Antonio Candido, intérprete do Brasil
Por Flávio Aguiar.
“Dizer a verdade é uma coisa boa,
tanto por causa do prazer que nos dá
ao desafogar o coração
como por causa da raridade do fato.”
D’Artagnan
Em homenagem a Antonio Candido de Mello e Souza, crítico literário, engajado militante socialista e figura pioneira da nossa dita “tradição crítica”, que nos deixou hoje, dia 12 de maio de 2017, o Blog da Boitempo disponibiliza, na íntegra, o capítulo dedicado a ele, e assinado por Flávio Aguiar, no livro Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizado por Luiz Bernardo Pericás e Lincoln Secco.
* * *
Atribui-se a Goethe a consideração de que as novas gerações devem herdar das antigas raízes e asas. É o que se pode dizer do legado de Antonio Candido em todos os sentidos e áreas do conhecimento, da militância, da vida em que esteve presente. Também, é claro, de sua reflexão sobre o Brasil, visto nela, sobretudo, através das lentes da sua literatura e da crítica literária.
Tomo por base, para este pequeno escorço de tal legado, dois textos do livro Antonio Candido: pensamento e militância1 publicado em 1998, ano em que o autor recebeu uma homenagem em comemoração aos seus oitenta anos de idade.
São eles o texto do professor Décio de Almeida Prado, “O Clima de uma época”, e o do professor Octavio Ianni, “Nação e narração”2. Sem prejuízo da qualidade dos demais ensaios do livro, considero estes dois emblemáticos e seminais por abordarem a relação entre o pensamento de Antonio Candido e seu contexto brasileiro, respectivamente, durante os anos de sua iniciação à crítica literária, na revista Clima, e na sua obra de plena maturidade.
Antes de entrar na consideração de fundo de cada um dos ensaios, lapidares que são dentre o muito (e ainda tão pouco!) que se escreveu sobre o professor Candido e sua obra, gostaria de trazer à baila alguns aspectos que podem parecer apenas anedóticos, mas não o são, porque revelam detalhes estruturadores da sua vida e da sua trajetória intelectual.
O ensaio de Décio de Almeida Prado é, na verdade, a reprodução do texto que ele leu – com adendos e comentários – na primeira sessão da homenagem aos oitenta anos de AntonioCandido,. Logo no começo, ao rememorar as amizades de juventude que o acompanharam ao longo da(s) vida(s), o professor Décio evoca uma frase dita por D’Artagnan ao morrer no romance de Alexandre Dumas, pai: “Athos, Porthos, até já; Aramis, até sempre”. Antecede ela outra frase de D’Artagnan, também citada pelo professor Décio, e que está na epígrafe deste ensaio.
A menção às frases tem algo de enigmática. O professor Décio justifica ambas (a da epígrafe é uma citação de uma citação, feita pelo professor Candido em seu primeiro artigo para a Clima) dizendo que o “gascão ficcional” era um dos heróis da meninice do amigo e também da dele. Mas a elucidação completa de seu significado não está no ensaio escrito, mas sim num comentário lateral que o professor Décio deixou escapar, ao lado da confissão de que, naquele momento, estava quebrando um juramento antigo feito por quatro amigos: ele, o professor Antonio Candido, mais os professores Paulo Emílio Salles Gomes e Lourival Gomes Machado, que eram, por assim dizer, parte do “núcleo duro” da Clima, motivo da sua exposição. O juramento era o de que eles, os quatro, jamais falariam uns sobre os outros. Mas, diz o professor Décio, o tempo decorrido e a evocação da famosa revista justificariam a quebra daquele pacto.
O comentário lateral era o de que aqueles quatro amigos se apelidaram uns aos outros com os nomes dos célebres mosqueteiros de Dumas. O professor Candido era o D’Artagnan do grupo. Não tenho lembrança firme, mas o professor Paulo Emílio de Salles Gomes, o mais imediatamente político dos quatro, seria Aramis. De modo menos seguro, afirmaria que o professor Gomes Machado seria Athos e ele, professor Décio, Porthos.
