O primeiro e-book a gente nunca esquece
eis-me agora com o novo rebento lançado ao mar da virtualidade. É um livro, até mesmo segundo definição exarada não faz muito pelo STF, depois de 15 anos de andanças jurídicas, mas não há como pega-lo, nem sopesa-lo, muito menos cheira-lo. Não digo isto em seu detrimento, muito pelo contrário. Sinto-me algo rejuvenescido, uma pessoa do século XX subitamente transportada de vez para o XXI. Que a sorte nos bafeje, a mim e ao meu xará virtual.
Por Flávio Aguiar.
Acaba de sair na praça virtual meu primeiro e-book: trata-se de um romance policial, O legado de Capitu. Sinto-me assim como se tivesse atravessado o Rubicão, tanto pelo novo formato (para mim) da edição, quanto por ter passado a fronteira de um novo (também para mim) gênero.
Considero a história policial (romance, conto, dramaturgia) como a alma mater da narrativa moderna, isto é, pós-Poe. Claro que para mim a noção de “história policial” é muito vasta. Eu englobaria nela, por exemplo, pelo menos em parte, O Conde de Monte Cristo, de Dumas Pai, e Os miseráveis, de Victor Hugo.
Quem me ensinou a ver este gênero de maneira tão ampla e diversificada foi o saudoso professor Rui Coelho, da FFLCH/USP. Quando eu era estudante de pós-graduação assisti um curso seu de Sociologia da Literatura. Formalmente, o tema do curso era o romance Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (que também tem um toque daquele gênero, pois trata-se da narrativa da vingança de um crime e do cometimento de outro…). Mas até hoje não sei muito bem sobre o quê, exatamente, foi o curso. Sé me lembro que ele foi maravilhoso. Porque o professor Rui Coelho, grande amante e conhecedor de histórias policiais no sentido mais estrito da expressão, nos encantava com sua excepcional erudição, navegando por entre os meandros da literatura e dos liames dos diversos gêneros e suas mesclas, estabelecendo ligações surpreendentes (hoje diríamos links…) e inesperadas, sempre com grande astúcia e pertinência. Praticava ele o que mais tarde vim a saber, através do também brilhante professor Northrop Frye, no Canadá, ser o que este considerava o ápice da maturidade de um docente: a capacidade de realizar a “improvisação erudita” sobre os temas que tratar. Isto nada tem a ver com despreparo ou picaretagem. Pelo contrário: é mais ou menos realizar na sala de aula aquilo que um jazzista faz no espetáculo musical.
Quando eu desfrutei das aulas do professor Rui, já tinha uma bagagem considerável de leitura de histórias policiais stricto sensu. Já devorara todo o Sherlock Holmes. Fora (e ainda era e ainda sou) leitor e releitor assíduo da coleção do Mistério Magazine de Ellery Queen, publicação da Editora Globo, onde pontificava, dentre outros, Nero Wolfe. Já lera muito de Agatha Christie, acompanhando Hercule Poirot, Miss Marple e de sua peça A ratoeira. Simenon e Maigret me eram familiares. Entrara nos múltiplos segredos da Coleção Amarela, onde brilhava a estrela de Edgar Wallace. Era leitor contumaz da revista Detetive e dos quadrinhos da X-9, além de frequentador de filmes (Testemunha de acusação, A marca da maldade) e inúmeras séries de televisão, como a de Perry Mason e sua secretária Della Street. Sem falar em séries radiofônicas e quadrinhos nacionais, como O Anjo, respectivamente de Álvaro Aguiar e Flávio Colin). E Poe eu já mencionei.
Mas foram as aulas do professor (além de leituras como a do ensaio “Monte Cristo ou da vingança”, de mestre Antonio Candido) que começaram a me abrir os olhos para o íntimo parentesco que havia entre a ascensão do capitalismo vertiginosamente industrializado e urbanizante, mesmo nas suas periferias, e um certo tipo de crime e a tentativa (frustrada ou bem sucedida) de sua elucidação. Apoiado na ideia de indivíduo e de individualismo, este capitalismo nascente afogou-a, em grande parte, na vertente da massificação da vida que trouxe consigo, cujo retrato precoce e eloquente é “O homem da multidão”, de Poe. E também pode levar ao destino de Raskolnikoff em Crime e castigo ou ao suicídio de Anna Kariênina debaixo das rodas de um trem. Por isto nesta sociedade capitalista o crime misterioso, que pede sua elucidação nem sempre possível, é inevitável. Mas as revelações não ficaram nisto. Vieram as leituras de Baudelaire escrevendo sobre Poe e o ilustrador Guy, por exemplo, e a revelação das revelações: ler ou ver Édipo Rei, de Sófocles, como uma história policial fantástica, em que o detetive é o criminoso, em que todo mundo na plateia já sabe da história toda e assim mesmo a segue com sofreguidão. E veio Macbeth… e muito e muito mais.
