Cora Coralina, 1977
Por Mouzar Benedito.
“Meus doces são melhores do que meus poemas”, me falou Cora Coralina, quando a conheci, em meados de 1976, levado por uma estudante de Serviço Social que trabalhava no Sesc de Goiânia. Eu estava fazendo uma pesquisa sobre cultura popular.
Os doces dela eram realmente muito bons. Ela ficou famosa como doceira. Mas muito mais como poetisa, revelada quando tinha mais de setenta anos de idade.
Remexendo papéis velhos, achei um exemplar do jornal Movimento, de 11 de abril de 1977. Mandei o jornal para um museu da cidade de Goiás, mas antes copiei uma página dele.
É que tinha voltado à cidade de Goiás em janeiro de 1977 e fiz uma entrevista com ela, com intenção de publicar no Versus, jornal que ajudei a fundar e era um dos editores.
Mas quando falei que encontrei em Goiás uma velha de mais de setenta anos que tinha futuro, não me levaram muito a sério, um dos companheiros do jornal chegou a pensar que eu tinha inventado a entrevista e a mulher. Nem quis discutir. Levei a matéria – assinada por mim e por Mário Pires, um amigo que acompanhou a entrevista – para o Movimento, em que Maria Rita Kehl era editora de Cultura. Ela gostou, e publicou.
Segundo me contaram, foi a primeira matéria sobre Cora Coralina publicada fora do estado de Goiás. A poetisa só se tornou famosa nacionalmente depois que Carlos Drummond de Andrade publicou uma matéria sobre ela no Jornal do Brasil, em 1979.
Acho que vale a pena reproduzir a matéria toda aqui, com exceção de um pequeno trecho comido por traças. Afinal, o jornal estava engavetado havia quase quarenta anos. Mas acredito que esse trecho (pedaço de um poema) não faz tanta falta. Por falar em poema, intercalei com falas literais de Cora Coralina (estão entre aspas) e outros não literais, trechos de poemas extraídos do “Meu Livro de Cordel”, publicado pela Editora Cultura Goiana, em 1976.
Enfim, aí vai a matéria. Previno que é longa…
* * *
“Sou mais uma cozinheira do que uma escritora”
Os melhores doces de Goiás? Procure Cora Coralina. Os melhores poemas? Também é com ela. Cora Coralina é pseudônimo de Ana Lins de Guimarães Peixoto Bretas, da velha cidade de Goiás, sabedora de sua história e contadora de suas estórias.
A banda de música tocava a Valsa da Despedida. A população estava atônita, não podia acreditar no que via. Houve chiliques, palpitações, pessoas corriam às farmácias procurando cura para suas emoções. A polícia militar deixava a cidade do Goiás. Ia embora com seus toques, suas cornetas, acenando lenços brancos para os que ficavam. Era mais um golpe – o último de uma série – contra a cidade que deixava de ser capital. Ia a pé, levando o que havia de resto da cidade empobrecida.
Durou cinco anos, nos fins da década de 1930, a mudança do governo do estado para Goiânia, a nova cidade construída especialmente para ser capital. As secretarias foram aos poucos, de vez em quando saía uma. E cada uma que saía era um choque – um trauma – para o povo. Oratórios, lamparinas, promessas aos santos, muita maldição sobre Pedro Ludovico – porque era ele quem estava fazendo aquilo –, nada adiantou. As escolas, faculdades, também foram para Goiânia. A população, frustrada! Doutores e jovens, todos com Pedro Ludovico rumo à nova capital. “Goiás ficou com a parte dura! Foi essa parte grossa, pesada, inculta, que sustentou este velho arcabouço”. E ficou também com o slogan: “berço da cultura goiana”.
As criaturas que moravam na capital passaram a viver num município comum. Em vez de um governo com sua pompa, sua ostentação dentro do palácio chamado “dos Arcos”, com suas festividades, janelas encortinadas, guardas na porta, festivais, a burocracia, os juízes, os jornalistas, os estudantes, Goiás passou a ter apenas uma sede municipal. Acabou tudo isso. “O palácio se foi, e o seu conteúdo também. Retiraram-se as cortinas, fecharam-se as janelas e foi aquele abandono”.
