade e autonomia não raro esvaziados de conteúdo material. Tudo somado, a ideia de projeto político-estratégico perde sentido e horizonte, apontando para uma gestão reativa, imediatista e performática da luta social.
Estarão certos os que dirão ser esta uma forma por demais simplificada de apresentar o panorama. Poucos são os grupos na esquerda que estariam enquadrados em só um desses tipos e é igualmente certo que, dessa forma categorizados, acabam drenados de sua enorme diversidade, bem como histórias particulares e conjunturas constitutivas. Igualmente corretos estarão em criticar certa arbitrariedade dessa classificação no denso, polissêmico e multifacetado campo da pratica teórica, onde o buraco é, sabemos, ainda mais profundo. Defendo, no entanto, que são essas as três grandes forças de gravitação que atraem a maioria das organizações, movimentos e coletivos políticos de esquerda atualmente, forças que precisam ser superadas naquilo que tem de perniciosas, e, quiçá, canalizadas naquilo que tem de irruptivas. Eis, então, a proposição de um primeiro e ainda precário parâmetro que julgo útil e funcional para nos ajudar a começar a ler as tragédias da esquerda no século XXI, em suas potências e misérias – orientada, naturalmente, para a busca de soluções.
Fica posta, no entanto, como sempre, a pergunta sobre as eventuais saídas, sobre o quê fazer diante do quadro acima proposto. Seria uma enorme pretensão dar, de pronto, uma resposta sumária, já que esta será inevitavelmente produto da imprevisível e apaixonante tarefa de invenção política coletiva. No entanto, cabe, como ponto de partida para uma reflexão que seguirá, uma segunda provocação. E se, na busca por uma esquerda conectada com os desafios de nosso tempo, conseguíssemos nos pautar pela necessidade de reter as virtudes e descartar os vícios nos tipos acima descritos?
Dito dessa forma, pareceria demasiado simples, em especial se considerarmos que esses três tipos são irremediavelmente interdependentes, e que, possivelmente, seus vícios e virtudes são, ao fim e ao cabo, inseparáveis entre si; já que cada uma dessas correntes, representa, em última instância, visão de mundo mais ou menos coerente, com sua própria amarração e lógica interna. É igualmente razoável atentar para o fato de que, em geral, o caminho circular que vai de um tipo ao outro acabou por se tornar a via sacra de militantes frustrados e desiludidos com seus próprios espaços de atuação política, sempre em busca de seu próprio (e, por vezes, individual) paraíso organizativo.
Como, então, operacionalizar objetivamente tal proposta? Aí reside, certamente, o mais difícil. Sem pretensão de resolução de problema, nos permitamos ao menos imaginar, especular. Há de se começar por algum ponto, afinal.
Da esquerda de primeiro tipo, buscaremos manter o necessário pragmatismo da ação: o planejamento, desenho e busca pela concretização de novas de propostas de governo da vida política e social, permeada por valores radicalmente democráticos, e que falem diretamente para as necessidades mais prementes e cotidianas das pessoas, no “agora”. Junto disso, a clareza quanto ao caráter contraditório, nada idílico, da política cotidiana, como campo de guerra que é. Da esquerda de segundo tipo, nos caberá manter o vigor crítico, a tenacidade da resistência abnegada, a radicalidade anti-sistêmica e a orientação para projetos estratégicos que tenham como horizonte a superação do capitalismo. Por fim, da última dessas “correntes”, cumprirá reter, em tempos de crise civilizacional, o compromisso com uma renovação ético-estética da política, a criatividade e irreverência na produção de novos arranjos organizativos, o valor da sustentabilidade, o respeito à diversidade e a desconfiança consequente da razão. Poderia ser um bom começo.
Para isso, precisaremos nos livrar do apego ao poder pelo poder e da falência da crítica, do sectarismo dogmático e saudosista e, por fim, da ação fragmentária, individualista e performática de nosso tempo. O necessário e hercúleo esforço de construção de leituras profundas, atualizadas e precisas do capitalismo precisará ser encontrado com a investigação obsessiva e a tentativa prática de novas formas politico-organizativas, compatíveis com as lutas e desafios revolucionários contemporâneos. Eis, assim, a tarefa que a que deve se empreender todo pensamento-ação pretensamente crítico: entender, criticar e transformar o mundo a sua volta.
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Edemilson Paraná é doutorando em Sociologia pela UnB (Universidade de Brasília), e atualmente pesquisador visitante na SOAS – University of London. É autor do livro A Finança Digitalizada: Capitalismo Financeiro e Revolução Informacional (Insular, 2016). Dele, leia também no Blog da Boitempo os artigos “Brasil 2016: preparando a (nova) gestão de uma crise permanente“, “Brexit: o Reino Unido sequestrado pela extrema-direita?“, “O Brexit e as esquerdas: as contradições da razão europeísta“, “Um novo tsunami financeiro global a caminho?“, “Da direta à esquerda: a crise diante da falta de um projeto de país“, “O Brasil no pêndulo das elites: entre liberalismo submisso e desenvolvimentismo autoritário“, “Disputar o povão: neopentecostalismo e luta de classes“, “As raízes da escalada conservadora atual” e “Lula, o cerberus da política brasileira“.
