Álvaro Lins: o liberal sem medo da democracia
Pela sua obra de crítica literária e pelo seu exemplo de altivez política, Álvaro Lins não deve e não pode ser esquecido pelos brasileiros. No primeiro plano, registra-se a perda daquele que Drummond não vacilou em qualificar, sem ironia, o “Imperador” da crítica do seu tempo; no segundo, apaga-se a trajetória exemplar de um liberal que não teve medo da democracia.
Por José Paulo Netto.
Há pouco, em março passado, Miguel Urbano Rodrigues – o grande português e grande amigo do Brasil, certamente conhecido por aqueles que acompanham o Blog da Boitempo – publicou, em O Diário.info, uma nota evocativa de Álvaro Lins. Um texto breve e emocionado sobre uma das figuras mais nobres da inteligência brasileira no século XX e, lamentavelmente, das menos referidas nos tempos que correm*.
Compreende-se o quase silêncio contemporâneo sobre Álvaro Lins – entre outras razões porque, nas duas últimas décadas, o pensamento liberal foi de tal modo abastardado (também) entre nós que, nos dias de hoje, quem geralmente o reivindica verbalmente se acumplicia, na prática, aos mais abertos atentados aos direitos democráticos, sejam os políticos, sejam os sociais (e, explicável e coerentemente, a ambos). Para as correntes ideológicas afinadas com a retórica liberaloide, a evolução e o legado de Álvaro Lins não são facilmente digeríveis.
Há, porém, outros componentes que ajudam a compreender o perceptível exílio de Álvaro Lins da memória e do horizonte das gerações intelectuais mais jovens – o desconhecimento da nossa história, a superficialidade no trato da nossa herança cultural e o “presentismo” (que Hobsbawm anotou como fenômeno mundial da cultura capitalista posterior aos anos 1970). Nesta oportunidade, só é possível assinalar que esse exílio é lamentável: no plano da crítica literária, o principal âmbito do trabalho de Álvaro Lins, registra-se a perda daquele que Drummond não vacilou em qualificar, sem ironia, o “Imperador” da crítica do seu tempo; no plano da intervenção política, apaga-se a trajetória exemplar de um liberal que não teve medo da democracia. A crítica literária e a política: eis as duas portas pelas quais Álvaro Lins entrou na história brasileira e nela lhe asseguram, para além de modismos intelectuais e de conjunturas de degradação ideológica, um lugar de indiscutível relevância.
Álvaro de Barros Lins (Caruaru, 1912 – Rio de Janeiro, 1970) estudou na Faculdade de Direito do Recife (1931-1935), período em que lecionou em escolas secundárias e foi secretário do governo estadual. Era, então, um intelectual encharcado da cultura católico-integrista e com pretensões de fazer carreira político-institucional. Em 1937 abandona estas últimas e começa, gradualmente, a distanciar-se daquela e é quando passa a valer-se prioritariamente do jornal como veículo das suas ideias – ingressa no jornalismo no pernambucano e conservador Diário da Manhã (1937-1940).
No início dos anos 1940, mudou-se para o Rio de Janeiro e é a partir do seu trabalho no Correio da Manhã, exercido até 1956 e do qual chegou a ser redator-chefe, que ganhou reconhecimento como crítico literário. Em um tempo em que a crítica ainda não dispunha de recursos acadêmicos especializados e sofisticados, ele a exerceu sistematicamente nos suplementos literários de órgãos de imprensa (em avaliações exaradas em textos alocados aos rodapés desses suplementos). Vistas hoje, nem todas suas análises resistiram ao correr do tempo – até mesmo porque, ainda que coerente nas suas avaliações, Álvaro Lins apoiava-se numa concepção eclética da teoria literária. Mas o essencial dos seus juízos revelou-se resistente ao tempo: foi dos primeiros a saudar o Guimarães Rosa de Sagarana e a revelar que, em Jorge Amado, coexistiam “valor instintivo de romancista e miséria objetiva de escritor”. À época, sua postura judicativa sem dúvidas contribuiu para formar um gosto literário culto. E a sua independência como crítico, jamais conciliando com igrejinhas e compadrios literários e interesses editoriais, nunca foi questionada.