Cora Coralina não estava lá. Desde 1911, quando tinha vinte anos, morava no estado de São Paulo, onde passou quarenta e cinco anos. Mas, na sua volta, conversou, leu, ouviu quem foi junto com a capital e quem ficou, e assimilou tudo o que se passou com sua cidade. Hoje, fala sobre o assunto com mais detalhes e com mais segurança do que os próprios que assistiram a esse que foi “o terceiro empobrecimento de Goiás”.
O primeiro também ela não viu, foi há muito tempo: o esgotamento das minas de ouro. O segundo empobrecimento não foi um fato local, mas de grande repercussão para os senhores ociosos de Goiás, foi a fase de transição do trabalho escravo para o trabalho “livre” e do Império para a República. Esse, Cora Coralina acompanhou, viu, sentiu. Era sua infância.
Venho do século passado e trago comigo todas as idades.
Nasci numa rebaixa da serra,
entre serras e morros.
“Longe de todos os lugares.”
Numa cidade de onde levaram
o ouro e deixaram pedras.
Numa ânsia de vida eu abria
o voo nas asas impossíveis do sonho.
“Nasci para escrever, mas o meio, o tempo, as criaturas e fatores outros contramarcaram minha vida.”
Venho do século passado.
Pertenço a uma geração
ponte, entre a libertação
dos escravos e o trabalhador livre.
Entre a monarquia
caída e a república
que se instalava.
Todo o ranço do passado era
presente. A brutalidade,
a incompreensão, a ignorância.
Os castigos corporais.
Nas casas. Nas escolas.
Nos quartéis e nas roças.
A criança não tinha vez.
Os adultos eram sádicos
e aplicavam castigos humilhantes.
Escolaridade? “Primário dos mais incompletos. O resto foram os livros que eu sempre tenho perto de mim, um jornal que aqui está para me atualizar… e um dicionário do MEC para a minha ignorância”.
E Cora fala de suas recentes leituras. Pedro Nava, Juscelino, cujos livros a emocionam, livros que são “para ler e reler”. Ela mesma conta a história da construção de Brasília, a luta contra os obstáculos, “a favor só deputados mineiros e goianos e a opinião pública”. Mas ela evita conclusões: “depois vocês sabem o que a revolução fez com ele, né, não precisa contar”.
Outra admiração é Pablo Neruda, para quem fez três poemas. “Me impressionei profundamente com a poesia dele. Aquela poesia simples”.
Cora Coralina escreve desde os quatorze anos de idade, quando publicava suas crônicas nos jornais que já não existem. Goiás hoje não tem mais nenhum jornal, perdeu todos eles. Os poemas vieram depois da Semana de Arte Moderna, em 1922, quando as rimas passaram a ser dispensáveis. E foi a poesia que a tornou conhecida. Seu primeiro livro, “Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”, só foi publicado em 1965, pela José Olympio Editora, tendo custado a ela uma casa que tinha no interior.
Tive uma velha mestra que já
havia ensinado uma geração
antes da minha.
Os métodos de ensino eram
antiquados e aprendi as letras
em livros superados de que
ninguém mais fala.
Nunca os números me
entraram no entendimento.
De certo pela pobreza que marcaria
para sempre minha vida.
Precisei pouco dos números.
Sendo eu mais doméstica do
que intelectual,
não escrevo jamais de forma
consciente e racionada, e sim
impelida por um impulso incontrolável.
Sendo assim, tenho a consciência se ser autêntica.
***
Sou mais doceira e cozinheira
do que escritora, sendo a Arte culinária
a mais nobre de todas as Artes:
objetiva, concreta, jamais abstrata,
a que estão ligadas a vida e
a saúde humana.
***
Talvez por tudo isso e muito mais,
sinta dentro de mim,
no fundo dos meus
reservatórios secretos,
um vago desejo de analfabetismo.
Sobrevivi, me recompondo aos bocados,
à dura compreensão dos
rígidos preconceitos do passado.
Preconceitos de classe,
preconceitos de cor e família.
Preconceitos econômicos.
Férreos preconceitos sociais.
