Losurdo e a atualidade da luta de classes

Miguel Urbano Rodrigues resenha "A luta de classes: uma história política e filosófica", de Domenico Losurdo

domenico-losurdo-boitempoPor Miguel Urbano Rodrigues.

Losurdo é um comunista hoje pouco comum. Decepcionado pelo defunto PCI e pela Rifondazione Comunista, aderiu ao jovem Partido dos Comunistas Italianos. Rejeita qualquer modalidade de dogmatismo e revisionismo. Fiel aos ensinamentos de Marx e Lenin, distancia-se do reformismo e do dogmatismo subjetivista (bem caracterizado por György Lukács) que durante décadas atingiu muitos partidos comunistas que, afirmando serem marxistas-leninistas, negavam na práxis a opção ideológica.

A editora brasileira Boitempo lançou em 2015 o seu último livro, A luta de classes: Uma história política e filosófica. É um ensaio difícil. Árido. Por vezes, pesado. Mas fascinante pela lucidez e criatividade. O discurso de Losurdo sobre a luta de classes é oportuno e atualíssimo numa época de confusão ideológica promovida pela intelectualidade burguesa e por um sistema mediático ao serviço do capitalismo

Do Manifesto à escravatura

Na introdução, o autor recorda que o Manifesto Comunista logo na abertura afirmava que “A história de todas as sociedades até hoje existentes é a história da luta de classes”. Enunciou uma evidência que a burguesia negava.

Losurdo comenta no capitulo 1 o quadro europeu e mundial de exploração do homem que deu origem ao Manifesto Comunista e à reflexão de Marx que desembocou na teoria da luta de classes. O choque entre opressores e oprimidos tornaria inevitável uma luta de classes para a emancipação das vítimas.

A Revolução de 1848 contribuiu para que “em vez de se apresentar imediatamente como econômica, a luta de classes assumisse as formas políticas mais variadas (revoltas operárias e populares, insurreições nacionais, repressão desencadeada pela reação interna e internacional, recorrendo a instrumentos militares e económicos) em vez de desaparecer tornou-se mais dura”.

Da Europa o autor salta para os Estados Unidos. Marx no primeiro livro do Capital qualifica a Guerra de Secessão como “o único acontecimento grandioso da história contemporânea” (O capital, p.328). Somente anos mais tarde, o grande revolucionário compreendeu que a condição dos negros na sociedade norte-americana, dominada por uma oligarquia racista, mudaria muito menos do que ele esperava e desejava.

Meditando sobre o malogro da Revolução de 1848, Marx e Engels não desistem de incentivar o proletariado das potências industrializadas a rebelar-se, sublinhando que na Inglaterra, na França, na Alemanha os operários são afinal “escravos modernos”.

Mas não esquecem que há outro tipo de “escravos modernos”: as nações oprimidas por estados poderosos e os povos das colónias africanas e asiáticas. Na Europa, citam a Irlanda e a Polónia. A luta pela independência é nelas uma modalidade da luta de classes.

Para Losurdo, a Guerra de l914/18 é também expressão da luta de classes, mas em sentido triplo. O conflito, segundo ele, remete à luta das grandes potências capitalistas pela hegemonia mundial; nas metrópoles, a classe dominante reduz a combatividade do proletariado através da prova de força no plano internacional; e, ao ampliar a exploração colonial, transforma a questão nacional numa questão social que configura uma luta de classes.

Avanços e recuos da Revolução

A transição do capitalismo para o socialismo e a extinção gradual do Estado são temas tratados exaustivamente do Capitulo III ao XII, sempre no contexto da luta de classes, exacerbada após a vitória de Outubro de 17.

A Nova Política Econômica – NEP foi criada na URSS após o malogro da política do comunismo de guerra. A fome assolava o país, invadido pelas potências da Entente e devastado pelos exércitos dos generais brancos.

Lenin, ao concebê-la, sabia que ela ia impor um recuo da Revolução, mas que era indispensável para a salvar. “A classe operaria”, escreveu em 1920, ainda durante o comunismo de guerra, “detém o poder estatal, mas é obrigada a aguentar grandes sacrifícios, morrer e a passar fome”.

O paradoxo, salienta Losurdo, tornou-se mais evidente com a imposição da NEP: “Agora quem vive em condições econômicas ostensivamente melhores do que a classe politicamente dominante é uma classe, ou setores de uma classe, que foi derrubada porque era exploradora”.

O aparecimento do nepman, rico, corrupto e arrogante, indignava os trabalhadores e suscitou críticas de muitos militantes do Partido que chamavam à NEP a “Nova Extorsão do Proletariado”. Destacados dirigentes como Alexandra Kollontai e o seu ex-amante Shlyapnikov aderiram então à chamada Oposição Operária.