Fico em dúvida sobre a raiz do apelido e da identificação. Dentre os mosqueteiros, D’Artagnan é o único que não o é, pelo menos logo de início. Mas ao mesmo tempo, dos quatro, ele é o mais desbravador, além de misturar sutileza com ousadia. Como lembrou, aliás, Carlos Drummond de Andrade no poema que lhe dedicou em Esboço de figura, livro em homenagem aos sessenta anos do professor e crítico:
Arguto, sutil Antonio,
A captar nos livros
A inteligência e o sentimento das aventuras do espírito,
Ao mesmo tempo em que, no dia brasileiro,
Desdenha provar os frutos da árvore da opressão,
E, fugindo do séquito dos poderosos do mundo,
Acusa a transfiguração do homem em servil objeto do homem.
Na verdade, todos os colaboradores de Clima eram desbravadores.
No ensaio do professor Décio, que, pelo menos no mundo acadêmico, era o “companheiro de caminho” mais antigo de Antonio Candido, encontramos esta frase definidora: “A meu ver, nada compreenderemos sobre Clima sem levar em consideração que o Brasil era ainda muito amadorístico, se comparado ao Brasil atual [de 1998, quando da apresentação do texto], profissionalizado ou em via de profissionalização”3.
A frase tem um referencial imediato, que é o “clima” de improvisação que reinava na revista. Os membros da equipe eram factótuns: escreviam os textos, revisavam-nos, levavam os originais à gráfica, corrigiam as provas, colhiam os exemplares para levá-los ao correio, às livrarias e às bancas de jornal. Como diz o autor, eles eram ao mesmo tempo “patrões e empregados de si mesmos”4, além de “abnegados”. Ou seja, tudo muito diferente e menos especializado do que na mais amadorística publicação de hoje em dia, impressa ou virtual.
Mas o texto do professor Décio permite uma leitura mais abrangente, relativa ao contexto intelectual como um todo. Porque, diz ele, “nosso traço mais distintivo, no entanto, estava na ideia, bem universitária, de especialização, de divisão do conhecimento em várias áreas, para aprofundá-lo tanto quanto possível. Tendíamos a ser monógrafos, em substituição aos polígrafos que nos antecederam”5.
Essa visão de conjunto é confirmada e ampliada por uma afirmação da professora Walnice Nogueira Galvão em seu ensaio “Vida, obra e militância” na mesma obra citada:
Tendo estreado como crítico literário na legendária revista Clima, em 1941, aos 23 anos, tornou-se parte de uma esplêndida constelação que marcaria duradouramente o panorama cultural do país. Foi lá que se definiram quanto à vocação não só ele como vários companheiros de toda a vida, como Paulo Emílio Salles Gomes no cinema, Décio de Almeida Prado no teatro, Lourival Gomes Machado nas artes plásticas, Ruy Coelho na antropologia, Gilda de Moraes Rocha – com quem viria a se casar – na estética.6
Retomando a visão do professor Décio, pode-se ir mais adiante na leitura ampliada da frase do professor e colega, vendo aí o impacto da formação universitária propriamente dita no pensamento de Antonio Candido e de sua geração, em contraste não apenas com o modo impressionista que vicejara até ali na crítica de jornal, mas também com a geração dos grandes ensaístas precedentes, muitos deles de formação autodidata nos seus campos de abordagem, como Euclides da Cunha, Manuel Bonfim, Silvio Romero, José Veríssimo e tantos outros de grande qualidade.
Isso implicava um certo rigor de comportamento, pois, como diz o professor Décio, eles haviam herdado da então jovem Faculdade da também jovem Universidade de São Paulo (USP) “menos um saber acabado – e este nunca o é – do que uma técnica de pensar e produzir”7. As balizas dessa técnica eram a busca de fontes primárias e o que ele chamou de “raciocínio cerrado”, sem “excessos” nas fantasias ou interpretações mera ou prematuramente pessoais.
