A aprovação do fim do mundo
Maurilio Lima Botelho desmonta a cartilha do "InfoMoney" sobre a PEC 241
Por Maurilio Lima Botelho.
Há uma espécie de cartilha “explicando“ a PEC 241 através de perguntas e respostas. Criada pela InfoMoney, que nada mais é do que uma agência de notícias daquele que se apresenta como maior grupo “independente” de corretagem mobiliária do Brasil, a cartilha é um defesa da PEC do Fim do Mundo realizada por consultores do Banco Itaú, responsáveis pelas respostas. Isso confere um tom impessoal ao texto devido a expressões como “o Itaú responde“, o “Itaú reforça“ ou “o Itaú ressalta”.1
Como se sabe, o Banco Itaú é o maior banco privado do Brasil graças a sua fusão, em 2008, com o Unibanco. Apesar das várias críticas ao processo que levaria a uma cartelização financeira, a fusão foi autorizada pelas instituições reguladoras e abençoada por Henrique Meirelles, presidente do Banco Central da Era Lula e hoje Ministro da Fazenda. Ilan Goldfajn, economista-chefe do banco, e que trabalhou também no FMI, acaba de retornar à presidência do Banco Central, cargo que ocupou nos últimos anos do governo FHC.
Os bancos detém uma fatia importante da dívida pública brasileira: 647 bilhões de reais (cerca de 22 % do total) e perdem apenas para os fundos de pensão (com 24%). Devido à concentração financeira, a maior parte desses títulos estão nas carteiras de poucos grandes bancos privados. Por isso, é politicamente importante um trecho da cartilha em que “o Itaú aponta que a proposta tem potencial”.
Mas há uma passagem ainda mais expressiva naquela defesa do Fim do Mundo:
“O teto incide apenas sobre as despesas primárias e, portanto, não inclui as despesas com juros da dívida pública. O Itaú explica que isso ocorre porque a despesa de juros foge ao controle do governo e é apenas uma consequência de decisões de governos passados”.
Há três observações a fazer.
A primeira é sobre a “despesa de juros foge ao controle do governo”. A taxa básica de juros é definida pelo governo, “através” do Banco Central. Diferente de todos os outros agentes econômicos, o governo contrai dívidas estipulando os juros que vai pagar por elas. Evidentemente, a decisão de aumentar ou baixar os juros não depende apenas da vontade política, mas da variação nas taxas básicas de juros de outros países e, principalmente, da pressão de diversos setores econômicos, à frente de todos o mercado financeiro. E isso significa – contra o keynesianismo morto-vivo – que estão incluídas aí as indústrias, pois boa parte delas, no Brasil (e no mundo), operam hoje mais com rendimentos financeiros do que propriamente com lucros operacionais da produção.2 Essa história de que a indústria está interessada em baixar taxa de juros é para enganar trouxas – se fosse o caso, Dilma teria sido transformada na Madre Santa da Manufatura Nacional pela FIESP.
Em segundo lugar, a incidência de juros sobre juros no acúmulo e rolagem das dívidas, independente da parcimônia do governo de plantão, faz com que essa bola de neve esmague a boa vontade de qualquer política. Ou seja, é bem verdade que “a despesa foge ao controle do governo”. Mesmo nos períodos em que os governos Lula e Dilma economizaram recursos (todos os anos entre 2003 e 2013) – isto é, apresentaram superávit primário –, no fechamento das contas, após o serviço da dívida, houve déficit nominal. O governo gastava mais do que arrecadava mesmo economizando em despesas primárias (saúde, educação, previdência etc.). Não há nenhum sentido no argumento que apela para os “gastos exorbitantes” na defesa da PEC 241. Trata-se apenas de uma contenção orçamentária arbitrária, punitiva, contra uma parafernália fiscal que ainda possuía outros objetivos que não somente os de produzir dinheiro através de mais dinheiro. Mesmo que esses objetivos fossem apenas o da “administração da miséria” realizada pelo lulismo. No fundo, agora foi estabelecido que o sistema de tributação brasileiro tem como prioridade alimentar o monstro do capital fictício – o resto é prescindível.
Por fim, a parte da “consequência de decisões de governos passados” é o trecho mais filosófico de todos. Marx disse que a “tradição das gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”. Essa expressão, que era apenas uma formulação crítica denunciando a falta de liberdade (não importando a vontade) do sujeito, agora se realiza de modo mais objetivo possível, demonstrando ao mesmo tempo o fundamento social de toda heteronomia moderna (as leis cegas da economia de mercado) e o limite dessa máquina incontrolável – a destruição do futuro.
Essa morte não decorre apenas de “decisões erradas” tomadas pelos governos passados – embora seja isso que o atual governo diz ao responsabilizar o PT ou as explicações da esquerda para a explosão do endividamento na era FHC.3 O que se trata é de uma economia que só funciona no presente queimando matéria-prima futura. A dívida pública sempre teve esse papel de garantir previamente uma soma dos impostos futuros a seus credores. Nada mais nada menos do que capital fictício, antecipação de receitas futuras. Hoje, no entanto, graças à impossibilidade de liquidá-la, a dívida pública se converte no lastro que faz a economia “real” operar, gastando no presente a contribuição das gerações futuras. Tornou-se uma das únicas maneiras – sem dúvida a mais segura – de permitir “acumulação” a um sistema de reprodução falhada.