Losurdo dedica páginas à formação da consciência de classe. Cita Gramsci, mas, atento ao lado positivo do dirigente comunista italiano, não menciona sequer as ambíguas teses gramscianas em que o eurocomunismo, deturpando-as, se inspirou. E invoca opiniões de Mao Tse quando advertiu que a expropriação económica da burguesia não implicara o seu desaparecimento como classe quando o Partido Comunista conquistou o poder.

A Revolução Chinesa merece-lhe aliás uma atenção especial. Losurdo esteve próximo do maoismo e isso é perceptível na sua obra. No seu livro sobre a luta de classes transparece uma visão quase romântica do rumo que a China tomou apos as grandes reformas de Deng Xiaoping. É inegável que elas foram decisivas para a rápida transformação de um país atrasado, semicolonial, que cresceu num ritmo inédito, e tem hoje a segunda economia do mundo. Não cabe neste artigo uma reflexão mesmo superficial sobre a complexa experiência chinesa. Mas julgo útil esclarecer que uma acadêmica marxista francesa, Mylène Gaulard, afirma na sua tese de doutoramento, Marx à Pékin, que a China continua a ser um país capitalista.

A temática do nivelamento universal

No capítulo 2 Losurdo aborda a temática do “nivelamento universal”. Rebatendo a falsidade da tese de Alexis de Tocqueville – um escritor venerado pela burguesia francesa – no seu livro A democracia na América, segundo a qual já não existiam praticamente classes sociais na Europa em meados do século XIX, o filósofo italiano afirma tratar se um enorme disparate reacionário.

Para o liberal francês, principiou desde o século X no Ocidente “uma revolução nas condições de vida” dos povos que conduzira progressivamente a um “nivelamento universal”. A nobreza recuara na escala social e a plebe avançara. Em breve estariam lado a lado. Viveu porem o suficiente (faleceu em l859) para verificar, consternado, que a revolução industrial inglesa fizera ruir a sua absurda teoria. Tocquevlle, aliás, reconhecera que o “nivelamento” não impedia a existência de desníveis abissais entre os europeus e os africanos e asiáticos.

Losurdo sublinha que, no seu deslumbramento americano, Tocqueville simula esquecer a existência de milhões de escravos negros na pátria de Washington e Jefferson. Com o seu desprezo pela “raça amarela”, o autor de Democracia na América desconhece também que ainda em 1820 cabiam à China 32% do PIB mundial e à Índia 15%. O imperialismo britânico arruinou rapidamente os dois países.

O mito da paz universal: de Stuart Mill a Arendt e Habermas

No mesmo capítulo 2 e no capítulo 11, Losurdo evoca debates sobre o mito da paz universal e comenta as posições de Hannah Arendt e de Jürgen Habermas relacionadas com uma imaginária nova ordem mundial que inviabilizaria novas guerras.

Lembra que o liberal Stuart Mill identificara no Império Britânico o prólogo a uma futura comunidade universal e à cooperação e à paz entre os povos. Para ele, nenhum outro povo encarnava como o britânico a causa da liberdade e da moralidade internacional. E pretende justificar essa monstruosa opinião afirmando que as populações atrasadas têm o maior interesse em se integrarem nesse império para evitar a absorção por qualquer outro estado colonizador.

Conclusão: as guerras seriam em breve uma quase impossibilidade.

Losurdo obviamente ridiculariza e pulveriza o discurso imperialista de Stuart Mill. Diferente, mas igualmente aberrantes são as opiniões sobre a transformação do mundo de Arendt e Habermas. A sionista americana qualifica a luta de classes de “pesadelo”. Para ela, a ciência e a tecnologia estão a contribuir para o advento de uma nova ordem mundial.

A Historia desmente essa esperança. Losurdo cita dois exemplos. A introdução no Sul dos Estados Unidos da máquina de descaroçamento do algodão não afetou minimamente segundo ele o trabalho escravo. Em 179 o total de escravos não atingia 697 000; em l861, em vésperas da guerra da Secessão, ultrapassava 4 milhões. Na Índia, o governador-geral, em 1864, definia como catástrofe social a introdução da maquinaria algodoeira. Arruinou milhões de tecelões hindus. “Dificilmente uma tal miséria”, escreveu, “encontra paralelo na história do comércio”.

Ao contrapor os benefícios da tecnologia aos males da luta de classes, Arendt esboça um panorama otimista do futuro. O filósofo Habermas considera a luta de classes obsoleta e desnecessária. Segundo ele, o estado social apos a II Guerra Mundial conduzira a uma pacificação dos trabalhadores, tanto sob governos socialdemocratas como conservadores.

