Cultura inútil: Rebuscamentos
Por que falar uma coisa de forma simples e clara, se se pode expressar de forma rebuscada e metafórica?
Por Mouzar Benedito.
Por que falar uma coisa de forma simples e clara, se se pode expressar de forma rebuscada e metafórica? Existem chavões manjados, como nos programas de televisivos, em que certos crimes foram cometidos “com requintes de crueldade”. Políticos não falam que uma coisa é mentira, dizem que é “inverdade” (quando ouço alguém falando isso, desconfio muito). Ser muito mau é exceder Herodes em crueldade.
Quem usa formas rebuscadas acredita que está dando provas de erudição. Por exemplo: alguém que acha “sofrer” uma palavra simplória e prefere substituí-la por expressões como “ver estrelas ao meio-dia”, “sorver o cálice da amargura”, “comer o pão que o diabo amassou”, “estar sobre espinhos e alfinetes”, “pedir a morte como um descanso” ou “estar com o coração despedaçado”.
Andei catando mais uns exemplos por aí. Olhem o que achei:
Homem bom: caráter sem jaça; coração de ouro; pomba sem fel, um dentre mil; pedra noventa.
Homem ruim: homem de consciência cauterizada; estupor maligno; indivíduo diplomado em todas as faculdades da perversidade; indivíduo que figura sempre nas crônicas policiais.
Rico doente: cospe sangue em bacia de ouro.
Feio: irregular na conformação; ele ofende a estética; desmaia os encantos.
Céu: mansão dos justos.
Ter uma fase de prosperidade é estar nas sete quintas, estar em veia de felicidade, estar no galarim da fortuna, mas é também estar exposto aos tiros da inveja
Desprezar: deixar rolar no resvaladouro da indiferença; atirar no limbo; relegar ao plano das coisas inúteis.
Ladrão: cavalheiro de indústria, amigo do alheio.
Simplicidade: à moda dos franciscanos.
Tem bom gosto: prima pelo apuro requintado; ganha a todos na graça.
Lugar malcheiroso: ambiente mefítico.
Fedorento: exala emanações pútridas; ofende a pituitária.
Ser cego: tatear nas trevas (politicamente correto: deficiente visual); ter os olhos abotoados.
Ignorante: doutor de secadal.
Sobre os “ignorantes”: a plebe ignara; o vulgo profano; a classe impensante.
Mostrar ignorância: confessar sua inópia; mascar latim de cozinha.
Estar errado: transviar aos mais ruinosos erros.
Errar: estar sujeito à falibilidade humana.
Ficar louco: debater-se nas trevas da demência.
Inutilidades: sino sem badalo, árvore sem seiva; confortos de enforcado; searas sem sol; reforçar a luz do sol com uma lamparina – na minha terra diziam que um sujeito tinha coleção de objetos inúteis, como canivete sem folha e gaiola sem porta.
Inútil: de que ninguém descobriu ainda o fim exato; tem efeito de cataplasma na cabeça de defunto.
Seco: desprovido de água.
Pôr-se na moda: galhardear trajes vistosos.
Esperança: risonha expectativa.
Fazer com que outra pessoa tenha esperança: florir de promissoras esperanças.
Sem esperança: toldado de negras nuvens.
Ser corajoso: lançar-se em empresas arriscadas; haver-se na luta contra a bizarria; bater-se com espartana bravura.
Ter cautela: aguardar a marcha dos acontecimentos; andar com o prumo na mão; examinar o reverso da medalha.
Sobre uma pessoa virtuosa: encarnação perfeita e viva da virtude; sabe aliar qualidades raras e de primeira orem.
Famoso: tem na terra uma ilíade de triunfos, uma odisseia de glórias; destacar-se na planície azul da história; que vale um poema de glórias.
Ficar famoso: granjear o séquito dos povos; conquistar louros imarcessíveis; ter seu nome inscrito nos fastos da história.
Ser insolente: afetar ares de príncipe.
Fazer algo temerário: acordar o leão que dorme.
Ser covarde: ter entradas de leão e saídas de sendeiro.
De manhãzinha: aos primeiros assomos do amanhecer.
Ter confiança em alguém, estar em boas mãos: dormir confiante na fé dos tratados.
Estar em perigo: apoiar-se em frágil caniço.
Deixar de informar alguém: deixar nas trevas da ignorância; disfarçar a marca da origem; brincar do jogo das escondidas.
Guardar segredo: calar um segredo com resguardo.
Afirmar: mostrar em circunstância mui concludentes.
Ensinar: ministrar a hóstia do saber.
Estudar: dormir sobre os livros; querer saber amanhã o que ignora hoje; perlustrar os caminhos de uma ciência; enfrascar-se no estudo de tal coisa.
Falar a verdade: deixar-se de reservas e reticências; ser homem às veras; falar sem requinte de hipocrisia.
Ser uma pessoa verdadeira: de honra e de candura; cujos lábios não mentem.
Enganar: deitar poeira nos olhos de alguém; trincar a sedela a alguém; ir com escala à ingenuidade de alguém.
Enganar (“vender gato por lebre”): enredar alguém com perguntas hábeis; entrajar-se no manto de…
Engano (advérbio) – equivalente a sob falsas aparências: por artes de berliques e berloques.
Ser ingênuo: ser conduzido pelo nariz.
Enganador (“lobo com pele de ovelha”): santinho do pau carunchoso; unhas de gato e hábitos de beato; almocreve de petas.
Conhecer bem: conaitre les dessous des cartes; revelar vasto cabedal,
Falar de uma coisa que conhece bem: familiar como os dedos das mãos; familiar como os vocábulos de uso diário.
Estar muito contente: estar no sétimo céu; banhar-se em água de rosas.
Ter saudade: volver os olhos para o passado.
Trabalhar muito: dar o máximo contingente de seus esforços; assestar toda a sua artilharia.
Quer me chamar de vagabundo por perder tempo pesquisando isso? Pode falar que desperdiço tempo em vagares, que sou um sujeito sem rei nem roque.
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Mouzar Benedito, jornalista, nasceu em Nova Resende (MG) em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros – MG, Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de muitos livros, dentre os quais, publicados pela Boitempo, Ousar Lutar (2000), em co-autoria com José Roberto Rezende, Pequena enciclopédia sanitária (1996) e Meneghetti – O gato dos telhados (2010, Coleção Pauliceia). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
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