O caso das merendas italianas

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Por Flávio Aguiar.

Convenhamos: “o caso das merendas italianas” poderia ser o título de um romance policial, no estilo Miss Marple, com envenenamentos à vista.

Mas não é. Ao invés, é o título de um drama educacional algo envenenado. Já no nosso país “merenda” é tema de desvio de verbas – e periga ir parar debaixo do tapete, já que a denúncia não envolve o PT.

O caso começou em Turim, e ganhou contornos de fato dramáticos em Milão.

Como acontece em muitos países – inclusive no Brasil, a menos que o Meirelles mande cortar – as escolas públicas fornecem merendas a seus alunos. As merendas são preparadas com a orientação de nutricionistas profissionais e fazem parte da própria formação dos estudantes, no sentido de promover a alimentação saudável.

Ocorre que em Turim as escolas passaram a proibir os alunos de trazerem merendas de casa.

Alguns pais entraram na justiça, em nome da sua liberdade de alimentarem seus rebentos da maneira que acharem conveniente. O caldo engrossou, no entanto, em Milão. Uma aluna, que levara merenda feita em casa, foi forçada pela escola a ir comê-la em separado, na sala de aula, longe das e dos colegas.

A criança chegou em casa evidentemente traumatizada, contou o ocorrido, chorando, aos pais. A história foi parar nos jornais e entrou para a pauta política da região.

Alegam os defensores da medida que por fazer parte do projeto educacional, a merenda escolar deve ser respeitada e ter exclusividade. Além disto, alegam que causa desconforto entre os alunos o fato de alguns comerem o que vem de casa, sem a mesma preocupação educativa, e outros comerem o que a escola fornece. Não sei se é o caso, mas imagino a disputa provocada por merendas cheias de doces e outras coisas politicamente incorretas e as talvez insossas (ou assim vistas) fornecidas pela escola. Também alegam os defensores da proibição que ela garante boa alimentação para os alunos, em nome da segurança de cada um.

Já os opositores da medida brandem a liberdade individual e familiar na formação e na alimentação dos filhos, e levantam a bandeira da criança traumatizada como trunfo de sua causa.

Há até uma leve inclinação ideológica, com alguns políticos mais à esquerda defendendo a causa escolar da exclusividade e outros mais à direita defendendo as liberdades individuais e familiares.

Convenhamos: a discussão da nutrição saudável deve fazer parte, sim, da formação dos alunos, dos professores e dos pais também. Ao mesmo tempo, segregar uma criança porque ela trouxe merenda de casa é um evidente exagero, um equívoco educacional.

O caso exigiria medidas de debate e argumentação envolvendo todas as partes e fontes especializadas: a escola, os pais (deve haver alguma associação de pais e mestres), pedagogos, nutricionistas, psicólogos, médicos, etc. E last, but not least, as crianças. Ninguém venha me dizer que elas não têm condição de participar de uma discussão desta natureza. Têm sim, e a partir da mais “tenra” idade.

É verdade que às vezes me pergunto pela sanidade de alguns pais ao ver criancinhas de três, quatro anos manipulando smartphones e assemelhados impunemente. Mas enfim este é o mundo cheio de parafernálias em que vivemos, e é melhor incluir estas tralhas nas discussões do que ignora-las ou fingir que não existem.

O afã educativo precisa também ser modulado por regras democráticas de convivência. Em nome da laicidade do Estado, autoridades educacionais francesas já chegaram ao ponto de proibir as escolas de oferecerem alternativas à carne de porco quando ela constar da merenda. Na verdade esta medida “laica” se apoia mais no preconceito anti-muçulmano do que em algum princípio educacional.

Mas aí estamos entrando no terreno favorável à adubação pelos Trump, Le Pen, Sarkozy, Gert Wilders…

***

Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, Crônicas do mundo ao revés (2011) e o recente lançamento A Bíblia segundo Beliel (2012). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.