O livro teve boa aceitação e ela sentiu-se estimulada a escrever mais. Mas não tinha mais casa para vender. “Eu não tinha preparo, aliás já não tinha nem idade mais para funcionária pública, porque já estava na área dos setenta anos e, então, me embrenhei em fazer doces, uma lida doméstica. E eu sempre fui doméstica mesmo. Comecei a fazer doces! E como tenho comigo que quem faz o malfeito também pode fazer o bem-feito, passei a fazer doces bem-feitos!”
Eram doces de frutas, açucarados, colocados em caixinhas fechadas, embrulhadas em papel fantasia, amarradas com fitinhas. Jamais fita colante. E para custear a poesia, passou a ser conhecida como doceira das melhores. Os doces davam dinheiro mas nunca conseguiu, com suas economias, alcançar o preço das editoras que – segundo ela – sobe verticalmente. Então apareceu o senhor Paulo Araújo, da Livraria e Editora Cultura Goiana, que publicou em 1976 “Meu Livro de Cordel”, de poemas e crônicas. Só que “suprimiu o melhor poema que eu tinha para este livro. Suprimiu arbitrariamente, sem me consultar. Se suprimiu também prefácio que ele mesmo tinha pedido em meu nome para um escritor amigo de Goiânia”.
O poema foi suprimido, insiste, por mero preconceito do editor. Ele foi escrito como uma contribuição ao Ano Internacional da Mulher, que foi em 1975, e se chama “Mulher da Vida”. É um poema extenso, cujo começo diz:
Mulher da vida, minha irmã.
De todos os tempos,
de todos os povos, de todas as latitudes,
ela veio do fundo imemorial das idades.
E carrega a carga dos mais torpes
Sinônimos, apelidos e apodos.
Mulher da zona, mulher da rua, mulher à toa,
Mulher perdida.
Mulher da vida, minha irmã.
Sem direitos, sem proteção da lei, ela atravessa
a vida como a erva cativa dos caminhos.
Pisada, maltratada, discriminada.
Flor sombria. Sementeira e espinhal,
gerada nos viveiros da miséria,
da pobreza e do abandono.
Enraizadas em todos os quadrantes da Terra…
A escola da vida me suplementou
as deficiências da escola primária
que outras, o Destino não me deu.
Foi assim que cheguei a este livro
sem referências a mencionar.
Nenhum primeiro prêmio.
Nenhum segundo lugar. Nem menção Honrosa.
Nenhuma Láurea.
Apenas a autenticidade da minha
poesia arrancada aos pedaços
do fundo da minha sensibilidade.
E este anseio:
procuro superar todos os dias
minha própria personalidade
renovada
despedaçando dentro
de mim
tudo que é velho e morto…
Agora ele tem um novo livro pronto, à espera de um editor que não a censure. Chama-se “Estórias da Casa Velha da Ponte”, que é a casa onde mora, quase tão conhecida e tão cheia de lendas quanto ela mesma. É a casa onde nasceu e da qual passou longe os quarenta e cinco anos que esteve no estado de São Paulo. Depois, em 1956, voltou deixando em São Paulo quatro filhos, quinze netos e quinze bisnetos. Voltou para viver a sua vida, sozinha, viúva. Ligou-se às raízes deixadas em Goiás, ligou-se a essa cidade e hoje é um símbolo dela.
Na cidade, além de fantasmas (ou anjos) da casa de Cora Coralina, é comentada com toques sobrenaturais uma fonte que existe no porão de sua casa. A fonte existe mesmo, e não é preciso sair de casa para apanhar água farta, pura e saborosa, trazida por tubos de pedra sabão desde o século XVIII, quando a casa foi construída, para debaixo da mítica casa velha da ponte.
Ao lado do rio Vermelho, do qual se garimpava ouro que atraiu bandeirantes e aventureiros que vieram para – talvez sem querer – construir Goiás, é preciso atravessar uma ponte integrada à arquitetura local para se chegar à casa. Daí, a porta está aberta. Durante o dia, só o vento a fecha às vezes. Adultos e crianças entram sem bater, à procura de fantasia. “Em cada quarto tem um anjo” – brinca dona Cora – “um deles, que fica naquele quarto ali, se chama Rabadinho”. Mesmo quando a conversa vira para outros assuntos, deixando de lado as lendas e estórias, as crianças continuam ouvindo – “não entendem o que eu falo, mas sentem uma certa sonoridade”.
