O “Tex” de Breccia
Por Luiz Bernardo Pericás.
Alguns meses atrás, num jantar em homenagem ao escritor cubano Leonardo Padura, o amigo Gilberto Maringoni comentou que havia acabado de ser lançada no Brasil a edição gigante de Tex, desenhada por ninguém menos que o argentino Enrique Breccia, um dos maiores quadrinistas em atividade. No dia seguinte, parei na primeira banca de jornal que encontrei e comprei meu exemplar.
O trabalho inaugural de Enrique foi aos vinte e poucos anos, quando preparou o álbum Vida del Che (1968), junto com seu pai, o consagrado Alberto Breccia, famoso por ilustrar, entre outros, o clássico El Eternauta, de Héctor Oesterheld. O traço marcante do artista promissor se fez perceber na hora: sem dúvida, as partes esteticamente mais ousadas da HQ sobre Guevara foram feitas pelo jovem portenho.
Ao longo do tempo, ele colaborou com a editora britânica Fleetway, com as norte-americanas DC Comics e Marvel e com a francesa Delcourt, dando vida a personagens como Batman, X-Men, Monstro do Pântano e Dylan Dog. Além disso, ilustrou uma biografia nada convencional do escritor H. P. Lovecraft e publicou os belíssimos La guerra del desierto, O colecionador de sonhos, O caçador do tempo e Historias cortas, este último com narrativas impactantes como “El regreso”, “Argelia 1959”, “El amigo” e “La espera” (acompanhadas de versões de contos e poemas de Juan Pedro López, David Viñas e Esteban Echeverría). Para quem não conhece a obra do mestre bonaerense, sem dúvida, vale checar sua arte gráfica desde o final dos anos sessenta até a atualidade. Desta vez, Breccia foi convidado a participar de uma nova empreitada: uma história do velho oeste.
A partir da década de quarenta, a Itália se destacou por desenvolver uma pujante indústria cinematográfica, com películas de estilos e temas bastante heterogêneos. De filmes neorrealistas e comédias às produções mais caricatas como as Sword and Sandals e os bangue-bangues, os bachiches produziram centenas de fitas emblemáticas. O mesmo pode ser dito dos quadrinhos no país. É só lembrar de Hugo Pratt e seu Corto Maltese; de Diabolik, de Angela e Luciana Giussani; de Zagor de Sergio Bonelli; de Ken Parker de Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo; de Tiziano Sclavi com o ousado Dylan Dog; e dos álbuns eróticos de Guido Crepax, Milo Manara e Paolo Eleuteri Serpieri. A lista é extensa. É claro que não se pode esquecer do mais exitoso de todos eles, pelo menos em termos de vendas no mundo inteiro, o herói do faroeste Tex Willer, criado em 1948 pelo roteirista Giovanni Luigi Bonelli e o ilustrador Galep (Aurelio Galleppini), um dos maiores sucessos das HQs contemporâneas. Não custa lembrar que Tex é o comic book italiano há mais tempo sendo editado continuamente: quase setenta anos seguidos! No Brasil, começou a ser publicado em fevereiro de 1971, e de lá para cá, passou pela Vecchi, Rio Gráfica (RGE), Globo e, por fim, pela Mythos.
Inicialmente um fora-da-lei, Tex se tornaria um ranger e ganharia um parceiro de aventuras, Kit Carson; uma esposa navajo, Lilyth (filha de Flecha Vermelha); e um herdeiro, o jovem Kit Willer. Mas, também, teria inimigos: Mefisto, Yama e Proteus seriam só alguns deles… Ainda que inspirado nos filmes de caubói de Hollywood, esta é a série que talvez mais dialogue com os Spaghetti Westerns, como aqueles dirigidos anos mais tarde por Sergio Leone e Sergio Corbucci (em 1985, Tex acabaria sendo interpretado no cinema pelo ator Giuliano Gemma, numa adaptação, por sinal, bastante insatisfatória).
Vale dizer que a relação do protagonista com os indígenas é sempre muito próxima e em grande medida, de respeito mútuo. Willer, afinal, chegou a se tornar chefe dos navajos (com o nome “Águia da noite”) e “irmão de sangue” do líder dos apaches, Cochise. Uma vida inteira cavalgando, cruzando fronteiras territoriais, reais e imaginárias, entre o mundo dos “brancos” e dos nativos, tendo de lidar com a invasão e opressão de colonos e soldados nas terras indígenas, vendo o sistema injusto e tendencioso do governo em Washington sendo imposto sobre os povos originários… uma realidade que iria, certamente, afetar a trajetória e a personalidade do herói.
