Existências diaspóricas. Caminhos que convergem.
Judith Butler é mais conhecida no Brasil pela produção em estudos de gênero. No entanto, para além disso, a intelectual tem se colocado como ativista cada vez mais atuante em torno da questão das relações Israel-Palestina, pautando a necessidade ética de que judeus posicionem-se de forma crítica à política praticada pelo Estado de Israel em relação aos palestinos e demais minorias na região.
Por Juliana Borges.
Em tempos de ampla necessidade de defender e discutir formas mais radicalizadas de democracia e convívio plural, a recente publicação do livro de Judith Butler, Caminhos divergentes: judaicidade e crítica do sionismo realiza-se em momento oportuno.
Judith Butler é mais conhecida no Brasil pela produção em estudos de gênero. No entanto, para além disso, a intelectual tem se colocado como ativista cada vez mais atuante em torno da questão das relações Israel-Palestina, pautando a necessidade ética de que judeus posicionem-se de forma crítica à política praticada pelo Estado de Israel em relação aos palestinos e demais minorias na região.
Neste livro, a autora procura discutir como elementos religiosos judaicos transformaram-se em um discurso político e de criação de um Estado-nação. E é partindo da ética e princípios judaicos, que Judith Butler negará a necessidade da associação do judaísmo ao sionismo político, tendo em vista que, este último, afirma uma política de ocupação territorial e práticas coloniais de povoamento que aprofundam descriminação ao povo palestino e minorias contrapondo-se, assim, a princípios fundamentais da judaicidade, como a justiça e a alteridade. Ela afirma:
“somente com o fim do sionismo político, entendido como a insistência em fundar o Estado de Israel nos princípios da soberania judaica, é que se pode realizar naquela região os princípios mais amplos de justiça.” (p. 28).
Neste sentido, Butler questiona a determinação do judaísmo atrelado à existência do Estado de Israel, principalmente nos marcos em que este processo se estabeleceu, e nega que a crítica a atual política do Estado israelense, ou que aquele território tenha apenas o povo judeu como referência, seja antissemita. A autora toma o cuidado de separar a construção de um olhar crítico e, portanto, salutar por parte de judeus sobre a questão, mas pontua que, obviamente, uma oposição ao sionismo por ser contra judeus é, sem dúvida, uma posição antissemita. Todavia, sua afirmação carrega, ainda, que fazer esta crítica a partir da ação política do Estado de Israel não significa negação da judaicidade, se não a retomada da ética judaica tendo a justiça como princípio central.
A autora lança mão de importantes pensadores como Edward Said, Emmanuel Lévinas, Hannah Arendt, Primo Levi, Martin Buber, Walter Benjamin e Mahmoud Darwish estabelecendo diálogos com suas obras, contrapondo-as e apontando as questões centrais de suas ideias e os pontos que são por ela considerados na formulação de questionamentos e na construção de uma possível nova ética política.
Um dos pontos do pensamento de Edward Said, segundo a autora, é o conceito de constituição da existência judaica, ao afirmar que “o judaico nunca pode ser separado totalmente da questão de como viver entre não-judeus” (p. 37). Ou seja, pensar a história judaica é também pensar a história palestina ao atentarmos para o “caráter diaspórico” das existências e histórias de ambos. Não se trata, porém, de uma analogia e sobreposição das histórias de judeus e palestinos, mas de retomar a perspectiva da alteridade, dispersão e exílio marcados nas identidades e histórias constitutivas dos dois povos. Este é um dos argumentos iniciais, e também presentes no decorrer e conclusão do livro, do que permitiria a possibilidade de um projeto binacional e de coabitação entre judeus e palestinos. Ao retomar a leitura de Said sobre a história de Moisés e sua relação com “um momento fundacional do judaísmo – aquele em que a lei é transmitida para o povo” (p. 38), um egípcio-árabe e judeu e que, portanto, constitui em si ambas as culturas, Butler irá delinear estas existências distintas e divergentes, mas que encontram pontos convergentes nas experiências de dispersão e exílio. Com isso, a “coarticulação com a alteridade” presentes em um judeu árabe guardaria um princípio fundador e indissociável da vida judaica. A filósofa entende neste conflito inerente uma janela para construir novas existências e pertencimentos, além de possibilitar uma reorganização radical sobre cidadania e direitos construídos sob premissas multiculturais. Ou seja, por ser diaspórico em sua origem, o judaísmo mantém como princípio uma relação ética com refugiados, despossuídos e povos necessitados.
Porém, para Butler, a coexistência entre os povos só será possível acabando com a subjugação colonial do povo palestino. Desta prerrogativa, a autora aprofundará sua reflexão em diálogo com conceitos trabalhados por Walter Benjamin sobre a crítica da violência de Estado; violência coercitiva por parte do aparelho estatal; o conceito de violência legal, que se realiza por um sistema de leis e pela força militar e policial que obrigam os indivíduos a agir de acordo com estas leis a tal ponto que suas definições cívicas só ocorrem pela relação com a lei. Para a autora, um Estado israelense constituído sob estas bases confrontam a ética judaica, posto que abandona o princípio da igualdade.