Essa ingênua convicção carecia de base científica. A brutal ofensiva do neoliberalismo, inspirado nas teses reacionárias do austríaco Friedrich Hayek, destruiu as bases do chamado estado social em toda a Europa.

O populismo e a luta de classes

O último capítulo do livro, o XII, incide sobre “a luta de classes entre o marxismo e o populismo”. O autor cita repetidamente Simone Weil. Para Marx, a luta de classes é o motor do processo histórico e social; para Weil “é um momento moralmente privilegiado na história e na vida dos homens”. A francesa é uma crítica severa da modernidade, da indústria, das novas tecnologias. O seu populismo tem afinidades com o pacifismo de Gandhi e com ideias do senegalês Senghor e inclusive com o projeto de Proudhon de ajuda aos pobres.

Losurdo acha que o populismo, sobretudo o de esquerda, “estimula uma visão da luta de classes que exclui do seu raio de ação acontecimentos decisivos da história mundial”. Acrescentarei que um destacado populista de esquerda, o talentoso vice-presidente da Bolívia, Álvaro Garcia Linera, exibindo uma máscara marxista, tem desempenhado um papel nocivo ao influenciar prestigiados intelectuais progressistas da América Latina.

A extinção do Estado

São poucas as páginas em que Losurdo retoma no seu livro a problemática da extinção do Estado. Não conheço outro pensador comunista que tenha abordado com tamanha coragem e lucidez essa questão fulcral. Repete agora aquilo que noutros ensaios afirmou ao considerar romântica a tese marxiana da extinção gradual do Estado. O autor do Capital via como desnecessário o Estado na futura sociedade comunista porque, desaparecidas as classes sociais nas sociedades socialistas adultas, o Estado seria nelas uma instituição supérflua, sem função.

Marx faleceu muito antes que o rumo da História demonstrasse na primeira sociedade socialista a ingenuidade da teoria marxiana da extinção do Estado. Lenin tinha-a defendido no seu famoso livro O Estado e a Revolução, escrito nas vésperas de Outubro de 1917. Mas teve de rever a sua posição. O Estado soviético em vez a caminhar para a extinção fortaleceu-se cada vez mais. Por motivos muito diferentes ocorreram processos similares na China, no Vietnã, em Cuba, nas democracias populares da Europa oriental.

Marx não podia adivinhar as respostas que a História daria à sua ousada previsão. Nem Lenin, nem Mao, nem Fidel e Che podiam antecipar que o mítico homem novo imaginado por gerações de comunistas tardará muito a surgir. Ora, sem ele, a transição do socialismo para o comunismo é impossível. A tendência para reconstituição gradual das classes sociais torna o Estado imprescindível.

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Uma nota pessoal para findar este texto sobre o importante e polêmico livro de Domenico Losurdo sobre a luta de classes.

O professor da Universidade de Urbino acumulou uma prodigiosa erudição. A sua cultura, que abarca múltiplos ramos do conhecimento, sobretudo nas áreas da filosofia, da história e da sociologia, contribui paradoxalmente para dificultar a leitura de alguns capítulos. Por que? Pela rapidez das transposições. Muda inesperadamente de um tema para outro, de um autor para um acontecimento, de um tema econômico para um exemplo, da análise de uma crise para uma citação que surpreende, da reflexão sobre as causas da desagregação da URSS para o mito do homem novo.

Losurdo é permanentemente imprevisível. Discordo de algumas posições suas. Mas a discordância não afeta a grande admiração que sinto pela obra e pelo homem.

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Confira o debate de lançamento de A luta de classes: uma história política e filosófica no Brasil, com Domenico Losurdo, André Singer e Ruy Braga (mediação de Breno Altman).

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Miguel Urbano Rodrigues é um jornalista e historiador português. Nascido em Moura, em 1925, passou 20 anos exilado no Brasil entre as décadas de 50 e 70. Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

1 comentário em Losurdo e a atualidade da luta de classes

  1. Antonio Elias Sobrinho // 26/01/2017 às 7:13 pm // Responder

    Talvez o principal tema que os liberais burgueses mais temem é esse: a luta de classes. Concordam discutir qualquer assunto ou tema estudado por Marx. Chegam, inclusive, a considerar que ele foi 1 gênio tanto pela qualidade da obra como pela diversidade de temas tratados. Porém, ao chegar nesse desconversam e consideram um descaminho resultado da contaminação romântica típica do séc. XIX. Losurdo, então, ao rediscutir o tema, presta um grande serviço às esquerdas que, no momento, andam espremidos por todos os lados.

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