Diversos desenhistas conceituados trabalhariam nos fumetti regulares de Tex, como Guido Buzzelli, Renzo Calegari, Aldo Capitanio, Fabio Civitelli, Alberto Giolitti, Guglielmo Letteri, Ivo Milazzo, José Ortiz, Roberto Raviola e Sergio Zaniboni. De vez em quando, porém, artistas que não estão associados ao universo do ranger são convidados pelos editores a dar sua contribuição e criar álbuns especiais do personagem. Este é o caso de Enrique Breccia, que ilustrou o texone “Capitão Jack”, escrito pelo roteirista Tito Faraci, publicado em junho do ano passado na Itália e em outubro, por aqui. A edição brasileira conta com uma entrevista do quadrinista concedida a Gianmaria Contro e dois breves artigos de Graziano Frediani e Luca Barbieri. A revista, lançada no costumeiro e popular papel-jornal, sem dúvida, mereceria também uma versão extra, mais caprichada, em capa dura e miolo de papel couché (mesmo que fosse uma tiragem limitada, para aficionados). Um material mais “nobre” certamente realçaria e valorizaria o trabalho do artista.
“Capitão Jack” é mais um desses relatos em que Tex contracena com atores reais. Trata-se de Kintpuash, autoridade máxima dos modocs, também conhecido pelo nome que dá o título ao gibi. O sofrimento dos nativos diante dos ataques infligidos pelos soldados do exército dos Estados Unidos, as altercações com os klamaths, as disputas internas com outros guerreiros de sua tribo, as batalhas com a Cavalaria norte-americana e a sua rendição e captura compõem o pano de fundo do enredo. Kintpuash seria, em última instância, preso e depois executado…
Em meio a tudo isso, Willer e Carson participam ativamente da história. Mas as figuras centrais são os próprios indígenas, que lutam e resistem até o final pela preservação de sua vida, de seu território e de sua cultura.
A técnica apurada de Enrique Breccia pode ser admirada em cada página. Se em outras épocas ele desenhara o cenário da Patagônia e dos pampas, desta vez transporta sua aventura para o Velho Oeste na América do Norte. O dibujante platino se esmera nos detalhes e expressões faciais, nas paisagens, nas texturas hachuradas, no uso do preto e do branco, na variação do traço dependendo das exigências de cada cena, nas luzes e sombras, nos vestuários, nas características físicas dos animais e nos momentos de maior ação entre os personagens. Vale destacar que os pássaros aparecem muitas vezes nos quadros (por sinal, uma ave de rapina, constantemente, segue os protagonistas). As tensões e o clima apreensivo marcam a narrativa do começo ao fim. Um belo trabalho, que sem dúvida merece ser conferido pelo público de todas as idades.
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Gostou? Leia também “Surfista prateado“, sobre o quadrinho americano dos anos 60, “A rebeldia de Octobriana“, sobre a incrível personagem soviética de HQs e “O mundo louco de Basil Wolverton“, na coluna de Luiz Bernardo Pericás, no Blog da Boitempo!
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Conhece o Barricada, novo selo de quadrinhos da Boitempo? Como o próprio nome sugere, o selo se dedica a títulos libertários, de resistência, nacionais e internacionais, garimpados por , um conselho editorial composto por Luiz Gê, Ronaldo Bressane, Rafael Campos Rocha e Gilberto Maringoni.
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Luiz Bernardo Pericás é formado em História pela George Washington University, doutor em História Econômica pela USP e pós-doutor em Ciência Política pela FLACSO (México). Foi Visiting Scholar na Universidade do Texas. Seu livro mais recente, Caio Prado Júnior: uma biografia política (Boitempo, 2016), lhe rendeu o troféu Juca Pato de Intelectual do Ano. Pela Boitempo, também publicou Os Cangaceiros – Ensaio de interpretação histórica (2010), do romance Cansaço, a longa estação (2012) e da coletânea Intérpretes do Brasil: clássicos, rebeldes e renegados, organizado em conjunto com Lincoln Secco. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às sextas-feiras.
O texto é sobre o “Tex” de Brecia mas a apresentação a que está vinculada este texto fala de Jean Giraud, também conhecido como “Gir” e “Moebius”.
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