Vida de cachorro

Resenha sobre o livro "Cabo de guerra", de Ivone Benedetti (304 páginas, Boitempo, 2016)

cabo de guerra ivone benedetti

Por Flávio Aguiar.

“A gente deveria ser como os cachorros imaginam que a gente é: leal, gentil, fiel…”

Sabedoria do veterinário que cuidava de meus cães.

Mas na vida, esta imagem ideal do mundo canino tem sua contrapartida demoníaca: certos donos exigem de seus cães subserviência, ferocidade contra os outros, um banditismo assassino…

É disto que trata o romance Cabo de guerra, de Ivone Benedetti: daquilo que se exige dos cachorros. Só que aqui os cachorros são humanos: designam aqueles ex-guerrilheiros que eram recrutados pela repressão para, voltando a seus quadros, os delatarem, ajudando a destruí-los. O protagonista-narrador do romance é um deles.

Ao contrário do que afirma o lugar-comum, a literatura narrativa que tem os tempos da ditadura de 64, seus antecedentes e consequências (além de seus temas conexos, a consagração da violência institucional, da tortura e do assassinato, e da censura, o exílio), como referência (tema, moldura, pano-de-fundo, boca-de-cena) é abundante, e constante, tendo começado quase com a própria ditadura (só dois exemplos, lembrados ao acaso: Quarup, de Antonio Callado, e Pessach: a travessia, de Carlos Heitor Cony, são ambos publicados em 1967). Incidente em Antares, de Erico Verisismo, 1971. Se às narrativas (conto e romance), que são da melhor qualidade, juntarmos a poesia, a dramaturgia, o testemunho e o ensaio de fundo ou jornalístico, além do universo da canção e do cinema (e nem falamos das artes plásticas) a produção deixa de ser abundante e passa a ser torrencial.

Por isto mesmo é difícil discernir neste começo de século XXI um foco original. Não que isto seja necessário para a existência de uma boa obra, muito menos suficiente. Mas pode ressaltar as qualidades de uma obra relevante.

É o caso deste Cabo de guerra.

Nele, o cachorro protagonista narra suas aventuras e desventuras, e de todo tipo: desde as amorosas à sua imersão por acaso na luta armada, de sua prisão, de sua adesão à “vida de cachorro”, meio também por acaso, embora aqui o instinto de sobrevivência tenha seu papel. Esta adesão não se dá sem que passe maus momentos no pau-de-arara, nem o livra de uma surra exemplar depois, ao fazer uma canhestra tentativa de fuga, para retornar à sua Salvador natal.

As aventuras e desventuras a amorosas ocupam boa parte do livro, e são fundamentais para desenhar o perfil amorfo do personagem, o que nos conduz a uma série de referências literárias, propositais ou não por parte da autora. O caráter de “militante por acaso” nos faz lembrar Zero, de Ignacio Loyola Brandão, lançado primeiro na Itália, em 1974, e depois (e proibido em seguida) no Brasil em 1975. O tema do cachorro traz à mente Recuerdos de la Muerte, do argentino Miguel Bonasso, de 1984. Em tudo paira um clima digno de Dostoievsky, do Raskolnikoff de Crime e Castigo e do Smerdiakov, de Os irmãos Karamazov. Se trago à baila estas lembranças, não é para diminuir a estatura do livro de Ivone; ao contrário, é para ressalta-la.

Aos poucos, ao longo da narrativa, vamos nos dando conta dos crimes e do castigo do seu protagonista, que termina meio alucinado paranoicamente enquanto se perde em seus labirintos: o de S. Paulo, o da memória de sua vida infantil na Bahia, em que se sente vagamente culpado pela morte do pai, e o seu labirinto interior, onde avultam as figuras misturadas dos que ajudou a matar. A questão – que não posso aqui adentrar para não roubar o impacto da leitura – é a de como ele chegou neste estado de uma vida vegetativa, fazendo jus à imagem do inferno traçada por São Tomás de Aquino em sua Suma Teológica, em que os condenados são roídos pelos seus vermes interiores e o único fogo que ilumina seus arredores é o de que lhes consome as vísceras e sai pelos seus olhos.

As mulheres têm um papel singular na vida deste personagem que termina reduzido, como disse, a seus vermes interiores. Todas: Jandira, com quem quis se casar e foi rejeitado, Sofia, a dona da pensão onde se alberga, a índia Cibele, fulgor de felicidade que lhe foi roubada, Mariquinhas, a irmã carola que despreza mas de quem depende, a enigmática e aloprada Samira, com quem tem um caso recheado de absurdos, a mãe distante que ele venera sem saber em que altar coloca-la… e ainda outras.

Ao redor delas gravitam os personagens masculinos, mais caricaturais: Rodolfo, o militante de esquerda que o atrai e que ele não entende; o amigo Parreira, sempre à beira da marginalidade; Paolo, o ridículo marido de Samira; Getulio, seu primeiro guardião, que o brutaliza; Tomás, o policial obcecado pela luta anti-comunista; o “Coronel”, protetor e ameaçador, que lhe arranja empregos e o maltrata; os distantes antepassados, o pai, o avô, o tio-avô, que se enredam e se enroscam em sua memória que vai de desfazendo ao mesmo tempo em que se revela para nós, leitoras e leitores.

Com suas riquezas e sua visão aguda sobre nosso passado, o recente e o distante, é um livro que enquanto cativa, fascina. Cativa pela qualidade da escrita, ao mesmo tempo profunda e sem excessos. Fascina, pela pergunta que nos traz. Este “cachorro” cuja trajetória presenciamos, é um personagem que gostaríamos de ver relegado ao nosso passado. Entretanto, nestes dias de golpe que nos rondam, ele pode estar perigosamente à espreita. Não só isto: quanto deste personagem amorfo, sub-ético, feito de plastelina que as circunstâncias podem moldar nas formas mais grotescas, habita em todos nós, seres humanos em geral? Respostas, somente depois da leitura.

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

2 comentários em Vida de cachorro

  1. Flávio Aguiar // 16/11/2016 às 2:27 pm // Responder

    Obrigado, Anísio!

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