A obra-prima de Evguiéni Pachukanis | Por Alysson Mascaro
"A partir da obra de Pachukanis, revela-se impossível apostar na transformação social por caminhos jurídicos ou estatais: a forma jurídica e a forma política estatal são elementos centrais do capitalismo. Exploração capitalista é direito e ordem estatal."
Por Alysson Leandro Mascaro.
Pachukanis é, ao mesmo tempo, o mais importante pensador do direito da história do marxismo e o teórico que conduziu a investigação jurídica contemporânea ao seu patamar mais alto. No começo do século XX, quando da explosão das contradições da sociedade capitalista, momento em que se gestavam as grandes formulações do direito que servem de arcabouço aos juristas até hoje, Pachukanis logrou ultrapassar tanto as visões juspositivistas quanto aquelas variadas, não-juspositivistas, que associavam o direito genericamente a fenômenos de poder ou força. Em torno do pensamento pachukaniano se lastrearam, então, os marcos incontornáveis da crítica do direito.
Em sua principal obra, Teoria geral do direito e marxismo, alcançou as determinações materiais e específicas do direito. Para tanto, deslocou a própria identificação do fenômeno jurídico: não na normatividade, mas, sim, numa forma de relação social, baseada na subjetividade jurídica. No capitalismo, com o trabalho como mercadoria dando forma à sociabilidade, os vínculos entre pessoas que se consideram livres e iguais erigem uma equivalência para a produção e a circulação que as faz serem tomadas, umas perante as outras, como sujeitos de direito.
Lastreado em uma sofisticada leitura de O capital, de Marx, Pachukanis avança para além do embasamento classista sobre o direito (que teve seu apogeu com Piotr Stuchka). A produção capitalista é estruturada a partir da forma-mercadoria. Da mercadoria, então, deriva a forma de subjetividade jurídica. A equivalência de tudo com tudo só é possível com a equivalência de todos com todos, o que apenas o capitalismo enseja. Por isso, a forma jurídica é especificamente capitalista. A existência do direito é sintoma de uma sociabilidade voltada à acumulação, lastreada em exploração do trabalho assalariado e atravessada por contradições de classe.
A partir da obra de Pachukanis, revela-se impossível apostar na transformação social por caminhos jurídicos ou estatais: a forma jurídica e a forma política estatal são elementos centrais do capitalismo. Exploração capitalista é direito e ordem estatal. Pachukanis demonstra os limites das visões políticas conservadoras, institucionais, juspositivistas e liberais e, também, daquelas que apostavam em transformações por meio do Estado, ultrapassando um arco de “socialismo jurídico”, nas palavras de Engels e Kautsky, que vai dos variados desenvolvimentismos ao uso alternativo do direito ou até mesmo às experiências dos países soviéticos.
Com a publicação de Teoria geral do direito e marxismo, Pachukanis alcançou o respeito de juristas de variadas estirpes e marxistas de muitas áreas. Depois, por conta de suas ideias, foi perseguido e morreu, em 1937, sob os processos políticos stalinistas. A atualidade do método pachukaniano e a radicalidade de seu pensamento, porém, foram redescobertas e revalorizadas a partir do final do século XX e, em especial, agora no século XXI. Em face das contradições do capitalismo e do impasse das lutas atuais, está em Pachukanis o melhor índice a respeito das formas jurídica e política da sociabilidade presente e das possibilidades de sua superação.
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Obra de referência e maior marco da filosofia marxista do direito. Traduzido diretamente do russo, Teoria geral do direito e marxismo ganha edição especial com prefácio de Antonio Negri e textos inéditos de China Miéville, Umberto Cerroni, Karl Korsch, John Hazard, Carlos Rivera-Lugo, Dragan Milovanovic e Jean-Marie Vincent.
Onde encontrar?
- Livraria Saraiva
- Livraria da Travessa
- Livraria Martins Fontes
- Amazon
- Livraria da Folha
- Cia dos livros
- Loja virtual da Boitempo
Com tradução feita diretamente do russo por Paula Vaz de Almeida, com revisão técnica de Alysson Leandro Mascaro e Pedro Davoglio, a edição vem acrescida ainda de um índice onomástico cuidadosamente preparado e de uma compilação das principais obras de Pachukanis, além de um retrato feito pelo artista Luiz Fernando M. Costa, em óleo sobre tela, feita especialmente pra o livro!
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Alysson Leandro Mascaro, jurista e filósofo do direito brasileiro, nasceu na cidade de Catanduva (SP), em 1976. É doutor e livre-docente em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo (Largo São Francisco/USP), professor da tradicional Faculdade de Direito da USP e fundador e professor emérito de muitas instituições de ensino superior. Publicou, dentre outros livros, Filosofia do direito e Introdução ao estudo do direito, pela editora Atlas, e Utopia e direito: Ernst Bloch e a ontologia jurídica da utopia, pela editora Quartier Latin e o mais recente Estado e forma política, pela Boitempo. É o prefaciador da edição brasileira de Em defesa das causas perdidas, de Slavoj Žižek, e da nova edição de Crítica da filosofia do direito de Hegel, de Karl Marx, ambos lançados pela Boitempo.
Concordo perfeitamente que o direito, da forma como existe hoje, porque existiu o direito romano, muito importante ainda como referência, foi consolidado na sociedade burguesa, sobretudo a partir das grandes revoluções dos tempos modernos, sobretudo a Revolução Francesa. É na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 e na Constituição de 1793, onde se consolida o princípio da igualdade jurídica entre os cidadãos. A obra de Marx, a partir do princípio da equivalência, introduz algo novo, assim como desmitifica não só a questão da igualdade mas como levanta algo relevante que é a desigualdade que essa igualdade tenta esconder, que é a exploração do trabalho pelo capital.
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O direito é um fenômeno historicamente situado. Densenvolveu-se através de um longo processo de abstrativização e especificação das relações sociais reais até alcançar a sua forma mais apurada e etérea na sociedade capitalista. Antes, durante as idades antiga (grécia e romana) e medieval, o fenômeno jurídico não havia se diferenciado o suficiente de outros sistemas normativos reguladores das condutas, confundindo-se com a tradição familiar (o “pater familias”), a religião, a moral, etc. Havia direito apenas de um modo embrionário, não-desenvolvido, difuso, ainda não especificado plenamente como a forma-jurídica socialmente universalizada. A comparação pode ser feita, de certo modo, com a propriedade privada enquanto instituição socio-histórica apenas hoje plenamente desenvolvida em todas as suas determinações contraditórias. O processo histórico que leva à complexificação cada vez maior da base material das sociedades conduz também à especificação e abstrativização progressiva das formas ideopolíticas e ideojurídicas reificadas na cabeça dos homens. Pachukánis contribuiu profundamente para desfazer essa mistificação geral que reina nos círculos jurídicos habitados pelos juristas de pensamento tradicional que vivem com suas cabeças nas “altura platônicas” da abstração jurídica. A superação do capitalismo como sistema de controle sociometabólico circunscrito historicamente leva à superação do direito como uma sua técnica específica de regulação dos comportamentos dos homens.
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