Sua cultura literária não se limitava ao produzido no Brasil – como o demonstra seu primeiro livro, de 1939, quando ainda não completara 30 anos: História literária de Eça de Queiroz, que todavia hoje merece leitura atenta. Não foi por acaso que, entre 1952 e 1954, foi professor convidado da Universidade de Lisboa. Em 1951, quando se tornou professor titular do Colégio Pedro II, conquistou a cátedra com o notável ensaio A técnica do romance em Marcel Proust. Também não foi por acaso que, em 1955, ganhou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras – ali não chegou, como tantos, graças a arranjos políticos e/ou a conchavos literários.
Seu trabalho crítico – que, como todo trabalho similar, apresenta grandes momentos e passos problemáticos – começou a ser objeto de polêmica na transição dos anos 1940 aos 1950. Liderou uma verdadeira cruzada anti-Lins (acusado de ser um “impressionista”, um “crítico de rodapé”) o médico baiano Afrânio Coutinho (1911-2000) que, convidado para ser redator de Seleções do Reader’s Digest, aproveitou a temporada nos Estados Unidos (1942-1947) para dedicar-se a estudos de literatura. Voltou ao Brasil convertido ao new criticism e produziu obra prolífica, ingressou no Pedro II mediante o mesmo concurso prestado por Álvaro Lins, dirigiu a expressiva A literatura no Brasil (1955-1959, depois ampliada em novas reedições), também ingressou na Academia Brasileira de Letras (1962) e construiu uma feliz carreira universitária na Universidade Federal do Rio de Janeiro, ocupando a direção da sua Faculdade de Letras de 1968 a 1980. Impossível detalhar aqui a polêmica Coutinho/Lins, em que o médico baiano primou pela grosseria; mas, para além de eventuais méritos de Coutinho na defesa de um trato acadêmico-especializado,“científico”, da literatura, é fato que a partir dessa polêmica se constituiu um conjunto de preconceitos sobre a crítica de Álvaro Lins que são reproduzidos até hoje.
Foi na segunda metade da década de 1950 que Álvaro Lins tornou-se intelectual destacado na cena política. Através do Correio da Manhã, combateu frontalmente as conspiratas contra a posse de Juscelino Kubitschek, eleito presidente nas eleições de 1955 – e, agarrado aos preceitos constitucionais e a um firme credo liberal-democrático, contribuiu significativamente para a manutenção dos quadros da democracia consagrada na Constituição vigente (a de 1946). Empossado na Presidência, numa conjuntura conturbada, Kubitschek levou-o para a chefia da sua Casa Civil. No ano seguinte, o presidente, com os ânimos nacionais serenados, nomeou-o embaixador em Portugal.
No desempenho de sua “missão em Portugal”, Álvaro Lins acabou por colidir com a política externa patrocinada pelo presidente da República – que brindava à ditadura salazarista um expresso apoio, acobertando a brutal exploração do ultra-colonialismo português. A colisão tornou-se explícita em 1959, com o “caso Humberto Delgado”: Delgado, até poucos anos antes integrante do bloco fascista de Salazar, em 1958 descolou-se para a oposição democrática, foi esbulhado numa farsa eleitoral, teve sua integridade física ameaçada por Salazar (a mando de quem esbirros da PIDE haveriam de assassiná-lo em 1965) e pediu asilo na embaixada brasileira. Álvaro Lins concedeu-lhe o asilo, mas as hesitações do governo Kubitschek, pressionado por Salazar, tenderam a desautorizar o embaixador. Enfim concedido o asilo, Álvaro Lins exonerou-se e rompeu publicamente com Kubitschek, retornando ao Brasil para dedicar-se ao jornalismo cultural (de 1961 a 1964, quando se aposentou, dirigiu o então influente suplemento literário do carioca Diário de Notícias).
Sua coragem cívica ao solidarizar-se, na condição de embaixador, com os perseguidos pela ditadura salazarista** foi reconhecida no Portugal democrático (em dezembro de 1994, o governo português concedeu-lhe postumamente a Grã Cruz da Liberdade). E sua fundada denúncia do posicionamento internacional do governo Kubitschek influiu na construção daquela que logo depois ficou conhecida como a “política externa independente” brasileira.