O modo de pensar o Brasil, sua literatura, suas artes, os livros que nossa intelectualidade lia, bem como as imagens do Brasil daí decorrentes, é inseparável, portanto, dessas “técnicas universitárias”, apanágio de uma geração. Munida de tais réguas e compassos, segundo o professor Décio, essa geração se dedicou a criar ou estabelecer um apoio no campo da crítica, ao que a antecedente Semana de Arte Moderna de 1922 deflagrara no Brasil. A Semana de 22 tivera seu epicentro na literatura, com repercussões imediatas nas artes plásticas e na música. A geração Clima, entre outras coisas, dedicou-se a ampliar, por meio do pensamento crítico, a repercussão dos princípios da Semana para outras áreas, como o cinema ou o teatro, ou a consolidá-la naqueles campos seminais de tradição mais avantajada ou, pelo menos, menos rarefeita.
Em tais campos de tradição mais sólida, assinala o professor Décio, o desafio era maior, porque havia neles críticos de peso, como os já citados – no caso da literatura – Silvio Romero, José Veríssimo (até Machado de Assis, é bom lembrar), Tristão de Ataíde, Álvaro Lins, Augusto Meyer, entre outros.
No seu ensaio, vê-se que, além das qualidades de crítico de Antonio Candido, a chave para o “sucesso” de Clima nessa área também se deveu ao fato da “seção especializada” ter colocado no centro de seu foco as conquistas do Modernismo, ou dos Modernismos brasileiros, para ser mais exato. Décio situa dois “Modernismos” naquela época: o primeiro, com epicentro em São Paulo e na Semana de 22; o segundo, o do “romance social”, com epicentro no Nordeste (então ainda chamado de Norte), tendo “como protagonista o povo”8, “personagem ausente no ciclo paulista, a não ser em concepções míticas, a exemplo de Cobra Norato”.
Candido deu mais um passo decisivo. Ainda segundo o professor Décio, ele
aceitava a produção nacional como um fato que se coloca entre nós, merecendo ser examinado como tal, sem esconder de todo o anseio por uma literatura mais forte e empenhada, que subisse às alturas, ou então que descesse sem medo ao grotesco, ao ilógico, categorias que, segundo ele, possuíam também velhas tradições. A mediania de propósitos é que não o entusiasmava.9
Segundo Décio, pode-se ler aí o entusiasmo que Candido terá em relação ao romantismo alemão; pode-se acrescentar também, entre outras coisas, o entusiasmo crítico com que lerá, por exemplo, O conde de Monte Cristo.
Uma das características decorrentes dessa combinação entre especialização e comparação como métodos de leitura e exercício crítico será a tendência a valorizar a especificidade estética das obras em apreço. “Nacional” e “visão do contexto” deixam de ser valores para ajuizar uma obra literária, sem que desapareçam de vista enquanto referências, declinando diante, por exemplo, de “coerência interna” e “transformação de fatores externos em internos” da obra literária. Outra consequência dessa visão foi a valorização do trabalho crítico com as obras, ao lado da formação e do exercício teóricos.
À parte isso, nessa cominação de leituras veem-se já dois pilares de seu pensamento posterior: ver o Brasil por meio de sua literatura como um projeto ou processo em transformação e vê-lo também como o epicentro de um diálogo intercultural – não despido de confrontos ou tensões –, seja com as fontes originais de suas raízes europeias e outras, seja com a sua contemporaneidade.
Nascido em 1918, o futuro professor Antonio Candido teve de início uma formação desenvolvida em casa, coisa comum na época em famílias abastadas ou remediadas, como se costumava dizer, e que era o seu caso. Essa formação foi solidamente amparada por uma excelente biblioteca doméstica em Poços de Caldas, onde residiu durante a infância e a primeira juventude. Graças aos trabalhos e pesquisas de seu pai médico, foi ainda bastante jovem passar uma temporada na França. Mudando-se para São Paulo, ingressou no curso de Direito, que não concluiu, e na recém-criada Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da também recém-criada USP, no curso de Ciências Sociais, que concluiria e seria seu portal de entrada na vida acadêmica, como professor. Foi professor de Sociologia até 1958, quando “bandeou-se” de vez para os estudos literários, ingressando na Faculdade Estadual de Filosofia de Assis, hoje pertencente à Unesp. Na Sociologia, foi assistente do professor Fernando de Azevedo. No anedotário particular, o mestre Fernando o teria aconselhado a não deixar a Sociologia, alegando que o então jovem Antonio Candido estava casado com essa disciplina, mas “tinha uma bela amante”, a literatura, e que a troca poderia não dar certo.
