Os tempos duros e balofos que nos foram dados para viver
O filme "American Honey" é uma metáfora perfeita dos tempos duros e balofos que nos são dados para viver. Em que tudo é paródia de tudo. E da pior espécie.
Por Flávio Aguiar.
Eu assistia American Honey, filme de Andrea Arnold com Sasha Lane (excepcional, aliás!) como protagonista. É um destes road movies, sobre uma garota pobre que escapa de sua casa no Meio-Oeste norte-americano, e para ganhar dinheiro se junta a uma trupe de espertinhos, espertalhões e idiotas que roda pela região arrancando dinheiro de fregueses incautos que compram as ideias mirabolantes e as outras bobagens que vendem. Durante o filme inteiro (ótimo) fiquei esperando: quando é que a catástrofe vai acontecer? Eu esperava algo como o crime, o estupro, o roubo, algo assim.
Lá pelas tantas, a descoberta me assaltou: “a catástrofe já aconteceu”! O que estamos vendo já é a pós-catástrofe, a história de um bando de gente sem rumo que percorre estradas e mais estradas em busca de uma sobrevivência menor, desesperançada, sem valores, uma humanidade desconstruída de seu status. O fim da picada. Uma mistura de Juventude transviada dos anos 50 com Easy Rider do fim dos anos sessenta, sem o glamour dos roqueiros de lá e dos hippies de cá.
Este filme – American Honey – é uma metáfora perfeita dos tempos duros e balofos que nos são dados para viver. Em que tudo é paródia de tudo. E da pior espécie.
Vivemos uma paródia da Guerra Fria. Mais perigosa do que essa, porque os bufões que a controlam são mais néscios. Trump é uma paródia ridícula de Bush Filho, que já era uma paródia ridícula de Bush Pai e Ronald Reagan juntos. E estes já eram paródias decadentes de Richard Nixon e Dwight Eisenhower.
Hillary Clinton virou uma paródia ridícula de seu Bill, que já parodiava Jimmy Carter. Bom, este, pelo menos, não era paródia de ninguém.
E Obama? O presidente virou uma paródia do candidato. Não fechou Guantánamo, não mereceu o Nobel da Paz que recebeu como um cheque em branco, adiantado. Paródia de Franklin Delano Roosevelt.
Já Putin é difícil de dizer quem parodia. Yeltsin, não. Gorbachev, muito menos. Talvez algum Czar ou até mesmo, quem sabe, Catarina II, a Grande. Durante o império desta a Rússia modernizou-se, incluindo a administração pública, tornou-se mais autocrática, eficiente, e despontou como uma potência que rivalizava com as europeias (naquela época os EUA nem existiam), e o poder da aristocracia (hoje os moguls das máfias e oligarquias russas) cresceu. De todo modo, a Rússia de hoje é, não só uma paródia da dos Czares, como da finada União Soviética também. Putin é um pequeno Stalin modernizado, sem os sonhos de tornar-se o Ivan, o Terrível, deste.
Vamos adiante. Na Europa de hoje despontam os líderes das extremas-direitas, de Marine Le Pen a Geert Wilders, de Frauke Petry na Alemanha a Matteo Renzi na Italia. São caricaturas farsescas e grotescas, embora perigosoas, as figuras trágicas dos anos 20 e 30. A social-democracia e os socialistas europeus se tornaram também paródias de seus inspiradores mais antigos e sóbrios, como Willy Brandt ou Mitterand, depois de sua capitulação diante dos princípios neo-liberais. Idem, os Verdes, que, junto com o SPD alemão, patrocinaram o apoio à intervenção armada no Afeganistão e a vaga neoliberal que fez encolher os direitos trabalhistas na Alemanha. Mesmo os conservadores de hoje – Angela Merkel à frente (de Sarkozy, Berlusconi, Beppe Grillo nem é bom falar) – dão saudades de gente como Winston Churchill e Konrad Adenauer.
África? Zuma é um pálido Mandela… Onde estão Ben Bella, Senghor, Lumumba, e muitos outros? O Ghadaffi que caiu era uma paródia do Ghadaffi que subiu, assim como aconteceu com Sadam Hussein e com Bashar Al-Assad, que ainda não caiu. O Israel de hoje é uma paródia cruel dos ideais de sua criação.
