O perigoso Flávio Wolf de Aguiar
Flávio Aguiar descobriu um calhamaço de 100 páginas sobre sua vida no arquivo do DEOPS, polícia política de SP.
Por Flávio Aguiar.
Para L. A. F., com carinho. E ao Fábio, também com carinho, por outros motivos.
Quem assistiu A vida dos outros certamente se lembrará do agente Gerd Wiesler (representado por Ulrich Mühe, infelizmente já falecido), da Stasi da Alemanha Oriental, aliás HGWXX17, que era seu código de registro no serviço secreto, a quem o livro do dramaturgo perseguido e por ele salvo é dedicado no final.
Bem, cada um tem o HGWXX17 que merece. Ou pode ter.
Neste Natal, recebi um presente inesperado. Um ex-genro meu, Fábio Donola, com quem tanto eu quanto minha filha mantemos ótima relação de amizade, foi fazer pesquisas no Arquivo do Estado de São Paulo sobre sua família de imigrantes italianos, vindos para S. Paulo no começo do século XX. Parece que não encontrou muita coisa, à parte a referência de que depois de chegarem em Santos se instalaram provisoriamente numa pensão no bairro do Bexiga, em São Paulo, destinada a imigrantes como eles.
Em compensação, deparou lá com o arquivo do DEOPS, a polícia política. E tecla daqui, tecla dali, caiu na ficha de um possivelmente perigoso elemento chamado Flavio Wolf de Aguiar, isto é, eu. (Também estava ali a ficha de minha então companheira, que deixo de apresentar aqui por ser, naturalmente, coisa de sua alçada).
Lá estava a ficha, com fotos, dedos e outros dados, registrada no famigerado DOI-CODI, antes Operação Bandeirantes, entre julho e agosto de 1971. Segundo a ficha, o elemento “fora detido para averiguações” e depois solto, averiguado o que deveria ser averiguado.
Mas ele continuou a pesquisa. E foi levantando dados e mais dados a meu respeito, além dos colaterais e conexos. Em resumo, quando ele me enviou tudo, chegamos a um pequeno calhamaço de uma centena da páginas, direta ou indiretamente dedicadas a mim, alguém que, vamos convir, no frigir dos ovos daqueles “roaring sixties and seventies”, era um peixe relativamente pequeno, a não ser pelo meu metro e oitenta e três de altura. Como diz o Ed Mort, do Luis Fernando Verissimo, se eu fosse um índio num faroeste, eu morria no primeiro ataque.
Em resumo, o arquivo, este nada pequeno, acompanhava com alguma meticulosidade minha vida entre 1971 e 1989. Certamente deve haver uma coleção de dados anteriores, possivelmente até de Porto Alegre, onde militei no movimento estudantil secundarista e universitário, além de como professor, e posteriores, que os arquivos nacionais ficam me devendo. Pensei até em escrever ao general Etchegoyen, do Gabinete da Segurança Institucional da Presidência, cobrando o restante das informações, mas imagino que ele deva ter coisas mais urgentes a fazer.
Descobri informações preciosas, que eu esquecera. Por exemplo, que em 1975 eu prestara “depoimento ao MEC”. Caramba, sobre o que terá sido? Alguma aula misteriosa que eu dei? Um certificado que eu enviei? O pedido de registro de algum de meus diplomas? Oh, dúvida cruel…
Descobri também que, ainda nos anos setenta, eu assinei “um manifesto em favor do governo da Nicarágua”. Nossa, pensei, isto deve ter abalado o sistema norte-americano de defesa anticomunista do continente, para merecer tal destaque.
Mas descobri coisas mais interessantes. Por exemplo, cotejando as observações sobre mim e sobre outr@s companheira@s, descobri que havia uma certa ordem sistemática nelas: primeiro, registrava-se quem era, o que el@ tinha feito, depois como se enquadrava o feito em alguma contravenção, ainda que do ponto de vista do regime de exceção em que vivíamos – como este que ora vivemos. Quer dizer, seguia-se já então a mesma prática de hoje, que impera nas Lava Jato da vida. Primeiro, descobre-se @ criminos@. Depois, procura-se definir o crime que cometeu. Observei que no meu caso havia uma dificuldade. Como tudo o que eu fizera de alguma importância fora esconder companheir@s fugitiv@s, e auxilia-l@s eventualmente a deixar o país, ficou difícil enquadrar-me em alguma coisa relevante. Fizera eu outras coisas? Bem, escrevera umas quantas diatribes contra o regime ditatorial, porém acho que os curadores daquelas fichas e páginas não levavam isto muito a sério. Mas algumas coisas lá constavam, uma vez que depois de algum tempo eu militara assiduamente na imprensa alternativa, ou “nanica”, como se dizia na época, seguindo a carinhosa alcunha consagrada pelo saudoso, imortal e nada acadêmico João Antonio.
De tudo, o que mais me tocou foi me dar conta de que inúmeras das observações a meu respeito traziam, ao seu pé, uma assinatura: L. A. F.
Fiquei comovido. Quem seria esta pessoa que me seguiu, na sombra de seu anonimato, durante tanto tempo? Pelo menos 19 anos! Que desvelo! Confesso que encontrei tal dedicação a minha augusta pessoa somente nas relações mais íntimas de que desfrutei neste vale de lágrimas – e de informações, e de informantes, e de canalhas que se dedicam a tal mister.
Como eu já vira A vida dos outros ao receber as páginas copiosas, não consegui sentir apenas ódio em relação a L. A. F.
Quem sabe esta pessoa até melhorara a minha biografia para os órgãos de repressão, controle e inteligência. No filme, o HGWXX17, Gerd Wiesler, protege a vida de seu vigiado. Eu já não exigiria tanto. Apenas que L. A. F. fosse just@ em relação ao que eu fiz ou deixei de fazer.
No fundo, sou-lhe grato. Se tenho meu lugar garantido no panteão da inteligência nacional, é a el@ que eu devo.
Gostaria de conhecê-l@, de convidá-l@ para jantar um dia. Poderia tomar notas, e escrever sua biografia, que deve ser muito mais rica do que a minha.
Afinal, sou apenas um ficcionista, um poeta, jornalista, professor sobre o imaginário.
El@ é um(a) cronista da vida real, esta grossa, grosseira, violenta, cheia de turbulências, entre torturas, assassinatos, desaparecimentos, estas coisas que L. A. F. espanava de sua poeira, com sua escrita meticulosa e limpa dos detritos da história.
***
Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
Apesar de nunca termos cruzado(!) eu sempre desconfiei que havia por aí um Flávio Aguiar perigosíssimo!
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Ha,ha, O Sério continua incorrigível até hoje.
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rsrsrs… Estás sendo lembrado Flávio (O Perigoso) 😂😂😂
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Obrigado pelos comentários e pela lembrança!
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Flávio, quando fui pedir meus documentos à ABIN para o processo de anistia, constava que em 1985 (detalhe: eu estava anistiada desde 1979) eu havia participado de um ato público contra o aumento do leite!!!! Quando eu li, pensei: até porque o raio do ato era público, ora essa!!!
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Querida Mara: Leite da vaca vem do úbere. O úbere é esbranquiçado. Mas as tetas são avermelhadas. Só pode ser coisa de comunista.
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Delicado e contundente relato/ desabafo. Afinal, deveria à época q vivíamos no sítio ter pedido a v um autografo. ( hehe) Abraços, Flavio.
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Obrigado, Lucia, e pela lembrança de um tempo inesquecível… Abs iguais, F.
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