A verdade é que, embora sociólogo, o futuro professor de Teoria Literária da USP dedicou-se à crítica literária desde sempre, a começar pela seção pertinente na mencionada revista Clima. Foi crítico de rodapé do jornal Folha da Manhã, cuja atividade lhe valeu o livro Brigada ligeira, publicado em 1945 e onde faz um balanço da produção literária nacional de 1943 e arredores. Ainda no campo jornalístico, foi o idealizador do “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo, uma das publicações mais famosas no gênero, em todo o Brasil, cuja direção coube, por indicação sua, ao amigo e companheiro Décio de Almeida Prado, até 1968. Depois ainda participou da criação de outras publicações, como a revista Argumento, fechada pela Ditadura de 1964. A vida jornalística certamente lhe marcou por meio de um ideal de clareza na escrita, sempre limpa de jargões demasiadamente especializados ou códigos de confrarias metodológicas, embora o rigor do método fosse sempre uma das balizas de seus estudos – tanto os acadêmicos quanto os jornalísticos.
Outra fonte da clareza em seus textos se encontra certamente na leitura das obras da geração antecedente de ensaístas, alguns dos quais viriam a ser colegas de percurso, como foi o caso de Sérgio Buarque de Holanda, autor de Raízes do Brasil, publicado em 1936. Outra obra de fôlego – mas que também pertence ao campo do ensaio – a lhe marcar a formação foi Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, de 1933. Nesse mesmo ano, Caio Prado Júnior publicava Evolução política do Brasil e, nove anos depois, o primeiro volume de uma série que não continuou, Formação do Brasil contemporâneo: Colônia, em que brilhava a palavra mágica que estaria no título da obra mais famosa de Antonio Candido: Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, publicada em 1959, embora concluída alguns anos antes.
Se o livro Formação… consagrou a passagem do ex-professor de Sociologia para o campo dos estudos literários, o fato é que, mesmo na carreira acadêmica, ele já bordejara esse campo em que desenvolveria seus principais estudos. Sua tese de livre-docência foi Introdução ao método crítico de Silvio Romero, publicada em 1945, em que ressalta a atividade do crítico literário. E a tese de doutorado, Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação dos seus meios de vida, publicada em 1964, mas defendida em 1954, partiu, conforme depoimento do próprio autor, “de uma pesquisa sobre poesia popular, como se manifesta no Cururu – dança cantada do caipira paulista”.
Em 1943, enquanto Candido militava na crítica literária na Folha da Manhã, seu mestre Fernando de Azevedo publicava o monumental estudo A cultura brasileira, obra também fundada, como outras acima citadas, no desejo de “interpretar” esse “fenômeno” chamado Brasil. Esse impulso interpretativo animou a perspectiva crítica e mesmo toda a trajetória intelectual de Antonio Candido, tanto nos escritos quanto na sua atividade como professor e orientador de pesquisas e teses. Tão importante foi essa sua última faceta que, é bom lembrar, um sem-número de discípulos e colegas mais jovens se referem a ele ou mesmo o chamam nos contatos pessoais simplesmente de “o professor”.