Os líderes do comuno-capitalismo chinês não lembram os valores da revolução vitoriosa em 1948. O Vietnã de hoje é uma sombra daquele que derrotou a maior potência mundial nos anos 70, tendo ainda, antes, derrotado a França colonialista.
Nas nossas Américas, o destino não é melhor. Os golpistas de hoje, senhores das verbas e dos poderes, são pequenas marionetes diante dos golpistas de antanho: Temer, o ridículo, Geddel, o fominha, Padilha, o assanhado, etc., etc. Talvez o político que melhor espelhe esta decadência seja FHC. O político FHC foi uma paródia do professor FHC, e assim por diante: o ministro foi uma paródia do político, o presidente I uma paródia do ministro, o presidente II uma paródia do I, e o FHC de hoje, que já foi rebaixado de Príncipe da Sociologia a Barão de Higienópolis, hoje não passa de um síndico da massa falida do PSDB. Haveria mais: Aécio, paródia de Tancredo, ACM Neto, paródia do avô, que já era paródia de Pinheiro Machado.
A lista parece não ter fim. E não tem. Seguiremos por muitos anos prisioneiros do círculo destes lumpen-políticos, espelhos dos lumpen-plutocratas que tomaram conta das finanças mundiais.
Desesperança? Pessimismo? Longe disto. Como me disse o mestre Antonio Candido, devemos ser pessimistas na análise e otimistas na ação. No fim de American Honey parece que a protagonista vai se afogar. Mas de um salto ela volta à tona para respirar. É por aí. Neste mundo duro e balofo, a Fênix das cinzas é uma inspiração.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
O Lula, Zé Dirceu, Dilma….. são paródias de quem ?
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Apesar de não ter muita simpatia por análises políticas baseadas em pessoas, de forma descontextualizadas, porém o artigo é criativo. O autor fica devendo porque os leitores, em geral, ficam sem as explicações e sem saber aonde ele quer chegar, isto é, quais os elementos teóricos e históricos que explicam a crise? Se essa não a intenção então o título devia ser outro.
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Sabe o que acho na condicao de leitora? Flavio Aguiar foi muito claro ao tecer as analogias. E, ao final, quer chegar `a possibilidade de reavermos o controle do pais antes da derrocada total. Logicamente esta , digamos “emersao”, sera’ possi’vel apenas com mobilizacao do povo e dos representantes da Lei que ainda possuirem amor ao seu pais e dignidade para representa-lo .
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Obrigado pelos comentários. Manoel: não considero Lula, Dirceu, Dilma, paródias, Por isto mesmo não os citei. Podem ser responsáveis por outros problemas, mas não por estes da imitação rebaixada de cacoetes anteriores. Antonio: one quero chegar? A uma leitura crítica da história, ora. O resto é com você, eu e os e as demais leitoras e leitores. Abraços.
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Muito bom.
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Atenção, leitor@s
Errei de Matteo. Pensei certo, mas escrevi errado. Ao invés de Matteo Renzi, trata-se de Matteo Salvini, deputado e secretário-geral da Lega Nord italiana.
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Excelente texto, embora além da comédia é mesmo uma tragédia.
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Uau, isso é que é texto bom de ler. Obrigada.
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Gostei muito do texto. Descreve e aponta os principais nomes da mediocridade política que vivemos. Mostrou de maneira clara que este rebaixamento da qualidade é estimulado e contribui para o massacrante controle do grande capital que detém o domínio em toda a sociedade.
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Quando os textos do Aguiar tem uma natureza mais literária como este, são muito bem escritos, da gosto de ler. Porém se tender para a análise científica, bem, aí tem muitas contradições.
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Flávio, muito bom seu texto. Traz-me alegria saber que há vida inteligente sobre a crosta terrestre. Obrigado pela contemporaneidade.
Ler suas palavras me faz ir além do pensamento rasteiro que domina e faz dormitar.
Oxalá possamos, no otimismo da prática, construir outra realidade para seguirmos vivendo.
Forte abraço.
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