A “missão em Portugal” pôs a prova as convicções democrático-liberais de Álvaro Lins – e nos poucos anos de vida que lhe restaram, a solidez delas continuou a revelar-se. Em 1960, foi uma das personalidades brasileiras que mais apoiaram a realização, em S. Paulo, da I Conferência Interamericana de Anistia para os Exilados e Presos Políticos da Espanha e de Portugal. Em 1962, chefiou a delegação brasileira ao Congresso Mundial da Paz, que se reuniu em Moscou. Nos dois anos seguintes, defendeu a legalidade democrática ameaçada entre nós. E quando sobreveio o golpe civil-militar de 1964, sua casa foi invadida e sua biblioteca devastada. Solitário e doente, viveu seus últimos anos em silêncio.
Pela sua obra de crítica literária e pelo seu exemplo de altivez política, Álvaro Lins não deve e não pode ser esquecido pelos brasileiros.
NOTAS
* O conjunto da crítica literária de Álvaro Lins e coligida nos 7 volumes do seu Jornal de crítica (1941-1963), editados no Rio de Janeiro pela José Olympio (6) e o último (7) pela O Cruzeiro, é hoje uma raridade bibliográfica; parte dessa crítica foi reunida em Os mortos de sobrecasaca e O relógio e o quadrante (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963/1964). O essencial da sua experiência diplomática está relatado em Missão em Portugal (idem, 1960); e ensaios de natureza cultural e política encontram-se em A glória de César e o punhal de Brutus (idem, 1963); de reedições mais recentes, só tenho conhecimento da coletânea Álvaro Lins: sobre crítica e críticos (Recife: CEPE, 2012), organizada por Eduardo Cesar Maia, estudioso da sua obra. Poucos são os materiais sobre ele divulgados em escala nacional – p. ex., A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica, de Adélia B. de M. Bolle (Petrópolis: Vozes, 1979) e O pensamento crítico de Álvaro Lins, de Antonio Brasil (Recife/Rio de Janeiro: Fundarpe/José Olympio, 1985); de fatura recente, cf. o artigo de L. C. Machado dos Santos, “Álvaro Lins. Caráter e função: dilemas e contradições de um embaixador do Brasil em Portugal” (Clio. Revista de Pesquisa Histórica. Recife: Departamento de História da UFPE, 34.1, 2016).
** Coragem de que também deu provas sua esposa, a embaixatriz Heloísa Lins. Ela testemunhara, em agosto de 1958, de sua casa, fronteira à sede da PIDE, o assassinato do militante comunista Raul Alves e denunciou o crime ao Cardeal Cerejeira – graças à sua denúncia, o regime não pôde ocultar o fato (cf. Irene F. Pimentel, A história da PIDE. Lisboa: Círculo de Leitores, 2007, p. 99).
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José Paulo Netto nasceu em 1947, em Minas Gerais. Professor Emérito da UFRJ e comunista. Amplamente considerado uma figura central na recepção de György Lukács no Brasil, é coordenador da “Biblioteca Lukács“, da Boitempo. Recentemente, organizou o guia de introdução ao marxismo Curso Livre Marx-Engels: a criação destruidora (Boitempo, Carta Maior, 2015). No Blog da Boitempo escreve mensalmente, às segundas, a coluna “Biblioteca do Zé Paulo: achados do pensamento crítico“, dedicada a garimpar preciosidades esquecidas da literatura anticapitalista.
Obrigado Zé Paulo! Conheci os textos de Álvaro Lins pelas críticas endereçadas (interessantíssimas) ao Graciliano. Algumas edições antigas da Record colocavam-nas em anexo. Assim como Cândido que recentemente nos deixou, e toda aquela magnífica geração, Lins e Otto Maria Carpeaux devem ser sempre saudados. Aliás, bons tempos de uma parte do nosso jornalismo que hoje morre de inanição. Um abraço!
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Um dos grandes intelectuais brasileiros, a sua obra critica, tendo como um dos modelos o francês Saint Beuve, será sempre um marco em nossa cultura.
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