Se tal marca está presente em toda a sua obra, ela é evidentemente a “cicatriz de nascença” da sua também monumental Formação da literatura brasileira. Olhando para o passado antecedente da formação, o crítico (e discípulo de Antonio Candido) Roberto Schwarz aponta que:
Em seu momento inicial, digamos que a concepção rigorosa do objeto, com lógica interna e delimitação bem-argumentada, opunha a Formação… aos repertórios e panoramas algo informes que são tradicionais na historiografia literária. A novidade tinha a ver com o clima intelectual da Universidade de São Paulo dos anos 1940 e 1950, quando houve em algumas áreas da Faculdade de Filosofia um esforço coletivo e memorável de exigência científica e reflexão. Sem prejuízo da pesquisa, os trabalhos deviam ser comandados por problemas, a que deviam a relevância.10
Invertendo o sentido do olhar, visando o futuro (em relação a 1959), diz Schwarz:
Como estou querendo sugerir a fecundidade desta linha de trabalho, vamos tomar para contraste o procedimento universitário comum. Neste, os fatos da literatura local são apanhados sem maior disciplina histórica e revistos ou enquadrados pelos pontos de vista prestigiosos do momento, tomados à teoria crítica internacional e a seus pacotes conceituais. O chão social cotidiano e extrauniversitário da elaboração intelectual, pautado por suas contradições específicas, é substituído pelo sistema de categorias elaborado nos programas de pós-graduação, na maior parte norte-americanos, com brechas para franceses, alemães e ingleses. O universalismo infuso da teoria literária, que em parte nem decorre dela, mas da sua adoção acrítica noutras plagas, cancela a construção intelectual da experiência histórica em curso. Desaparecem, ou ficam em plano irrelevante, o juízo crítico propriamente dito e o processo efetivo de acumulação literária e social a que as obras responderam.11
Retomando as palavras-chave desse parágrafo de Roberto Schwarz, em sentido inverso, encontramos aí: “juízo crítico”, “experiência histórica”, “elaboração intelectual”, “chão social cotidiano”, “disciplina histórica”, “linha de trabalho”. São traços delineadores de uma perspectiva que acompanhou a trajetória intelectual de Antonio Candido desde sempre, segundo podemos inferir do depoimento do colega e amigo Décio de Almeida Prado. A junção desses elementos numa perspectiva metodicamente construída é que definiu, desde logo, a ousadia da crítica de Antonio Candido. Em outras palavras, ele teve a ousadia de buscar, baseando-se nas suas leituras dentro dos estudos literários e fora deles, a construção de uma metodologia própria de trabalho, que fosse adequada ao seu objeto de estudo, em vez de copiar alguma já pronta e procurar adaptar a leitura daquele a esta. No cenário brasileiro de então, essa foi a sua proeza – uma pirueta digna, de fato, das esgrimas de D’Artagnan no plano ficcional.
O aspecto fundante dessa atividade – apontado por Roberto no seu ensaio – é o juízo. Há portanto uma operação do gosto, da valoração, mas com fundamento do processo analítico da especificidade do literário. E dentro dessa especificidade, examina-se, para começar, a de cada texto em si considerado. Por isso, embora tenha o peso de um tratado, a Formação… nunca abandonou a marca do ensaio. Ela pode ser vista, mesmo em seus aspectos teóricos, como uma coleção de ensaios com valor próprio, mas emoldurados por uma metodologia de trabalho e um objetivo comum. Este é o de analisar como cada um deles se relaciona com o propósito maior e comum do conjunto e dos períodos em tela, do albor – ainda que um tanto vago e diluído – das letras iluministas, ao fragor, às vezes desequilibrado, do romantismo e de sua passagem ao momento seguinte, o dos “reformadores”, das letras e da pátria, ao final do século. Aquele propósito maior e comum era o desejo de construir uma literatura para, no e do Brasil.
A forma do desejo e suas implicações estéticas variaram com o tempo e os momentos literários. Os literatos do século XVIII tinham a intenção comum – embora alguns deles jamais se conhecessem – de mostrar à Ilustração europeia, que bruxuleava no Portugal às voltas com as reformas pombalinas e depois a reação a elas, que motivos brasileiros eram passíveis de serem considerados literariamente, e assim eles ambientaram, por exemplo, índios e florestas aos prados, rebanhos, pastores e pastoras com seus cajados e seu bucolismo idealizado num continente em que a urbanização se acelerava. Já os românticos transformaram esse impulso numa luta de caráter nacionalista, desejando incrustar no panteão literário do gosto do público a coroa de joias da brasilidade literária. Mas, se as formas do desejo se alteravam, a essência deste permanecia idêntica, dando aos escribas devotados o que a Formação… desenha como um senso de missão.