A PEC do Fim do Mundo é a liquidação total, de antemão, das garantias sociais da futura geração. Até mesmo o serviço público mais rasteiro e de qualidade funesta de hoje parecerá um Total Welfare diante do que está por vir (assim como já parece ao míope petismo que suas políticas compensatórias eram a fina flor do Estado do Bem-Estar Social Brasileiro).
A PEC do Fim do Mundo é o sacrifício antecipado da reprodução social frente ao fim em si do dinheiro. É o círculo da forma mercadoria e forma monetária que encerra o seu processo histórico: o dinheiro não apenas não aceita nenhum outro Deus que não ele mesmo, como se mostra indiferente ao mundo que lhe rodeia.
NOTAS
1. “17 perguntas que você está fazendo sobre a PEC do teto de gastos, respondidas pelo Itaú“. Por Lara Rizério. InfoMoney.com, 10 de outubro de 2016.
2. O Banco Central não divulga em seus relatórios regulares os detalhes sobre os proprietários dos títulos da dívida pública mobiliária federal; ele apenas os classifica em grandes grupos. Um estudo de 2008 subdividiu esses grupos para chegar a um resultado, também não muito preciso, dos “detentores finais dos títulos”: 10,4 % estavam na carteira de “pessoas jurídicas não-financeiras”. Ou seja, essa que é apenas uma entre várias formas possíveis de aplicação financeira atraia 131 bilhões de reais de empresas “produtivas”. Ver: Anderson Caputo Silva, Lena Oliveira de Carvalho, Otavio Ladeira de Medeiros (org.). Dívida Pública: a experiência brasileira. Brasília: Secretaria do Tesouro Nacional: Banco Mundial, 2009, p. 389. Há alguns anos, José Carlos de Souza Braga é um dos autores que tem ressaltado o confuso entrelaçamento entre funções produtivas e financeiras nas grandes corporações. Ver sobre isso: “A financeirização da riqueza”, Revista do Instituto de Economia da Unicamp, no. 2, pp. 25-55, agosto, 1993 e “O espectro que ronda o capitalismo”, Folha de São Paulo, 1 set. 1996.
3. Embora sem dúvida os patamares herdados da era FHC não tenham sido ainda superados, a dívida bruta caiu nos primeiros anos do governo PT em relação ao PIB, voltou a crescer em finais de 2006, recuou novamente em 2009 e cresceu vertiginosamente a partir de 2010. Essa variação está longe de demonstrar uma política regular e equilibrada de redução de endividamento, devendo-se esta às variações da conjuntura, em particular à liquidez obtida durante o auge da bolha das commodities.
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O dossiê especial de intervenção “Não à PEC 241”, do Blog da Boitemporeúne artigos, entrevistas, análises e vídeos que destrincham de perspectivas diversas o contexto, o processo, a agenda e os efeitos da PEC 241. Lá você encontrará reflexões de Laura Carvalho, Ruy Braga, Flávia Biroli, Guilherme Boulos, Luis Felipe Miguel, Vladimir Safatle, Silvio Luiz de Almeida, João Sicsú, Adalberto Moreira Cardoso, Rosane Borges, Mauro Iasi, Giovanni Alves, Jorge Luiz Souto Maior, Maurílio Lima Botelho, Antonio Martins, Renato Janine Ribeiro, Jessé Souza, entre outros, além de uma agenda das manifestações de rua contra a Proposta de Emenda à Constituição 241.
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Maurilio Lima Botelho é Professor de geografia urbana da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), e autor do artigo “Crise urbana no Rio de Janeiro: favelização e empreendedorismo dos pobres” que integra o livro Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social, organizado por Pedro Rocha de Oliveira e Felipe Brito (Boitempo, 2013). Colabora com o Blog da Boitempo especialmente para o dossiê “Não à PEC 241”.
Tudo que está acontecendo não é bem o fim do mundo, porém é um indicativo, certamente mais forte, de como o Brasil sempre funcionou: os de baixo sempre sendo esmagados para a manutenção dos privilégios e acumulação de riquezas dos de cima, tendo o Estado como uma força concentrada para garantir esse objetivo. Esse processo que começou desde o séc. XVI, estimulado por observações como a de Caminha, gerou uma forma de exploração onde tanto o meio ambiente como seu povo sempre teve que pagar a conta. Agora, então, com o aprofundamento da crise, isso tornou-se mais perverso.
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Eu gostaria de receber esse livro pessoas… Só mandar que retiro no correio e pago.
Ivanildo Claro da Silva R. Souza Naves, 3983 – sala 709 Cascavel – Paraná – CEP 85810-900 tel 45 – 3225-3536
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Republicou isso em Poética de Botequime comentado:
A PEC do Fim do Mundo é a liquidação total, de antemão, das garantias sociais da futura geração. Até mesmo o serviço público mais rasteiro e de qualidade funesta de hoje parecerá um Total Welfare diante do que está por vir (assim como já parece ao míope petismo que suas políticas compensatórias eram a fina flor do Estado do Bem-Estar Social Brasileiro).
A PEC do Fim do Mundo é o sacrifício antecipado da reprodução social frente ao fim em si do dinheiro. É o círculo da forma mercadoria e forma monetária que encerra o seu processo histórico: o dinheiro não apenas não aceita nenhum outro Deus que não ele mesmo, como se mostra indiferente ao mundo que lhe rodeia.
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