No fim do ano passado, Cora Coralina foi escolhida em seu estado como a intelectual do ano. E foi a Goiânia receber o diploma. Consciente de sua importância no contexto goiano, disse na ocasião: “Não fizeram favor nenhum. Eu venho comparecendo à literatura do meu estado desde a idade de 14 anos. Então eu digo: as outras todas que escrevem têm muito tempo de vida para receberem homenagens, mensagens e diplomas. Eu estou no fim da picada! Vocês não fizeram nada mais do que uma justiça. Se eu não dei brilho à literatura goiana, também não a deslustrei, não a comprometi”.
Poderia se acrescentar ainda a invulnerabilidade de Cora Coralina ao tempo. Seus planos não o levam em conta. “Vocês poderão dizer: uma mulher nessa idade fazendo planos para o futuro? Mas eu digo: eu não conto o tempo”.
PABLO NERUDA
Perdoa-me poeta.
Tão tarde o conheci.
Tantos cantores pelo mundo…
Para minha ignorância
eras mais um deles.
Foi assim que não pedi a Deus
poupar-te a vida
e ficares para sempre
semente viva, incorruptível,
de beleza excelsa e universal.
Ninguém me disse antes.
Ninguém me disse nada.
Ninguém me fez a doação fraterna
de um livro teu.
Perdida no meu sertão goiano,
só o teu nome,
Pablo,
só o teu apelido crespo,
Neruda,
chegaram a mim…
E eu a pensar que foste apenas
um grande poeta entre outros grandes…
Foi assim que não pedi ao Criador
poupar-te a vida
e ficares para sempre.
Semente viva e luminosa,
sementeira e semeador,
semeando o pão e o vinho
da tua poesia
na terra faminta, desolada e triste.
***
Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
Republicou isso em Observatório de Políticas Públicas.
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Foi um livro de Cora Coralina que dei de presente de aniversário à minha mãe que a fez ler poesia com prazer pela primeira vez na vida.
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Muito bem lembrado, Mouzart Benedito. Neste dia da Mulher, Cora Coralina nos representa muito bem: mulher sensível , lutadora, persistente. Embora nao tenha recebido escolaridade, era abencoada com aquela forca interior que muitas mulheres, senao todas ,possuem e que as eleva e dignifica até mesmo nas situacoes mais adversas.
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Quando mostrei este poema a um poeta da aldeia ele desqualificou de pronto, dizendo que não tem como comparar poetas tão dispares. Resposta pronta de poeta que só lê poesia. Em tudo igualzinho aos especialistas que sabem tudo sobre a sua especialidade e tem uma profundidade de uma “poça d’agua” quando saem da sua zona de conforto. Infelizmente, a especialização, que gera o homem unidimensional marcusiano, é uma praga que se espraia até por onde deveria ser combatida, o terreno da arte e da literatura.
Porto Alegre, 25 de novembro de 2007.
Preâmbulo: Estranho? Dirão alguns. Qual é a tua? Fazer chocar- se dois seres tão dispares. Não fui o culpado e fui ao mesmo tempo. O tema não foi escolhido por mim. Simplesmente, se materializou sob a forma de sucessão de temas que a mim chegaram. Primeiro, lia T.S. Eliot e em seqüência recebi uma mensagem via e-mail com poesia de Cora Coralina. Sentindo o entrechoque destas duas visões de mundo e, principalmente, gostando do encontro ocasional do hino à vida se sobrepondo ao cansaço de viver do americano tornado europeu mais do que os europeus tanto que como ressalva Afonso Romano de Santana ele, praticamente, atirou, por falta de apetite sexual, sua mulher nos braços de Bertrand Russel. Melhor explicação, impossível.
Por trás ou no âmago de sua poética ou, pelo menos, no poema The Dry Salvages, paira um ser inconformado diante do destino humano. Como uma sombra que escurece toda a vida paira no ar o espectro da morte apequenando o viver. Em oposição a este pessimismo metafísico cai em minhas mãos uma elegia ao viver, um enaltecimento de alguém que só tem olhos e coração para o que nos é oferecido e não para a transitoriedade. Para o depressivo e pessimista nosso tempo de vida é igual ao da libélula.
