1969: O presídio Tiradentes
Retalhos da memória X
Por Izaías Almada.
Era dia de visitas no presídio Tiradentes. Desenhava-se, com a transparência de um claro dia de primavera, o estado de espírito de cada um daqueles homens e mulheres encarcerados e que haviam decidido pegar em armas para combater a ditadura civil e militar.
Nesses dias, pela manhã, a expectativa era ansiosa, quando todos ainda se arrumavam da melhor maneira possível para receber os visitantes.
À tarde, euforia, quando nas duas horas permitidas para a visitação trocavam-se carinhos, informações políticas e juras de amor; e por último a prostração pela volta à cela, denunciada agora pela apatia, pelo silêncio e o sono que derrubava a maioria dos encarcerados ao final da tarde.
Pedro fazia parte do pequeno grupo que não recebia visitas regulares. Seu pai, já velho e doente, conseguia com algum sacrifício vir de Belo Horizonte duas ou três vezes por ano, numa cansativa viagem de nove horas de ônibus.
A mulher, Marília Medalha, cantora que tinha compromissos no Brasil e no exterior, vez por outra não podia comparecer.
Na prisão, e era natural que assim fosse, fez novas amizades. Poucas, mas sólidas e duradouras. José Adolfo de Granville Ponce, Francisco Luís Salles Gonçalves, Roberto Cardoso Ferraz do Amaral, Luiz Raul Machado, Jorge Batista Filho, José Nonato Mendes.
Conquistou antipatias também. Seu espírito introspectivo e desconfiado, no entanto, e um forte sentido de autopreservação determinaram-lhe um comportamento de recato e poucas palavras naquelas condições.
As visitas se davam aos sábados e às quartas-feiras. Através das grades das janelas, no primeiro andar onde Pedro “morava”, avistava-se de relance a Avenida Tiradentes e o portão de entrada de parte do pessoal que chegava para as visitas e quase todo o pátio, por onde circulavam depois, nas duas horas permitidas.
A disputa, civilizada, por um espaço junto à janela da cela 2 era grande quando faltavam poucos minutos para a abertura dos portões, mas para Pedro e Nonato, um paraense magrinho e calado como ele, e que não recebia visitas, eram concedidos lugares cativos, numa solidariedade que se estabeleceu por consenso entre os habitantes da cela.
Após descansarem a vista sobre algumas lindonas que caminhavam pelo pátio, Pedro e Nonato costumavam jogar xadrez ou aproveitavam para ajeitar os mantimentos e livros trazidos pelos visitantes. Ou escrever uma carta.
Os dias avançavam lentos e pesados, não havendo qualquer perspectiva de que fossem ser libertados num futuro próximo. Ao contrário, as circunstâncias políticas do país, com feroz repressão a qualquer tentativa de oposição e a luta desesperada das organizações clandestinas para sobreviver faziam supor ainda um longo tempo de clausura.
Aquela era uma visita de quarta-feira. A do sábado seguinte não se realizaria. Entre uma e outra, grupos revolucionários no Rio de Janeiro, companheiros de muitos daqueles que estavam presos, sequestraram o embaixador dos Estados Unidos e tudo se complicou por uma longa semana de negociações.
Tensão e expectativa dentro do presídio, com a tentativa de se saber quais os que teriam maiores oportunidades de serem trocados pelo embaixador. Alguém lembrou a Pedro que ele poderia ser escolhido, mas ele sabia que isso não seria possível. Com a prisão, interrompera a militância e desligou-se da organização a que pertencia.
Discordava daqueles que propunham a continuação da luta dentro da cadeia, não havia condições objetivas para isso: tratava-se, era o seu ponto de vista, de uma irresponsabilidade que poderia pôr em risco a segurança e mesmo a vida de amigos e familiares.
Sabia, portanto, que não seria trocado por nenhum embaixador. Até por que, havia companheiros que mereciam e precisavam ser libertados imediatamente, quer pela posição de responsabilidade que haviam adquirido na luta, quer pelo grau de torturas a que estavam sendo submetidos.
Passadas a angústia e a ansiedade provocadas pelo sequestro do embaixador o presídio voltou à “normalidade”.
Alguns companheiros do Presídio Tiradentes foram colocados na lista dos que seriam trocados pelo embaixador norte americano, viajando para o Chile na companhia de mais sessenta e nove companheiros.
Não deixou de ser reconfortante ver tantos companheiros colocados em liberdade.
***
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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