9 comentários em O caso das merendas italianas

  1. A escola é autoritária por princípio. Nãosou eu que digo, foi Foucault. Ela não só quer determinar o que a criança como, mas o que ela sabe.

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  2. Obrigado, Marcio, por seu comentário. A discussão é boa. De minha parte, penso que a escola, como muitas coisas na vida, é palco de contradições. No seu espaço convivem vocações para Torquemada e para Paulo Freire, Reação e Ação. Um abraço.

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  3. Antonio Elias Sobrinho // 29/09/2016 às 12:29 pm // Responder

    A escola, por princípio não é nada, porque não existe uma padronização. Regra geral seu funcionamento reflete as contradições e a heterogeneidade social. De qualquer maneira, o que se espera dela, sobretudo da escola pública, é que seja um palco de debate no sentido de se buscar as melhores alternativas para os mais variados problemas.

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  4. Na Itália a discussão é se a crianca pode ou não,levar merenda de casa?No nosso querido Brasil ,as criancas da maioria das escolas públicas , não têm o que levar para a escola. E justamente aqui , a máfia da merenda escolar atua sem pudor , e pelo visto mesmo descoberta e desmascarada, está sendo “esquecida” pelos julgadores e justiceiros que, míopes ou estrábicos ??? focam em um só alvo. Há um leque de opcões e fatos que deveriam ser investigados com o mesmo empenho com que atuam na lavajato. Principalmente este, porque diz respeito às nossas criancas .Mas quem se incomoda com os pequenos? Eles são o futuro do país? Precisam de ensino e complementacão alimentar de boa qualidade? Ninguem está interessado.

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  5. Obrigado pelos novos comentários e preocupações complementares. A discussão é boa, o diálogo sempre é indispensável, como diz o Antonio. Quanto `å questão do debate sobre nutrição, ele é indispensável também no Brasil. Pode ser que a dupla Temer-Meirelles consiga realimentar a miséria no Brasil. Mas pelas informações de que disponho, o maior problema da maioria das crianças brasileiras (embora ainda haja bolsões de extrema pobreza, hoje bastante reduzida graças às políticas sociais desde a Constituição de 88), deixou de ser a fome crônica e passou a ser a tendência à obesidade precoce, devido ao consumo descontrolado de guloseimas e fast food.

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  6. mari santos // 01/10/2016 às 3:52 am // Responder

    Mais um motivo para oferecermos às criancas, nas escolas , alimentos de boa qualidade. Bem podíamos seguir o exemplo de Jamie Oliver que, na Inglaterra, conseguiu mudar o cardápio das merendas. Foi com muito empenho, enfrentou resistência até mesmo das cozinheiras que estavam acostumadas com os fast foods – mais fáceis de preparar- e dos alunos que estavam habituados aos sabores sintéticos dos alimentos. Quanto a realimentar a miséria, é bem possível…porque já estão partindo para institucionalizar a bestializacão no ensino: escola sem partido, entenda-se sem diversidade de opiniões. Sem aulas de educacão artística , sem educacão musical,sem educacão física, direcionando alunos diretamente para serem apenas trabalhadores.Parece ser isto .Formaremos assim pessoas com pouca ou nenhuma capacidade de análise crítica, desprovidos de sensibilidade artística (a nào ser que sejam autodidatas) e mais rechonchudinhos porque aulas de educacão física não serão obrigatórias. Flávio Aguiar, voce tem notícia de algum outro país onde pessoas que nada entendem do assunto , de um dia para outro modifiquem o sistema educacional do país?

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  7. Mari: no momento, não. Houve bestializações nos casos dos regimes fascista, nazista, franquista, salazarista, até no Brasil da ditadura e no Cone Sul na mesma época. De momento, esta proposta de Temer et quadrilha ganha o ouro em matéria de torpeza, canalh- e calhordice.

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  8. Ah sim, me esqueci dos criacionistas nos Estados Unidos.

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  9. mari santos // 01/10/2016 às 7:31 pm // Responder

    Pois é. Devemos abrir espaco para contestacões.

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