Em Cora Coralina a ótica da qualidade do tempo é privilegiada em detrimento da visão determinista e pretensamente cientifica que fixa o olhar na quantidade de tempo e na precariedade da vida humana. A primeira tem um olhar amoroso para o passado, para o presente e para o futuro. Para a vida, enfim. O outro olha pelo retrovisor a vida, isto é, coloca no foco a morte e tudo fica tisnado, marcado por esta presença da ausência.
Cora Coralina
Jorge Alberto Benitz
Trazer o nada para o agora
Presentifica- lo
Descarnar a vida de vida
Torna- la oca antes do ocaso
Ninguém melhor para esta obra
Do que um poeta
Laureado,
Premio Nobel da Literatura
Por louvar
Ou acusar esta triste sina
Confesso que não sei
Todo o peso da civilização
Ocidental
Posta a serviço
Do ressentimento
O pior deles
Porque vão
O ressentimento contra o tempo
Todo o vigor da poética
Nutrindo o louvor
Ao nada
Que trabalha desde
O nascimento
Em cada um de nós
Cegos ao manancial
Que transborda contra
Tudo que deveria ser cultuado
Porque é a essência do ser
Que nada mais é do que
Um agente
Um vivente
Deste e não de outro mundo
Na contramão deste jeito ressentido
Surge lá onde só deveria
Ser extraído outras riquezas
Mais brutas
Mais elementares
Uma força da e pela natureza
Onde tudo concorria
Para o hino lúgubre, triste
De despedida
Viceja um canto
Um contra canto
Ao melancólico, ao tédio
Ao ressentimento contra
A vida e suas carências
Dores e aflições
Ao europeu, dono do mundo,
Sofrido, dolorido
Em sua gaiola dourada
Se antepõe o despossuído
O periférico da periferia
Louvando a beleza
Da rudeza
Da vida despojada
De qualquer bem material
De qualquer conforto
Burguês
Louvando o ar
As flores
As velhas casas coloniais
Os frutos que basta colher no pé
A receita caseira
Feita com amor e dedicação
Coisas pequenas
Cotidianas
Que podem ser fruídas
Sem precisar derrotar
Alguém em uma guerra de conquista
Territorial ou econômica
É um saber despojado
De vontade de poder
Alinhado no que de melhor
Existe no cristianismo
Nenhuma inveja do outro
Nenhum rancor alimentado
Um olhar generoso e amoroso
De si e do outro
Prefiro mil vezes
Sorver esta poesia coralina
Do que a laureada
Poesia eliotiana
Poderosa
Erudita
E, no meu entender
Maldita
Posto que carregando
No seu interior
Um recado
Contra a fidelidade
Ao sentido da terra
Bem maior
Que todos nós terrenos
Devemos cultuar
Mais não seja
Para tornar a caminhada
Da vida
Mais interessante do que a
Do deprimido
Do decadente, no sentido nietzschiano
E entediado burguês
Cheio de bens
E angustias
Cora Coralina II
Autor: Jorge Alberto Benitz
De repente,
A revelação surge
Não no sonho
Em plena manhã
Sua verdade dói,
O entediado, o melancólico,
Tão vilipendiado,
Acusado de todos os males
E dores do mundo
Sou eu
Pode ser você
O espelho revela
A semelhança dos traços
Um certo jeito de ser
Inconfundível
Inimitável
Assome na alma
Após tão perturbadora revelação
Uma indagação
Quem é Cora Coralina, então?
Um ser de outro mundo?
Alguém que se não existisse
Deveria ser criado
Para dar um sentido melhor
E maior aos seres e as coisas do mundo?
Uma força elemental
Que habita mais o mundo
Dos mitos e lendas
Do que as paragens terrenas
Impregnadas
De uma aridez
E de um ar decadente e mortiço
Que a tudo e a todos contamina?
Não! Cora Coralina existe
E mais que isto
Permanece viva
Nas suas poesias
Mesmo depois de
Quintanamente
Virar poeira ou folha levada
Enaltece- la
Em contraposição ao
Canto choroso
Lacrimoso
Do burguês da gaiola dourada
Que habita em todos nós
Ou, pelo menos, em mim
Só pode significar
Um desejo latente
Uma preferência,
-Mesmo quando o espírito de época
Concorre para o seu contrário-,
No eterno embate
De Eros e Tanatos
Presente,
Desde sempre
Na arena da vida
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