Na precariedade das instituições literárias brasileiras de então e na fragilidade do próprio sentimento de brasilidade numa pátria que por vezes parecia muito mais uma colcha de retalhos mal costurada e mal pela herança bragantina, esse sentido missionário se desdobrava em várias facetas. Destas a principal era a de primeiro plano, isto é, a construção de uma brasilidade literária, fosse ela ao encontro da universalidade literária ou da especificidade local. Mas havia uma outra, que subjazia, no segundo plano, mas que não era menos importante, servindo duplamente de pano de fundo e de moldura ao primeiro, e que era o sentimento de que, ao se fazer a literatura nacional estava também se fundamentando a criação da própria nação no plano da cultura e das atividades do espírito. Sublinhava essa função segunda a precariedade da vida intelectual como um todo no novo país, onde, durante muito tempo pensar a nação foi pensá-la literariamente ou pensá-la a partir da sua prática literária, como testemunha o caso do próprio Sílvio Romero, objeto de estudo de uma das teses do professor do século XX.
Esse jogo de quadros, motivos centrais, panos de fundo e molduras ressoava no próprio momento em que o professor Antonio Candido fundava e fundamentava seus procedimentos críticos. Esse momento – não menos decisivo na vida brasileira – era o do repensar o Brasil, que desde o fim dos anos 1920 até a primeira década depois da Segunda Guerra Mundial deixara de ser um país predominante agroexportador e passara a ser um país industrializado; de país com uma população predominantemente rural a um outro em processo rápido e vertiginoso de urbanização; de país organizado em torno de elites agrárias organizadas em torno da política do café com leite a um país com uma elite governante centralizadora e mais ou menos planejadora de um outro futuro para ele.
É a percepção desse Brasil em movimento que será o tema central do ensaio de Octavio Ianni, “Nação e narração”, no mesmo livro. “A nação, em seus múltiplos aspectos, pode ser vista como uma longa narrativa”12, é a abertura do professor Ianni. Depois ele dirá que essa narrativa pode ser visualizada também como uma cartografia, caracterizada pela multiplicidade e dissonância das vozes que compõem o seu espaço, mas igualmente o seu passado, o seu presente e sua projeção de futuros possíveis, como projetos que se chocam ao mesmo tempo em que se complementam. Esse choque de projetos e destinos diferentes e por vezes conflitantes, segundo o professor Ianni, é o movimento profundo que Antonio Candido lê na literatura e, com ela e através dela, lê no Brasil. Não que aquela literatura seja “reflexo” desse Brasil; ambos os polos são como os polos multipolares e multifacetados desse diálogo “em diferentes entonações”. “Sob vários aspectos, uma parte importante dos escritos de Antonio Candido situa-se neste clima: taquigrafar, compreender, explicar e imaginar a formação e a transformação da sociedade brasileira.”13
Quais são os “vários aspectos”? A lista é longa: “as formas do trabalho e da produção, de dominação e expropriação, luta e expiação, revolta e revolução, de par em par com a reforma e a conciliação, a revolução branca e a democracia racial, a sombra do poder e o homem cordial, a malandragem e a tropicália”.
A literatura, assim, é “sistema” e “emblema”, ambos conformados por “formação e transformação, polifonia e cacofonia”, em que “ressoam algum tipo de diálogo com outros escritos de outras literaturas, contemporâneas ou não”14. É desse modelo ou, melhor ainda, dessa forma de pensar que parte a fixação de dois momentos decisivos na formação literária brasileira, o Romantismo, cuja visão ampliada abrange o período de 1836 a 1870, e o Modernismo, de 1922 a 1945. São períodos de um autêntico aggiornamento na cultura brasileira, marcados, de modos diferenciados, por um “ardor de conhecer o país”15.
Da leitura de Antonio Candido emerge assim, segundo o professor Ianni,
…um Brasil não só original e surpreendente, mas também problemático, contraditório, errático. Aí convivem o local, o regional, o nacional e o cosmopolita, de par com o romântico e o moderno, o eclético e o exótico, o escritor engajado e o brasilianista nativo. Há sempre uma luta pela democracia, de permeio à vigência da oligarquia; sempre uma luta contra a tirania, em busca da cidadania.16
Na sua atividade como leitor desse “Brasil literário”, Antonio Candido sempre enfatizou, ou pelo menos nunca perdeu de vista, os limites circunscritos de nossa literatura erudita. Como observou em seu livro A educação pela noite e outros ensaios17, durante muito tempo – provavelmente graças à precariedade do alcance de nosso sistema educacional – a maior parte de nossa população viveu à margem dela. Mais recentemente, quando incorporada a formas da cultura velozmente urbanizada do Brasil do pós-guerra e mais ainda a partir do golpe militar de 1964, essa população simplesmente “saltava” por cima dessa literatura, incorporando-se à cultura de massa do rádio, da fonográfica, do cinema e da televisão (saltando também sobre o teatro). Pode ser que realidades novas no campo midiático, como a internet, estejam mudando esse panorama, pelo menos no que se refere à prática estética com a palavra escrita, mas isso é ainda um passo a descortinar, como bem demonstra a atual conjuntura brasileira no ano em que este ensaio foi escrito.
