1943
Retalhos da memória IX
Por Izaías Almada.
O enterro do irmão era, sem dúvida, a recordação mais antiga de Pedro. Quanta vez já tentara buscar na memória a lembrança mais remota da infância. Esbarrava sempre na mesma: o enterro do seu único irmão, natimorto. O pequeno filme dessa memória – quase uma fotografia – fixara em Pedro um momento forte e naturalmente inesquecível.
O rebento não vingou como se costumava dizer. O registro em cartório, nascimento seguido de óbito, apontava o segundo semestre do ano de 1944. Conseguia, pois, lembrar-se de um fato em que tinha pouco mais de dois anos de idade.
Já ouvira falar sobre regressão, volta ao útero materno, experiências com LSD, memória emotiva, nada que o fizesse interessar-se para além daquilo que a própria memória o capacitava.
Uma memória ainda frágil, a preto e branco, como nos melhores filmes expressionistas. A mãe, ausente dessa primeira lembrança, com certeza se resguardava no hospital onde ele, por ser criança ainda, não pudera entrar.
O pai, nervoso, com alguma coisa nas mãos que mais lembrava uma caixa de sapatos, caminhava aflito pelo corredor do hospital São Lucas. Um ou dois parentes andaram por lá, como a tia Marieta. Mais ninguém.
Não se lembrava de choros e nem do ranger de dentes, percebendo com o correr dos anos que os pobres acabam sempre por conseguir uma defesa contra as dores e os sofrimentos.
Anos mais tarde o pai confirmou-lhe a imagem do infortúnio: o irmão nascera com os pulmões colados e não houve recursos médicos que pudessem salvá-lo. Era a vontade de Deus, segundo o pai. Miúdo, seu único irmão foi colocado num caixãozinho e enterrado. Teria se chamado Paulo Lucas…
Sonhou boa parte da sua infância em ter um irmão com quem pudesse brincar e dividir segredos que não se contam a mais ninguém, nem a amigos e nem aos pais. Paulo Lucas, pelo visto, não quis saber desses segredos. Foi mais esperto.
A infância vivida com dificuldades era uma das marcas vincadas na personalidade de Pedro. Não que essas dificuldades tivessem maculado o seu caráter, tornando-o por demais invejoso ou irado.
Descobriu cedo ainda, nas escolas que pode frequentar, nos livros que foi lendo aqui e ali, que a pobreza não era inerente à condição humana, como tentaram lhe fazer acreditar os sermões inconsequentes ouvidos nos bancos da igreja metodista. Ou mesmo em artigos de jornais e melodramas de rádio novelas.
Ao contrário: inerente à natureza humana estava a vontade de lutar contra a pobreza e a miséria. Isso compreendeu logo cedo e o ajudou a se decidir por tal luta em certo dia de fevereiro muitos anos depois, quando descobriu a falta de solidariedade e a mesquinhez de seus semelhantes.
Foi o dia em que sua mãe começou morrer, sem a assistência médica necessária e atempada. Essa decisão, sim, transformou-se numa espécie de marca do seu caráter: a revolta contra qualquer tipo de injustiça.
Já adolescente, após a morte da mãe, Pedro teve uma conversa com o pai a respeito. Tentou explicar a sua revolta e ficou indignado com a resignação paterna.
Ensaiaram uma conversa política, dentro dos limites do conhecimento que cada um tinha da matéria. Foi quando o pai lhe contou que – na sua condição de policial e funcionário público – tentara se alistar para combater o nazi-fascismo na Europa pouco antes do seu nascimento.
O pai tinha muita pena de não ter pertencido à Força Expedicionária Brasileira. Pedro tentou entender essa frustração e ficou imaginando como teria sido a vida se tivesse se tornado órfão aos três anos de idade, pois muitos dos expedicionários brasileiros não regressaram da Itália.
Também nunca soube se o verdadeiro desejo do pai não teria sido fugir à vida simples que levava, pois jamais encontrou os pendores antifascistas paternos que deveriam estar na base daquela decisão não realizada.
Ao contrário, misturando um sentimento democrático difuso e mal compreendido a uma religiosidade que beirava o fanatismo, de um anticomunismo primário, o pai que conheceu enquadrava-se melhor naquela categoria de cidadãos que facilmente se deixavam convencer com muitos dos princípios políticos e filosóficos neoliberais, das ideias concebidas nos laboratórios ideológicos ocidentais do pós-guerra. Pela propaganda hipócrita da democracia ocidental e cristã.
Para o pai, o comunismo se confundia com a ditadura na União Soviética e a democracia, com o governo liberal dos Estados Unidos da América.
Como os Estados Unidos eram um país protestante e a União Soviética se tornou a morada dos que não acreditavam em Deus, Pedro cresceria sob o estigma que lhe faria confundir durante um bom tempo os caldeirões infernais com os porões de Moscou. E o paraíso bíblico com as produções de Hollywood.
Além da visão patética desenhada pelo que imaginou ser uma caixa de sapatos nas mãos do pai, caminhando aflito pelo corredor da maternidade, Pedro conseguiu guardar uma única fotografia em que os pais, juntos, seguravam-no ao colo com meses de vida: junho de 1942.
O pai, de chapéu e terno escuro, posava orgulhoso ao lado da cria, envolto numa manta branca e de touca, aconchegado ao colo materno.
Algures, o general alemão, Rommel, completamente alheio à alegria dos pais de Pedro, acabava de invadir a África.
O general e o bebê nunca se viram, nunca tomaram conhecimento um do outro, mas teriam se odiado para sempre.
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Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista, é autor de Teatro de Arena (Coleção Pauliceia da Boitempo) e dos romances A metade arrancada de mim, O medo por trás das janelas e Florão da América. Publicou ainda dois livros de contos, Memórias emotivas e O vidente da Rua 46. Como ator, trabalhou no Teatro de Arena entre 1965 e 1968. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
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