Além disso, Judith Butler estabelece diálogo e apresenta formulações importantes da também filósofa e uma das maiores críticas da formação do Estado de Israel, Hannah Arendt. Nos capítulos em que conversa com o pensamento de Arendt, a autora se referenciará na crítica ao “Estado-nação”, afirmando, logo de início que “a judaicidade pode e deve ser entendida como um projeto anti-identitário” e que, portanto, deve “assumir uma relação ética para com o não judeu”, algo que demanda uma “vida em condições de igualdade em um mundo socialmente plural” como um “ideal ético e político”. Não se trata, contudo, de uma defesa de dispersão e não pertencimento do judeu, mas de abrir-se para “deslocamentos de identidade” que, desta existência dispersa, retomem princípios que construam uma “nova concepção de justiça política”. Com isso, Judith Butler delineia compromissos com os direitos dos palestinos refugiados, além de “uma crítica dos modos nacionalistas de violência de Estado que sustentam a ocupação, confisco de terras e a prisão política e o exílio de palestinos” (p. 122).
O conceito de pluralidade tem também centralidade no texto, já que, para Butler, a coabitação é um conceito e ação necessária, só possível com o fim do colonialismo de povoamento. Este, por sua vez, é colocado em questão, posto que se constitui necessariamente de forma violenta e na constante negação do outro e que, para a filósofa, significará uma negação de si, dada as relações de existência entre os povos.
A filósofa enxerga uma relação dialética entre os dois povos, na qual a perpetuação da violência contra o povo palestino e minorias é, também, uma violência ao povo judeu, no sentido de que “não se pode defender o povo judeu da destruição sem que se defenda o povo palestino da destruição. Se a proibição contra a destruição não se universaliza, então a destruição do ‘Outro’ é buscada sob o princípio de que só é possível sobreviver mediante essa destruição. Mas a verdade é que a destruição da vida e do sustento dos palestinos só tende a aumentar a ameaça de destruição contra quem a perpetrou, pois fornece fundamentos contínuos para um movimento de resistência que tem versões violentas e não violentas” (p. 124). Para Arendt – e Butler concorda –, o Estado-nação força o aumento de refugiados e esta ação é constitutiva deste Estado, pois nisso é baseada a sua hegemonia. Ora, este embasamento e ação contínua ferem totalmente a ideia de pluralidade como princípio da ética proposta pela autora.
A ética da pluralidade, no entanto, é mais aprofundada conforme a filósofa avança na defesa da coabitação de judeus e palestinos. Para Arendt, a coabitação “deriva de uma análise de uma condição de exílio” e, portanto, por ser diaspórica terá como condição ética a relação com outros povos não judeus. Além disso, é característica da coabitação a consideração do ponto de vista do outro e a negação do Estado-nação, posto que perpetua e se sustenta na constituição de refugiados e exilados. Sob esta perspectiva, o Estado-nação não faz sentido, pois evoca o nacionalismo e o pertencimento de apenas um povo, excluindo, com isso, demais nacionalidades. Para a autora, estabelecer um Estado-nação é contrário aos princípios judaicos e a ética judaica. A coabitação, articulada à defesa do binacionalismo, demanda a pluralidade e, portanto, impõe a preservação das nossas vidas e dos outros que coabitam conosco.
Judith Butler não tem, com este livro, a pretensão de apresentar saídas definitivas e soluções mágicas ao conflito entre Israel e Palestina. A filósofa propõe-se, pela perspectiva da teoria crítica, apresentar questões e reflexões sobre possibilidades, divergências, mas, sobretudo, sobre as convergências entre o povo judeu e o povo palestino. Evoca, portanto, conceitos de igualdade, justiça, culpa, perdão, pluralidade, alteridade para propor princípios éticos, absolutamente indissociados da judaicidade em sua visão, norteadores de uma ação que reestabeleça diálogos menos apaixonados e mais cooperativos e democráticos. Ou seja, uma ética emancipatória e de reconhecimento do outro como constitutivo de nós mesmos.
Após passar pela importante contribuição de Primo Levi e do seu processo de narrativa e memória, Judith Butler nos apresenta o diálogo literário da poesia de Mahmoud Darwish em diálogo com a crítica de Edward Said. Das existências diaspóricas e da construção possível-impossível, é importante não permitir apagamento histórico. Nomear os conflitos, expô-los em palavra, fala e memória é um caminho condicionante para qualquer resultado possível-impossível. Da justiça como parte dos princípios judaicos, proteger “os direitos das minorias e dos refugiados contra a expulsão e a contenção forçadas” é uma questão e compromisso ético e que deve, aos olhos de Butler, engajar todos os judeus comprometidos com a igualdade e ideias democráticos.
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Juliana Borges é pesquisadora em Antropologia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde cursa Sociologia e Política. Foi Secretária Adjunta de Políticas para as Mulheres da Prefeitura de São Paulo (2013). Escreve para o Blog da Boitempo mensalmente, às quintas-feiras.
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