Diz ainda o professor Ianni:
Aos poucos, no vaivém das narrativas constituídas pelos escritos, desenha-se uma ampla narrativa articulada, uma visão clara e matizada de aspectos marcantes da formação sociocultural do Brasil, atravessando a Colônia, a Monarquia e a República. São épocas e rupturas, compreendendo controvérsias e perspectivas, que se abrem quando a literatura é vista como forma de expressar, exorcizar, decantar ou fabular o que são ou o que parecem ser as formas de sociabilidade e as tramas das forças sociais; ou os modos de ser, agir, sentir, pensar, imaginar, encantar e desencantar, com os quais se tecem as diferentes versões do que pode ser a realidade e o imaginário, a utopia e a nostalgia.18
Àqueles momentos identificados pelo professor Ianni seria necessário acrescentar a especificidade do momento de ruptura vivido a partir do golpe militar de 1964, a longa ditadura que se seguiu e o esvaziamento (mais do que a queda) desta, dando lugar a essa agitada Nova República em que ora vivemos.
Curiosamente, ao lado de evidentes ligações com os tempos ditatoriais num título como A educação pela noite e outros ensaios, de 1987, podemos ver essa ligação num ensaio de 1982, publicado na revista Novos estudos do Cebrap, sobre a passagem de Sérgio Buarque de Holanda por Berlim e a gestação, na capital alemã, do Raízes do Brasil, livro que Candido considera fundamental para se conhecer o país.
Nesse ensaio, Candido identifica a postura progressista e aberta de Sérgio, e como ela literalmente atravessa a maré então montante e avassaladora do nazifascismo europeu, mas também em escala mundial, inclusive em nossa terra. Mostra também como Sérgio se abeberou da praxis intelectual alemã, até a das suas generalizações tipificadoras, que poderiam tanto confundir como esclarecer a observação. Em duas passagens, cristalizou a sua “visão da visão” de Sérgio, com palavras que poderiam, mutatis mutandis, espelhar a sua própria condição e de sua obra nesse duplo decênio ditatorial da vida brasileira:
Sérgio respirou neste ambiente e conheceu alguns dos seus aspectos negativos, inclusive a duvidosa caracteriologia de Ludwig Klages. Mas a retidão do seu espírito, a jovem cultura já sólida e os instintos políticos corretamente orientados levaram-no a algo surpreendente: desse caldo cultural que podia ir de conservador a reacionário, de místico a apocalíptico, tirou elementos para uma fórmula pessoal de interpretação progressista do seu país, combinando de maneira exemplar a interpretação desmistificadora do passado com o senso democrático do presente. A “empatia”, o entendimento global que descarta o pormenor vivo, a “visão orgânica”, a confiança em certa mística dos “tipos”, tudo isso foi despojado por ele de qualquer traço de irracionalidade, moído pela sua maneira peculiar, e desaguou numa interpretação aberta, extremamente crítica e radical.
Depois:
Fascinados pela brilhante análise tipológica dos capítulos precedentes, os leitores nem sempre perceberam direito uma singularidade do livro [Raízes do Brasil]: era o único “retrato do Brasil” que terminava de maneira premeditada por uma posição política radical em face do presente. De fato, o livro é ao mesmo tempo uma análise do passado (que pegou mais) e uma proposta revolucionária de transformação do presente (que pegou menos).
Ora a articulação de ambos os momentos é essencial e constitui a motivação de toda a obra […]19.