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A quantidade de palpites e análises sobre as possíveis saídas da crise do capitalismo e da democracia são impressionantes e todas elas, até agora, tem naufragado num terreno movediço, porque, de alguma maneira, a realidade existente criou, no decorrer do tempo uma carapuça que, apesar de aparentemente frágil, apresenta uma capacidade de resistência impressionante. Lembro que, no tempo de existência do chamado socialismo real, que se confrontava com o capitalismo, achávamos que aquela avalanche não tinha retorno porque o destino da história era andar pra frente. Qual o que! de repente assistimos, assombrados, tudo aquilo desmoronar nos deixando desarmados e despreparados para recomeçar, até porque para isso precisávamos de remexer em demasia os fundamentos. Agora, a esfinge, mesmo debilitada, ainda é um gigante a nossa frente.
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Assombra a conciliação de classes o inevitável: ver desmoronar o seu projeto de conciliação diante do inimigo de classe, o capital, que é implacável, mesmo diante daqueles que o servem.
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Dois erros no texto: considerar a esquerda pós-moderna como esquerda de fato (fundada em critérios objetivos e não de auto-determinação); negar a razão (tudo bem, todo munda sabe que ela tem limite, mas se não for por ela, será pelo que?) como dimensão fundamental de articulação corroborando com a descrença pós-moderna: “o valor da sustentabilidade, o respeito à diversidade e a desconfiança consequente da razão”.
Não se trata de juntar as esquerdas, mas de um trabalho constante (de debate, prática e confronto político) de ir eliminando o que se passa de esquerda nos tres pilares mas não o é.Nesse ponto basta ler Lenin, Marx, Gramsci, que sempre trataram de desmistificar os movimentos ditos de esquerda de sua época mas que objetivamente não o eram). É assim que se unifica. O grande erro do texto é partir daquela crítica fácil e senso comum de aspecto moral de que basta auto-críticas. Auto crítica é importante,mas mais importante é a separação do joio do trigo. O texto utiliza-se dos mesmos “métodos pós-modernos” dos quais crtica.
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A chave está no primeiro parágrafo: por que a esquerda sofre com esses “infindáveis problemas”? A verdadeira questão é a própria capacidade da tradição marxista, em qualquer uma das suas vertentes, de explicar a realidade. Pra mim, o marxismo é, como todo pensamento, datado, e atingiu seu limite há algum tempo. Prova disso é que na academia sobrevive apenas em seitas fechadas e autorreferenciadas. Não sendo capaz de explicar a realidade, também não pode pautar sua transformação. O que a esquerda deveria fazer, portanto, é repensar sua tradição teórica, abandonando dogmas, liturgias e simbolismos ultrapassados.
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Seitas fechadas e autorreferenciadas na academia?
Primeiro: sucesso na academia nunca foi e nunca foi e nunca será objetivo do marxismo.
Segundo: mesmo na academia, talvez você se espante com o crescimento de marxistas nos últimos 10 anos (inclusive com O Capital sendo um dos livros mais lidos em alguns países da europa). Meses atrás, na Unicamp, um evento sobre a economia política de Marx atraiu mais gente (de todo o Brasil) do que qualquer outro evento em tempos.
Terceiro: não se trata de dogmas, se trata de manter o método marxista e suas categorias de análise que se modificaram também com o tempo. Essa sua crítica é feita por teóricos liberais e conservadores desde quando Marx morreu, ela não é nova e já é respondida e debatida largamente. Sugiro dar uma olhada maior neste mesmo Blog que achará material interessante sobre.
Quarto: é evidente que o marxismo não é a única corrente de esquerda relevante, mas ainda o é. Jogar a “culpa” dos problemas da esquerda no marxismo é de uma burrice sem tamanho.
Quinto: qual corrente teórica seria tão ou mais potente em termos de crítica e de práxis do que a marxista hoje? (Só falta vc vir com Foucalt ou Boaventura de Souza Santos hahaa).
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Pra mim esses argumentos são muito autocondescendentes, mas se tu diz… Eu não tenho qualquer pretensão ou interesse em salvar a esquerda de si mesmo. Grande abraço.
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Se “o marxismo está datado”, o que será dos trabalhadores como alternativa ao hodierno e odiado sistema que vivemos. é porque o marxismo é atual, que nos debruçamos para fazer dele a praxis do mundo.
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Para construir uma nova sociedade é necessário mudar a base econômica e as relações de produção, mas simultaneamente é necessário mudar o pensamento e os valores do ser humano. Nestas tarefas as três grandes correntes de ação da esquerda deveria somar seus esforços, ou não se chegará a lugar nenhum.
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