O marxismo de Angela Davis

"Atentar para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior do capitalismo permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por esquemas mecânicos que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da sociedade."

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Por Silvio Luiz de Almeida.

Acaba de ser lançada pela editora Boitempo a seminal obra Mulheres, raça e classe, de Angela Davis. Originalmente publicado em 1981, o livro é responsável pela emergência de uma nova perspectiva da questão de gênero, relacionando-a ao racismo e às relações de classe. É, portanto, obra fundamental para a formulação teórica e para a organização política do feminismo negro, que vem ganhando cada vez mais importância. Nesse sentido, é importante destacar que a edição brasileira é prefaciada por Djamila Ribeiro e conta com apresentação de Rosane Borges, duas das mais destacadas intelectuais negras da atualidade.

Entretanto, a importância de Mulheres, raça e classe ultrapassa as especificidades do feminismo negro. Angela Davis coloca-nos diante de uma questão teórica das mais relevantes e que atualmente tem sido negligenciada até mesmo pela tradição marxista: a relação entre a reprodução da sociedade capitalista e a constituição das subjetividades. O capitalismo é uma forma de sociabilidade baseada na troca mercantil. Todavia, a troca mercantil capitalista é determinada pela produção em que predomina a exploração do trabalho assalariado. Predomina, o que não significa dizer que o trabalho assalariado é a única forma de trabalho no capitalismo; como demonstra Davis, a escravidão e a servidão articularam-se de modo singular com o capitalismo nas mais distintas formações sociais, adaptando-se a diferentes realidades e costumes ou simplesmente dissolvendo e destruindo tradições não compatíveis com a lógica do capital. Assim, a divisão social e o conflito são marcas estruturais da sociedade capitalista, uma sociedade que só pode ser compreendida se dividida em classes, as classes em grupos, e os grupos em indivíduos, num processo permanente de classificação de indivíduos e de grupos sociais por critérios de pertencimento nacional, racial, sexual e de gênero que têm o Estado como principal artífice – como é muito bem demonstrado em Estado e forma política, de Alysson Mascaro (Boitempo, 2015).

Ao acentuar gênero e raça como componentes essenciais da categoria “classe”, Angela Davis contribuiu não apenas para a compreensão material do racismo e do sexismo, mas para o entendimento do capitalismo como sistema social em que a produção e a reprodução dos sujeitos, seja por meio da violência, seja por meio da formação de consensos ideológicos, é absolutamente imprescindível para a continuidade de uma vida social desintegrada e conflituosa.

Assim, a importância de Mulheres, raça e classe transcende as perspectivas teóricas ou práticas de grupos específicos e se mostra relevante para o marxismo enquanto “método” ou “ciência da história”. Davis nos lembra que o marxismo tem como prioridade o movimento do real da materialidade histórica, e por isso o conceito de classe deve ser “elevado” em direção ao concreto. Classes são formadas por indivíduos, cujas relações são determinadas pela lógica capitalista da produção e pelas formas históricas de classificação racial ou sexual. Atentar para a forma adquirida pelo racismo e pelo sexismo no interior do capitalismo permite ao marxismo não ser engolfado pelo idealismo ou por esquemas mecânicos que inviabilizam uma concepção verdadeiramente científica da sociedade. Trata-se, portanto, de ponto de partida para o desafio de responder à questão se a relação entre capitalismo, racismo e sexismo se explica por fatores históricos (nunca houve capitalismo sem racismo e sexismo) ou lógicos (não há capitalismo sem racismo e sexismo).

Em um momento de grande incerteza e fragmentação da luta política, Mulheres, raça e classe revela em nível teórico que as lutas políticas antirracistas e feministas, ainda que guardem especificidades, estão irremediavelmente conectadas entre si, e que nenhuma das duas pode ser efetiva sem a formulação de estratégias anticapitalistas.

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Silvio Luiz de Almeida é natural de São Paulo, capital. Jurista e filósofo, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco), é autor, entre outros de Sartre: direito e política: ontologia, liberdade, revolução. Recentemente, coordenou o dossiê especial sobre “Marxismo e a questão racial” na edição #27 da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda. Atualmente Preside o Instituto Luiz Gama, entidade com atuação na área direitos humanos e leciona nas Faculdades de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade São Judas Tadeu. Colabora com o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.

6 comentários em O marxismo de Angela Davis

  1. E vice versa. A luta de classes não pode ser pensada de outra forma. Aliás, a direita sabe disto muito bem. Falta à esquerda pensar nesta direção.

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  2. Maria Thereza Candido Gomes de Menezes // 28/09/2016 às 1:36 pm // Responder

    Não li o livro apenas a resenha do professor Silvio Luiz Almeida, é um texto sério, comprometido com outro ordenamento social. No entanto, percebi uma certa tendência de flexibilizar e “atualizar” a teoria marxiana. Ou seja, a ontologia do ser social se confunde com ciência, o desvio da centralidade do trabalho para explicar a racionalidade do capital é substituída, pela “centralidade da questão racial” e a problemática negação da “não hierarquização das opressões” resvala, necessariamente, no relativismo. Essa concepção é fruto de uma vertente “marxista” que teme a radicalidade do pensamento marxiano, sintetizado, na revolução.

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    • ju nascimento // 28/07/2017 às 12:44 am // Responder

      Djamila Ribeiro, escreveu um prefácio que faz exatamente isso: desviar a centralidade do trabalho para centralidade da questão racial. Contudo, Angela Davis segue o caminho contrário: percebe de que modo o capital instrumentaliza o racismo e o sexismo para nos colocar uns contra os outros e perder de vista a centralidade do trabalho e o nosso inimigo comum: a burguesia. Recomendo que leia o livro de Angela, um verdadeiro primor da luta contra o capitalismo, em que se pese, um apelo de unificação entre todos os grupos subalternizados que devem eles mesmos ultrapassar o racismo e o sexismo para pôr foco na luta contra o capitalismo global.

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  3. Maria de Fátima // 27/07/2017 às 11:33 am // Responder

    Nossa que bacana. Me livros e temas bastante debatidos, a gente ainda não conhece, com detalhes

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  4. Thiago audibert // 27/07/2017 às 9:00 pm // Responder

    Capitalismo não funciona sm racismo e sexismo?tá de sacanagem ne?
    Capitalismo de estado não funciona.e nem comunismo funciona.o que nos faz igual é a falta de regulamentação do estado.
    O que nos faz livre é o livre mercado.
    Leiam mises e escola austríaca de econômia

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  5. Cassio Vinicius // 07/06/2018 às 8:34 pm // Responder

    Seguir a sua indicação ou seguir a indicação de um cara que só é “Jurista e filósofo, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo” que duvida cruel kkkkkkkkkk. (O único de sacanagem aqui é vc !)

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