Entretanto, escrevendo histórias desde os tempos de criança, sempre me detive respeitosa e timoratamente no portal das de crime e elucidação. Na adolescência fiz algumas tentativas, mas saíram tão canhestras e desajeitadas que queimei-as e desisti. Segui lendo o gênero, como um apaixonado secreto e com avidez crescente, sobretudo depois que me aposentei na universidade e pude relaxar (no sentido positivo…) nas leituras, sem a obrigação de adequar grande parte delas a cursos, seminários, teses, orientações, projetos, relatórios… Talvez por isto minha companheira Zinka Ziebell, dos anos mais recentes e berlinenses, começou a perguntar por que eu não escrevia alguma destas histórias. Tanto bateu na tecla que eu ouvi a melodia por trás dela e decidi enfrentar o desafio, saindo-me esta, O legado de Capitu, uma história em que a consideração de como se pode interpretar esta expressão sobre a personagem de Machado é o fio da meada da investigação, que tem vários meandros a perscrutar, no presente, no passado, e muita interrogação sobre o futuro – do nosso país e do mundo em que vivemos, povoados por tantos crimes que fazem o mencionado “O homem da multidão”, de Poe, parecer um ensaio de laboratório (o que não compromete sua qualidade seminal).
O detetive da história é um pacato e algo rotineiro professor aposentado, brasileiro, que atualmente vive em Berlim, e que recebe o pedido de um ex-policial, também aposentado, para que o ajude a elucidar o desaparecimento de um jornalista que deixou uma mensagem falando deste “legado” da Maria Capitolina, aliás, Capitu. O professor – cuja vida a partir daí vai passar por trepidações inusitadas – se chama Edmundo Wolf. O parentesco dele com meu sobrenome materno é proposital, bem como seu primeiro nome, cujos sentidos se elucidarão ao longo da narrativa. Mas o romance e o personagem nada têm de autobiográficos, a não ser por um detalhe da natureza de um negativo fotográfico (uma expressão e um artefato em vias de desaparecimento neste século XXI densamente digitalizado). O referido professor (ele, não eu) se exilara em Berlim Ocidental durante boa parte da ditadura civil-militar decorrente do golpe de 1964. Agora (no presente da narração e da narrativa, situada livremente um pouco antes do novo golpe, desta vez parlamentar, midiático, jurídico e policial), ele vive novamente na capital alemã, buscando, como o narrador Bentinho de Dom Casmurro, reconstruir os símbolos do seu passado de jovem no presente do envelhecimento. Tal não é a minha história. Acontece que em determinado momento (que já narrei em outras ocasiões) daquela ditadura, me vi na circunstância de ter de optar entre ficar no Brasil ou sair dele. Decidi ficar. Mas sempre me perguntei o que seria de minha vida se eu tivesse feito a outra opção, a de seguir o caminho do exílio. De certo modo, a criação deste personagem é uma resposta inteiramente hipotética e fantasiosa a esta pergunta que, se não é angustiante, não deixa de ser interessante. O que, se não é uma solução, pelo menos é uma rima.
Nas lides posteriores à escrita e revisão da narrativa (no que tive a valiosa colaboração crítica da Zinka, da Maria Rita Kehl, do Paulo Neves da Silva e da Ivana Jinkings), graças a cooperação desta, da Boitempo, e do Tiago Ferro, da e-galáxia, nasceu a hipótese oportuna e sedutora da publicação em e-book. Aceitei-a, entre fascinado e ao mesmo tempo temeroso, pois, afinal, do alto do meu metro e oitenta e três de altura setenta anos me contemplam.
Enfim, para encurtar esta já alongada crônica, eis-me agora com o novo rebento lançado ao mar da virtualidade. É um livro, até mesmo segundo definição exarada não faz muito pelo STF, depois de 15 anos de andanças jurídicas, mas não há como pega-lo, nem sopesa-lo, muito menos cheira-lo. Não digo isto em seu detrimento, muito pelo contrário. Sinto-me algo rejuvenescido, uma pessoa do século XX subitamente transportada de vez para o XXI. Que a sorte nos bafeje, a mim e ao meu xará virtual.
Como se dizia desde muito tempo atrás, “alea jacta est”.
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Onde encontrar?
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Devo agradecer também à Thaisa Burani, a revisora da Boitempo, que deu valiosas sugestões.
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Boa sorte em sua jornada virtual,sr. Edmundo Wolf!
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Danke schön!!!
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