É claro que observações como “jovem cultura”, ou a moldura intelectual da Alemanha pós-crise de 29 (embora esta fosse também importante para a formação do jovem intelectual, o Antonio Candido dos anos 1930), não caberiam para a descrição da circunstância do já calejado crítico literário dos tempos ditatoriais no Brasil entre 1964 e 1985. Mas o restante da vivência dentro de um caldo de cultura reacionário, inclusive dentro das universidades expurgadas de “elementos subversivos” à “posição política radical em face do presente”, cabe de fato e de direito.
Nas últimas décadas, Antonio Candido ajudou decisivamente a consolidar uma visão de nossa literatura – e, portanto, com ela, do próprio Brasil, como parte da América Latina. Ele já assinalara, desde sempre, nossa pertença latina enquanto herdeiros que somos desse legado europeu. Porém, a partir de seu encontro com o crítico uruguaio Angel Rama, em 1960, ambos passaram a visualizar uma visão unitária para os processos literários da América Latina, baseada nos grandes projetos e processos de “modernização” social e cultural do continente: mais ou menos o que se define a partir de 1870, depois a partir dos anos 1920 e da crise de 1929, e no período posterior à Segunda Guerra Mundial. À ideia dos influxos de culturas originais – a matriz europeia miscigenada às raízes africanas e indígenas – ajuntou-se a de uma autêntica fratria literária, numa América Latina vista não como um passado comum a manter e a recuperar, mas como um projeto cultural a construir, vislumbrado na(s) sua(s) literatura(s).
Dessa forma, ao lado do descortinar e do escrutinar suas raízes e seus espaços presentes por meio da leitura literária, Antonio Candido ajudou a aprestar a nossa literatura e a nossa crítica para novos voos além-fronteiras.
***
Confira, na TV Boitempo, a homenagem de Flávio Aguiar a Antonio Candido, apresentada durante a programação da VIII Semana de Ciências Sociais da USP, evento apoiado pela Boitempo Editorial. Leia a transcrição integral da homenagem, no Blog da Boitempo, clicando aqui.
Notas
1 Flávio Aguiar (org.), Antonio Candido: pensamento e militância (São Paulo, Humanitas/Fundação Perseu Abramo, 1999).
2 Décio de Almeida Prado, “O Clima de uma época”, em Antonio Candido: pensamento e militância, cit., p. 25-43; e Octavio Ianni, “Nação e narração”, em Antonio Candido: pensamento e militância, cit., p. 71-81.
3 Décio de Almeida Prado, “O Clima de uma época”, cit., p. 27-8.
4 Ibidem, p. 28.
5 Ibidem, p. 29.
6 Walnice Nogueira Galvão, “Vida, obra e militância”, em Antonio Candido: pensamento e militância, cit., p. 46.
7 Décio de Almeida Prado, “O Clima de uma época”, cit., p. 29.
8 Ibidem, p. 34.
9 Ibidem, p. 35.
10Roberto Schwarz, “Os sete fôlegos de um livro”, em Antonio Candido: pensamento e militância, cit., p. 85.
11 Ibidem, p. 84.
12 Octavio Ianni, “Nação e narração”, em Antonio Candido: pensamento e militância, cit., p. 71.
13 Ibidem, p. 72.
14 Ibidem, p. 73.
15 Esta expressão, citada por Ianni, é de Antonio Candido, no ensaio “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, de Literatura e sociedade.
16 Octavio Ianni, “Nação e narração”, em Antonio Candido: pensamento e militância, cit., p.P. 80.
17 Antonio Candido, A educação pela noite e outros ensaios (São Paulo, Ática, 1987).
18Octavio Ianni, “Nação e narração”, em Antonio Candido: pensamento e militância, cit., p.. 82.
19 Antonio Candido, “Sérgio em Berlim e depois”, Novos Estudos do Cebrap,(n. 3, São Paulo, Cebrap), p. 7-8.
***
Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Republicou isso em A festa é boa para pensar.
CurtirCurtir
Vai-se Antônio Cândido, sem ser místico, e ficamos cá com as moscas e as múmias de um
Congresso Nacional caolho, predominantemente oligarca.
CurtirCurtir